A isenção de custas processuais na ação popular

Sumário


I - A isenção de custas não abarca as custas de parte -nº 7 do art. 4 do RCP-, isto é, não abrange os reembolsos à parte vencedora a título de custas de parte, e só a ressalva contida na primeira parte desse nº 7 “casos de insuficiência económica, nos termos da lei de acesso ao direito e aos tribunais” consubstancia uma situação de exceção àquela regra.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.

Associação “OS.…..”; AA; BB; CC; DD; EE; FF; GG e HH, intentaram a presente ação popular contra a Sociedade Agrícola da Brava - Agricultura, Pecuária e Turismo, SA.

Prosseguindo o processo seus termos foi proferido neste Supremo Tribunal de Justiça acórdão datado de 26-01-2021 no qual, além do mais, se decidiu no que respeita a condenação em custas: “Sem custas, dada a isenção dos recorridos (ação popular) e art. 4, nº 1 al. b), do RCP”.

Notificado o acórdão vem a recorrente BRAVA, S.A., ao abrigo do disposto no artigo 616, n.º 1 aplicável ex vi do disposto nos artigos 685 e 666, todos do CPC, requerer e pedir a reforma do acórdão quanto a custa            e, em consequência da procedência deste pedido, sejam os Autores condenados nas custas do processo, nos termos do art. 4, n.º 1, alínea b) e n.º 7 do RCP e art. 19 n.º 2 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.

Entende a reclamante que, deve “o referido segmento do acórdão ser revogado e substituído por outro que declare que as custas do processo são responsabilidade dos Autores, sem prejuízo da isenção de beneficiam (cf. artigo 4.º, n.º 1, alínea b) do RCP), a qual não abrange, contudo, a obrigação do pagamento das custas de parte à Ré (cf. artigo 4.º, n.º 7 do RCP) nem os encargos derivados da publicação obrigatória do acórdão em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados no seu conhecimento, à escolha do juiz da causa (cf. artigo 19.º, n.º 2 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto)”.

Os autores/recorridos não se pronunciaram.

Cumpre conhecer:

O pedido de reforma é legal e foi formulado em tempo.

Verifica-se que tem razão a reclamante, uma vez que no acórdão reclamado apenas se atendeu ao disposto no art. 4, nº 1, al. b) do Reg. Custas Processuais.

Porém, é de ter em conta, nomeadamente, o disposto nos nºs 6 e 7 do mesmo preceito que referem que, a parte isenta de custas (exceto se beneficiar de apoio judiciário) é responsável e deve suportar o pagamento dos encargos, bem como as custas de parte, reembolso à parte vencedora.

“A parte isenta é responsável pelo pagamento das custas, nos termos gerais, quando se conclua pela manifesta improcedência do pedido; é responsável, a final, pelos encargos, a que deu origem no processo, quando a respetiva pretensão for totalmente vencida, e a isenção de custas não abrange os reembolsos à parte vencedora a título de custas de parte, que, naqueles casos, as suportará (nºs 5, 6 e 7, do art. 4)” – José António Coelho Carreira in “Regulamento das Custas Processuais”, Almedina, 2ª ed., pág. 64 e, anotação 34 (referente ao nº 7), a fls. 112 e segs., referindo a fls. 113, “temos então que, a parte vencedora tem direito a ser reembolsada pela parte vencida, ainda que isenta de custas, das custas de parte a que tem direito”.

No mesmo sentido, Salvador da Costa, in “As Custas Processuais, Almedina, 6ª ed., referindo a pág. 122 que a isenção de custas não abrange os reembolsos à parte vencedora a título de parte, “Assim, as entidades que gozem de isenção subjetiva ou objetiva de custas, sejam de direito público ou provado, e fiquem vencidas, em regra, pagam às partes vencedoras o valor por elas despendido com o processo e se integre no âmbito do conceito de custas de parte. É um corolário do princípio regra da justiça gratuita para o vencedor (art. 527, nºs 1 e 2, do CPC)”.

Resulta da lei, conforme exposto, que a isenção de custas não abarca as custas de parte - nº 7 do art. 4 do RCP-, isto é, não abrange os reembolsos à parte vencedora a título de custas de parte, e só a ressalva contida na primeira parte desse nº 7 “casos de insuficiência económica, nos termos da lei de acesso ao direito e aos tribunais” consubstancia uma situação de exceção àquela regra.

E o mesmo se passa relativamente aos encargos, como salienta Salvador da Costa a fls. 122, ob. cit. e José António Carreira, ob. cit., fls. 112, referindo estes autores que, no caso de a parte isenta de custas ver a sua pretensão totalmente vencida, mas não por manifesta improcedência (como é o caso vertente), a isenção de custas mantém-se, apenas, no que respeita à taxa de justiça, devendo a parte isenta efetuar o pagamento dos encargos originados no processo.

As custas processuais abrangem, a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte. Isto mesmo se preceitua no art. 3, nº 1 do Reg. das Custas Processuais e também no art. 529, nº 1 do Código de Processo Civil.

Constituindo encargos, o valor de coisas ou serviços que sejam necessários para prosseguir o processo seus termos, com vista à decisão e, integrando com as custas de parte o conceito mais amplo de custas processuais, dele fazendo parte, e tendo a parte vencedora direito a ser reembolsada pelo valor despendido pelo impulso processual necessário ao natural desenvolvimento da lide e ao proferimento da decisão, face ao disposto nos nºs 6 e 7 do art. 4 do Reg. CP, não podia o acórdão recorrido, no que a esta matéria respeita, decidir pela não condenação em custas, “sem custas, dada a isenção dos recorridos”.

Assim que há-de julgar-se procedente a reclamação e reformado o acórdão quanto a custas, substituindo-se “Sem custas, dada a isenção dos recorridos (ação popular) e art. 4, nº 1 al. b), do RCP” por “Custas pelos autores/recorridos, tendo em conta que beneficiam de isenção de custas – art. 4, nº 1 al. b), nº 6 e nº 7, do Reg. Das Custas Processuais”.

Procedendo-se à retificação no acórdão original.


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Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I - A isenção de custas não abarca as custas de parte -nº 7 do art. 4 do RCP-, isto é, não abrange os reembolsos à parte vencedora a título de custas de parte, e só a ressalva contida na primeira parte desse nº 7 “casos de insuficiência económica, nos termos da lei de acesso ao direito e aos tribunais” consubstancia uma situação de exceção àquela regra.


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Decisão:


Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a reclamação e reforma-se o acórdão reclamado quanto a custas, nos seguintes termos:

“Custas pelos autores/recorridos, mas beneficiando estes de isenção de custas – art. 4, nº 1 al. b), estas ficam limitadas a eventuais encargos, art. 4, nº 6 e custas de parte, art. 4, nº 7, do Reg. das Custas Processuais”.

Retifique-se no acórdão reclamado.


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Custas deste incidente de reclamação pelos autores/reclamados, (limitadas às custas de parte) – art. 4, nº 1 al. b) e nº 7, do RCP.

Lisboa, 23-03-2021

Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Nos termos do art. 15-A, do Dl. nº 10-A/2020 de 13-03, aditado pelo art. 3 do Dl. nº 20/2020 atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.

Maria Clara Sottomayor – Juíza Conselheira 1ª adjunta

António Alexandre Reis – Juiz Conselheiro 2º adjunto

A Ação Popular está prevista na Constituição Federal Brasileira, em seu art. 5º, inciso LXXIII, como instrumento hábil, à disposição de qualquer cidadão, visando a anular ato lesivo ao patrimônio público (ou de entidade da qual o Estado participe), à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

Da rasa leitura do texto constitucional nota-se, diante da natureza dos interesses tutelados em lume, a indisponibilidade dos bens jurídicos reclamados. Referida característica tornaria, em princípio, descabida a produção do depoimento pessoal no bojo de ações populares.

Isto porque, nos termos do artigo 343 do Código de Processo Civil Brasileiro, o depoimento pessoal é meio de prova requerido pela parte com o escopo de esclarecer fatos discutidos na causa, bem como obter ou provocar confissão da parte contrária. Nessa vereda, destaque-se que, nos dizeres do artigo 351 deste mesmo diploma legal, não se admite como confissão a admissão, em juízo, de fatos relativos a direitos indisponíveis.

Cumpre dizer que, grosso modo, consideram-se indisponíveis os direitos fundamentais do homem, precipuamente os que dizem respeito à coletividade, notadamente os que atingem o patrimônio público, a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural.

Portanto, apresenta-se a ação popular como verdadeiro instrumento de defesa de interesse público, de natureza inegavelmente indisponível. Por conseguinte, não pode ter por objeto a defesa de posições nítida e essencialmente individuais, muito embora a decisão perseguida possa evidentemente refletir sobre posições singulares e destacadas do contexto coletivo.

Esta característica, i.e., a indisponibilidade, por regra afastaria a utilidade da tomada de eventual depoimento pessoal em sede de ação popular, independentemente de se considerar o cidadão como substituto processual da sociedade ou como legitimado autônomo para a condução do processo.

Aliás, a indisponibilidade do interesse veiculado na ação popular é de tamanha importância que, mesmo nos casos em que ela for julgada improcedente por falta de provas, sua repropositura não só é possível como pode ser consumada pelo mesmo autor da ação popular primitiva, conforme aponta EDUARDO ARRUDA ALVIM, em sua obra “Direito Processual Civil”, São Paulo, RT, 2008, p. 644, in verbis:

“A coisa julgada na ação popular opera efeitos erga omnes, salvo se julgada improcedente por falta de provas. O que se pode questionar, entretanto, é se, mesmo tendo sido julgada improcedente por falta de provas, ou seja, sendo possível a repropositura da ação, poderia ser intentada pelo mesmo autor da ação popular.

A propósito, diz com inteiro acerto Ada Pellegrini Grinover: “Em linha interpretativa, tem-se discutido a respeito de o mesmo autor, popular ou coletivo, poder valer-se da faculdade de intentar nova ação, com idêntico fundamento, após a rejeição da demanda por insuficiência de provas. Estamos com Barbosa Moreira, que se manifestou afirmativamente, ao escrever sobre o art. 18 da Lei 4.717/65: se a lei quisesse impedir a renovação da demanda pelo mesmo autor popular teria dito ‘qualquer outro cidadão’ em vez de ‘qualquer cidadão’. O raciocínio aplica-se ao inc. I do art. 103 do Código, que utiliza a expressão ‘qualquer legitimado’ e não ‘qualquer outro legitimado’”. (apud Ada Pelegrini Grinover, Código brasileiro de defesa do consumidor comentado... cit., 8. ed., comentários ao art. 103, item 3, p. 926).

Todavia, nem sempre a produção de depoimento pessoal em sede de ação popular mostra-se de todo inútil, mesmo potencialmente. De fato, o depoimento pessoal afigura-se possível quando em análise a própria legitimidade de seu autor considerando-se o interesse de agir preponderante que o levou ao ajuizamento da ação popular, inclusive para condená-lo, em litigância de má-fé, caso ao final seja a ação declarada absolutamente improcedente.

Antes de se prosseguir no trato do assunto em pauta, oportuna a transcrição do art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal Brasileira:

“LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;”

Destaca-se, da parte final do artigo, que o autor da ação popular fica isento do pagamento de custas judiciais e do ônus da sucumbência, salvo comprovada má-fé. Neste aspecto, esta medida revela-se de razoabilidade e justiça ímpares, posto que o autor da ação popular não age em proveito próprio, mas em favor dos interesses da própria coletividade na qual se insere. Sem dúvida o autor será beneficiado com a procedência da ação, porém de forma oblíqua e indireta.

Entretanto, referida isenção não pode ser utilizada pelo autor que, tendo interesse expressivo e direto na demanda, utiliza-a com o único objeto de evitar eventual responsabilização no caso de insucesso da empreitada judicial postulada, notadamente quando sabedor, já de início, da exígua e rarefeita possibilidade de sua procedência. O benefício concedido pela Constituição tem como premissa o fato de o autor da ação popular despender seus esforços em benefício da coletividade; caso constatado que o esforço do autor preconiza, ao contrário, a satisfação imediata e direta de seu interesse pessoal, descabida a utilização da ação popular.

Aclare-se a situação ventilando-se caso hipotético: Município publica edital de licitação de coleta de resíduos sólidos apondo, como requisito para participação do certame e execução dos serviços, que o licitante conte com veículos de determinada capacidade de carga (por exemplo, 5 toneladas); cidadão ajuíza ação popular questionando a legalidade de referida exigência, posto que a coleta de resíduos sólidos poderia ser realizada por veículos de menor tonelagem (no caso, 3 toneladas), pleiteando a nulidade do certame.

O autor da ação popular, neste caso hipotético, em tese estaria a defender interesse de toda a coletividade: uma vez declarada a nulidade do certame, nova publicação editalícia readequando as exigências nos termos do quanto pretendido na ação popular, permitiria a participação de um número maior de licitantes e, por conseguinte, ampliaria a possibilidade de o Município licitar o mesmo serviço por preços menores.

Contudo, há de se convir: eventual informação técnica sobre a capacidade de tonelagem de caminhões de coleta de resíduos sólidos, bem como sua eficiência no cumprimento do contrato licitado pela Municipalidade não é de fácil obtenção, muito menos conhecimento difundido no ramo profissional respectivo.

De outra parte, se houver empresa que decida discutir a legalidade do certame em juízo, por considerar que seus veículos, mesmo com capacidade de carga inferior à do edital, para tanto deverá suportar inúmeros custos. Por primeiro, contratos de coleta de resíduos sólidos desta estirpe normalmente revelam valores contratuais de altíssima monta. Portanto, não fazendo jus a empresa aos benefícios da gratuidade judiciária, somente para distribuir a ação ordinária de impugnação em testilha já deverá recolher custas processuais em patamares consideráveis (isto sem contar com os honorários advocatícios contratados). Se pretender a realização de perícia no curso da ação, também deverá proceder ao recolhimento dos honorários periciais bem como custear eventuais provas técnicas correlatas. Ao final, se a ação for julgada improcedente, a empresa será condenada ao pagamento de honorários advocatícios em favor da Municipalidade, também em patamares altos diante do valor da causa em discussão, sem prejuízo das custas e demais despesas remanescentes.

Percebe-se, portanto, que se a empresa decidir pelo ajuizamento de ação em defesa de direito próprio, os custos de sua empreitada revelar-se-ão extremamente altos.

Por tais razões, referida empresa jamais poderá se utilizar de pessoa interposta, no caso cidadão que ajuíza ação popular, para, esquivando-se dos custos da demanda, pleitear direito próprio ‘pseudodenominado’ coletivo.

E por que tantas divagações sobre este caso hipotético? Qual a relação destas circunstâncias com o depoimento pessoal em sede de ação popular?

A resposta é evidente: a produção do depoimento pessoal, em situações desta natureza, apresenta-se como o meio processual mais eficaz para aferição dos reais propósitos do autor da ação popular, com o objetivo de aferir se o interesse tutelado é realmente da coletividade ou, de outra parte, é nitidamente particular.

No exemplo hipotético, durante o depoimento pessoal poderia ser aferida a formação profissional do autor da ação popular; se engenheiro, se sua atividade profissional é afeta aos serviços de coleta de resíduos sólidos, bem como para quem trabalha, posto ser possível laborar, inclusive, para empresa que pretendia participar do certamente licitatório, mas não preenchia os requisitos técnicos ora impugnados; se leigo na matéria técnica, quem lhe forneceu referidas informações, a que título e com qual propósito, etc.

Portanto, há hipóteses em que o depoimento pessoal em ação popular não se mostra inútil; ao contrário, representa medida essencial para a correta condução do processo, análise de seus pressupostos processuais (notadamente a legitimidade e o interesse processual, subdividido nos interesses de agir e de adequação) e, por fim, condenação do autor, se o caso, ao pagamento das custas judiciais e do ônus da sucumbência, caso reste, ao final, manifesta sua má-fé com a propositura do feito.