A ascenção dos populistas autoritários

Artur Farage Boya

Rafaela Caroline Batista Forappani

Resumo

O presente artigo faz parte de uma série de três textos que pretendem analisar a ascensão dos populismos autocráticos na América Latina. Neste primeiro trabalho, tem-se em perspectiva a contextualização do fenômeno populista, evidenciando suas diferentes manifestações na região latino-americana e apresentando os parâmetros a serem utilizados nas demais produções da série. Nos próximos dois textos, serão apresentadas análises conjunturais sobre o populismo autoritário na Venezuela e no Brasil.

Sobre o populismo

Considerado um dos grandes fenômenos da organização política, a experiência do populismo provoca grandes discussões no âmbito das Relações Internacionais e da Ciência Política. O termo, cujas primeiras aparições remontam ao período medieval, adquire maior destaque na modernidade, “em meio a duas ideias de forte carga teleocrática – revolução e democracia – que lhe configuram o sentido até hoje” (MITRE, 2008, p. 9). No entanto, é necessário ressaltar que há dificuldades para estruturar uma definição de populismo, isto porque, ao longo da história, o termo foi utilizado para caracterizar diferentes movimentos políticos e sociais ao redor do mundo, em regiões como África, Ásia, Leste Europeu e a América (PRADO, 1981).

Dessa forma, em um esforço para traçar as características comuns desses movimentos, que surgem a partir de contextos distintos, vale destacar os trabalhos de Ernesto Laclau, especialista em filosofia política. A partir de suas observações, Laclau constatou que o fenômeno populista surge em contextos de crise do discurso ideológico dominante em uma determinada sociedade (LACLAU, 2005, apud PRADO, 1981). Ainda segundo o autor, o populismo pode ser entendido como “um processo eminentemente político de construção de identidades coletivas, marcado pela centralidade da ideia de povo” (LACLAU, 2005, p.12)

Nesse sentido, uma das principais estratégias utilizadas pelos líderes populistas ao redor do mundo é a articulação de discursos dirigidos às massas. Nesta ótica, destaca-se a construção da dicotomia social entre os interesses do povo e da elite (CASARÕES; MAGALHÃES, 2021). Nota-se, no entanto, que tal oposição não está associada a um determinado espectro ideológico, de modo que “elite” diz respeito àqueles que ocupam os principais espaços de poder e detêm influência nos processos de tomada de decisão, enquanto que por “povo” entende-se toda a sociedade, independentemente de questões de raça, classe ou gênero, que se encontra à margem dos espaços ocupados pela elite (CASARÕES; MAGALHÃES, 2021).

Tendo isso em vista, o líder populista se apresenta como uma espécie de salvador, aquele que dará voz às demandas reprimidas das massas, representadas como um todo homogêneo, desconsiderando a pluralidade de interesses existentes na sociedade (CASARÕES; MAGALHÃES, 2021).  Por fim, é necessário ressaltar que, por não estar associado a um eixo ideológico, o fenômeno populista adquire diferentes expressões, particularidades e inflexões a depender do contexto em que foi construído (MOFFITT, 2016). Dessa forma, o populismo pode se manifestar tanto à esquerda quanto à direita do espectro ideológico.

Sobre o populismo autocrático     

Um dos principais debates sobre o populismo, refere-se  à sua relação com a democracia[i]. A despeito das particularidades adquiridas pelo populismo em cada situação, a estratégia da construção dicotômica entre polos da sociedade, o povo e a elite, é central para o fenômeno. Assim, pode-se afirmar que há, em grande medida, uma polarização e uma redução dos espaços para o debate e a oposição (DE LA TORRE, 2007). Ademais, a figura carismática do líder e sua relação personalista com a população são aspectos do populismo que podem colocar a democracia em risco, caso viabilizem que o líder político atue autocraticamente, desrespeitando as instituições democráticas. Ainda sobre as dissonâncias entre o fenômeno e a democracia, abordando a ideia de discurso, central para a construção dos ideais populistas, destaca-se que os líderes podem utilizar essa ferramenta de modo a questionar as instituições de um país, independentemente do espectro ideológico.

Nesse sentido, uma das faces que se revela sobre o populismo é a sua capacidade de adquirir expressões autocráticas. Segundo Levitsky e Ziblatt (2018), as condutas autocráticas são manifestadas pela articulação de discursos e ações que questionam ou tentam mudar as regras do jogo democrático; pela tentativa de restrição à liberdade de expressão e de imprensa; pela negação da legitimidade da oposição e pela incitação e tolerância do uso da violência contra a sociedade.

Ademais, esse viés populista não só valoriza o líder e despreza as instituições políticas, mas, também, apresenta forte negacionismo, ou seja, menospreza conhecimentos e opiniões que não são do interesse do líder, rejeitando a diversidade de opiniões e a liberdade de expressão (PINKER, 2018). Dessa forma, é possível pontuar que o populismo desafia a ordem democrática liberal, uma vez que “(…) a promoção da democracia envolve o estímulo à implementação de alguns procedimentos liberais democráticos, como a realização de eleições periódicas livres, a institucionalização do Estado de direito, da liberdade de expressão e de imprensa” (KURKI, 2010, p. 4, – tradução nossa[ii]).

Os populismos na América Latina

A trajetória política da América Latina é marcada por um histórico de colonização e exploração, situando-se, politicamente, na periferia do Sistema Internacional (DINIZ, 2007). Nesse sentido, um dos períodos relevantes para o desenvolvimento político da região é o século XX, com a ascensão de governos populistas. Considerando as premissas sobre populismo expostas na seção anterior, deve-se considerar, relativamente à experiência latino-americana, certas características compartilhadas pelos países da região. Dentre elas, destaca-se a forte presença da ideia de luta contra um inimigo, seja ele interno ou externo, bem como os discursos carismáticos voltados à exaltação da virtuosidade do povo (PRADO, 1981). Diante disso, não é coincidência que líderes populistas da região tenham buscado a ampliação do sufrágio, a fim de aumentar o envolvimento popular. Entretanto, na contramão da expansão da participação popular, é necessário ressaltar que, em muitos casos, o fenômeno populista adquiriu expressões antidemocráticas, promovendo ou surgindo a partir de golpes de Estado. (O’DONNELL, 2010; LACLAU, 2005).

Ademais, nos regimes populistas da região é recorrente a existência de relações personalísticas entre os cidadãos e os líderes políticos. A origem disso pode ser explicada pelos períodos do caudilhismo[iii], referente aos países que pertenceram a América Espanhola, e do coronelismo[iv], relacionado ao Brasil, em que os líderes políticos detinham poderes além dos previstos pelas Constituições e, em muitos casos, se mantinham ou chegavam ao poder através da violência, assumindo aspectos do autoritarismo.

O populismo adquiriu diferentes expressões ao longo da história, estando presente, também, em alguns governos da virada à esquerda da região, que se iniciou com a ascensão de Hugo Chávez na Venezuela, em 1998, como uma resposta às falhas dos governos neoliberais norteados pelo Consenso de Washington. Também conhecida como Onda Rosa, a guinada à esquerda foi marcada por uma maior atuação do Estado nos países latino-americanos, com um forte assistencialismo e políticas sociais (PARAMIO, 2006).

Contudo, é importante ressaltar a heterogeneidade presente nesse movimento, expressa na identificação de dois principais eixos, a esquerda dita moderada e a contestadora. A principal diferença entre esses grupos consiste no grau de rompimento com as ideias liberais e com os Estados Unidos. Dessa forma, os primeiros, moderados, adotam uma postura mais aberta às instituições liberais e às negociações com o mercado; na contramão disso, os contestadores se opõem fortemente aos Estados Unidos e questionam as instituições liberais (FUKUSHIMA, 2019). Em alguns casos, as lideranças situadas dentro desse espectro podem ser analisadas pela ótica do populismo, na medida em que articulam discursos fundamentados na dicotomia entre os interesses do povo e da elite política governante à época.

Nesse sentido, embora o período da Onda Rosa seja associado a melhorias significativas no aspecto social, resultantes das políticas assistencialistas promovidas pelos governos desse espectro, é necessário ressaltar que esses governos também estabeleceram desafios à ordem democrática. Em grande medida, os governos desse período buscaram aumento da accountability vertical, entre governados e governantes, promovendo reformas constitucionais e inserção de mecanismos como “orçamento participativo”, e reduziram a accountability horizontal, referente à atuação das instituições democráticas, como o Poder Legislativo e o Judiciário  (WOLFF, 2013). Por essa ótica, governos como a Venezuela, representante da ala contestadora, adquirem expressões de populismos autocráticos, uma vez que os líderes do Executivo questionam e coíbem o funcionamento dos mecanismos do Estado democrático de Direito, e se apresentam à população como os grandes salvadores do país.

Em sequência, após o declínio da guinada à esquerda que teve início em 2006, a América Latina passa a ser acometida, a partir de 2010, pela ascensão de governos de direita. Para além das reformas econômicas que acompanharam essa nova virada no espectro ideológico da região, destaca-se, também, na arena política, a projeção de líderes populistas de direita (MONTEIRO, 2021). Nesses termos, assim como em experiências anteriores, os discursos que demarcavam o descontentamento com os anos anteriores, construindo uma oposição entre a elite política e o povo, se fizeram presentes na trajetória desses novos líderes (MONTEIRO, 2021). O desafio, no entanto, começa a partir do questionamento, feito por essas personalidades políticas, do funcionamento da democracia representativa, promovendo e reforçando entre a população, o sentimento de insatisfação com o regime democrático (MONTEIRO, 2021).

Dentre tais governos, um dos mais notórios é o de Jair Bolsonaro, presidente brasileiro eleito em 2018. O ex-militar construiu sua campanha presidencial a partir do espectro político dos valores da extrema-direita, e se posicionou como o defensor da família, do nacionalismo, da religião e da ordem capitalista (CASARÕES, 2020). Na presidência, Bolsonaro, que já era notório pela trajetória política com declarações que desafiam a ordem democrática, marcou presença em atos em celebração à Ditadura Brasileira, além de se valer da Lei de Segurança Nacional em tentativas de silenciar críticos de seu governo (BALTHAZAR, 2021).

Assim, nota-se que o desenvolvimento político dos países latino-americanos apresenta convergências que podem ser explicadas pela própria trajetória histórica da região. Nesse sentido, não obstante as particularidades de cada Estado, discussões sobre a orientação política da região como um todo ganham destaque. No cenário atual da pandemia da Covid-19, surgem insatisfações e reivindicações políticas para com os governantes. À vista de períodos eleitorais em diversos países, abre-se espaço para discussões e previsões sobre o futuro do desenvolvimento político latino-americano.

Considerações Finais

O populismo pode ser definido como uma estratégia política marcada pela centralidade da ideia de povo. Através da articulação de discursos, líderes populistas buscam construir uma dicotomia entre o povo e a elite dominante, além de promover a imagem de salvador durante seus governos. Em alguns casos, o populismo pode adquirir expressões autoritárias, na medida em que os líderes passam a estimular o uso da violência, a deslegitimação da oposição, a disposição para restringir liberdades civis e, por fim, a alteração dos procedimentos democráticos.

Tendo isso em vista, ressalta-se que o estudo do populismo também deve considerar as especificidades de cada país e a própria pluralidade do fenômeno, considerando as proposições de que o populismo não é vinculado a uma ideologia específica. Assim, uma análise mais assertiva sobre o grau de rompimento com as instituições democráticas depende, também, do contexto político interno do Estado estudado. Logo, os próximos artigos da série se dedicarão à análise de populismos autoritários na América Latina, sendo o Brasil um exemplo de caso de direita e a Venezuela de esquerda.

Referências

BALTHAZAR, Ricardo. Conheça os 20 atingidos por investigação de crimes da Lei de Segurança Nacional e opositores de Bolsonaro. Folha de São Paulo. 2. mai  2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/conheca-20-atingidos-por-investigacoes-de-crimes-da-lei-de-seguranca-nacional-e-opositores-de-bolsonaro.shtml> . Acesso em: 10. mai. 2021

CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão Conceitual. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n. 2, p. , 1997. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 de maio de 2021. 

CASARÕES, Guilherme. The First Year of the Bolsonaro‘s Foreign Policy. Latin American and the New Global Order: Dangers and Opportunities in a Multipolar World, Itália, ed. 1, p. 81-109, 202

CASARÕES, G.; MAGALHÃES, D. A aliança da hidroxicloroquina: como líderes de extrema direita e pregadores da ciência alternativa se reuniram para promover uma droga milagrosa. Revista de Administração Pública, v. 55, n. 1, p. 197-214, 19 fev. 2021.

DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Volume 1. UNB, 2001.

DE LA TORRE, Carlos. The Resurgence of Radical Populism in Latin America. Constellations, [s. l], p. 384-97, 2007.

DINIZ, Dilma Castelo Branco. O Conceito de América Latina: Uma Visão Francesa. Caligrama. Belo Horizonte, n.12,2007, p. 129-148.

FUKUSHIMA, Kátia Alves. Os impasses à democracia participativa nos governos de esquerda: os casos do Brasil, do Chile e da Venezuela. colomb.int. Bogotá ,  n. 98, p. 105-135, abril de 2019. Disponível em:<http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-56122019000200105&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 de maio de 2021.

GAZELLO, Ana Elisa Thomazella. O declínio da “onda rosa” e os rumos da América Latina. Observatório REPRI, junho de 2018. Disponível em: <http://observatorio.repri.org/2018/06/04/o-declinio-da-onda-rosa-e-os-rumos-da-america-latina/>. Acesso em: 10 de maio de 2021.

KURKI, Milja. (2010). Democracy and Conceptual Contestability: Reconsidering Conceptions of Democracy in Democracy Promotion.International Studies Review, 12(3), 362-386.

LACLAU, Ernesto. La entrevista. Ernesto Laclau:”El populismo garantiza la democracia” [Entrevista cedida a Carolina Arenes]. La Nácion. 10 de Julho de 2005. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/opinion/ernesto-laclau-el-populismo-garantiza-la-democracia-nid719992/> Acesso em: 19 de Mar. 2021.

LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo, Brasil: Três Estrelas, 2005. 383 p. ISBN 978-65339-19-3.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MITRE, A. F. As peregrinações de um conceito: populismo na América Latina.Cadernos de História, v. 10, n. 13, p. 9-23, 13 dez. 2008.

MOFFITT, Benjamin. The global rise of populism: Perfomance, Political Style and Representation. Stanford, California: Stanford University Press, 2016. 207 p. ISBN 97808804799331.

MONTEIRO, Mercedes García. Um novo giro á esquerda na América Latina?. Folha de São Paulo, [S. l.], 17 mar. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/latinoamerica21/2021/03/um-novo-giro-a-esquerda-na-america-latina.shtml?pwgt=kl0376c881twdl7oo36jkhmgzdjpsxkvwbktszs66ekryz9e&utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwagift. Acesso em: 3 maio 2021.

NASCIMENTO, Ulisses Alves. O que é Accountability e como fortalece a democracia?. CLP – Liderança Pública, 18 de Fevereiro de 2019. Disponível em: <https://www.clp.org.br/o-que-e-accountability/>. Acesso em: 19 de março de 2021.

O’DONNELL, Guillermo A, Revisando la democracia delegativa. Tiempo Laberinto, 2010, p.02-08

PARAMIO, Ludolfo. Giro a la izquierda y regreso del populismo. Nueva Sociedad, 2006. Disponível em: <https://nuso.org/articulo/giro-a-la-izquierda-y-regreso-del-populismo/>. Acesso em: 10 de maio de 2021.

PINKER, Steven. Enlightenment now: the case for reason, science, humanism and progress. Viking, an imprint of Penguin Random House LLC. 2018.

PRADO, Maria Ligia Coelho. O populismo na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1981. Introdução.

SARTORI, G. A Teoria da Democracia Revisitada. Vol. 1, 1994. O Debate Contemporâneo. (Capítulo 8).

WOLF, Eric R; HANSEN, Edward C. Caudillo Politics: A Structural Analysis. Comparative Studies in Society and History, Volume 9, Issue 2, janeiro de 1967. 168-179.

WOLFF, Jonas. Towards Post-Liberal Democracy in Latin America ? A Conceptual Framework Applied to Bolivia. Journal of Latin American Studies, Vol 45, Issue 01, February 2013, p. 31-59.

Notas

[i]Para o presente artigo, consideramos a definição procedimental de democracia, isto é, segundo Dahl (2001) a garantia da igualdade política entre os cidadãos, e da execução dos procedimentos do processo decisório da Democracia. Ver mais em  Sartori (1994) e Dahl (2001).

[ii] (…)”that democracy promotion entails liberal democracy promotion, that is, the promotion of certain key liberal democratic procedures – encompassing electoral processes and institutionalisation of rule of law, freedoms of expressions, press and association” (KURKI, 2010, p.4).

[iii] Ver mais em WOLF, HANSEN,1967.

[iv] Ver mais em CARVALHO, 1997.