Quais são os esforços realizados pelas nações ou órgãos como a UNESCO para evitar a destruição

Anauene Dias Soares

Universidade de São Paulo, Brazil

Destruição do patrimônio cultural: crime de guerra *

Via iuris, núm. 25, pp. 1-30, 2018

Fundación Universitaria Los Libertadores

Recepção: 22 Agosto 2017

Revised document received: 28 Maio 2018

Aprovação: 19 Junho 2018

Resumo: Ao patrimônio cultural são atribuídos valores históricos e culturais para uma determinada nação. Deve se considerar que muitos destes bens são identidade e memória da história e da cultura de toda a humanidade. A destruição intencional e direta de um patrimônio cultural em determinado território em tempo de guerra é crime de guerra e deve ser tratado como tal pelo Direito Humanitário. O artigo analisa o caso de Timbuktu, em que a destruição de patrimônio cultural foi considerado crime de guerra. Um breve histórico sobre a proteção do patrimônio cultural em tempos de guerra é apresentado, bem como a normativa vigente, entre elas, a Resolução 2347 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, sendo a primeira resolução voltada apenas à proteção do patrimônio cultural em caso de conflito armado. Por fim, é abordado a primeira condenação de crime de guerra pelo Tribunal Penal Internacional de destruição direta de patrimônio cultural, ocorrida em Mali.

Palavras-chaves: Direito humanitário, Patrimônio cultural, Crime de guerra, Evolução Histórica, Resolução 2347, Caso de Timbuktu.

Resumen: Al patrimonio cultural se les asignan valores históricos y culturales para una determinada nación. Debe considerarse que muchos de estos bienes son identidad y memoria de la historia y de la cultura de toda la humanidad. La destrucción intencional y directa de un patrimonio cultural en determinado territorio en tiempo de guerra es crimen de guerra y debe ser tratado como tal por el Derecho Humanitario. El artículo analiza el caso de Timbuktu, en el que la destrucción de patrimonio cultural fue considerada crimen de guerra. Se presenta, una breve historia sobre la protección del patrimonio cultural en tiempos de guerra, así como la normativa vigente, entre ellas, la Resolución 2347 del Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas, siendo la primera resolución dirigida únicamente a la protección del patrimonio cultural en caso de conflicto armado. Por último, se aborda la primera condena de crimen de guerra por la Corte Penal Internacional de destrucción directa de patrimonio cultural, ocurrida en Malí.

Palabras claves: Derecho humanitario, Patrimonio cultural, Crimen de guerra, Evolución Histórica, Resolución 2347, Caso de Timbuktu.

Abstract: Cultural heritage is given historical and cultural values ​​for a given nation. It must be considered that many of these goods are identity and memory of the history and culture of all mankind. The intentional and direct destruction of a cultural heritage in a given territory in time of war is a war crime and must be treated as such by humanitarian law. The article analyzes the case of Timbuktu, in which the destruction of cultural patrimony was considered a crime of war. A brief history on the protection of cultural heritage in times of war is presented, as well as current legislation, among them Resolution 2347 of the United Nations Security Council, the first resolution aimed only at the protection of cultural heritage in case of armed conflict. Finally, the first indictment of a war crime by the International Criminal Tribunal for the Direct Destruction of Cultural Heritage in Mali is addressed.

Keywords: Humanitarian law, Cultural heritage, War crime, Historic evolution, Resolution 2347, Case of Timbuktu.

Résumé: Le patrimoine culturel se voit attribuer des valeurs historiques et culturelles pour une nation donnée. Il faut considérer que nombre de ces biens sont l’identité et la mémoire de l’histoire et de la culture de l’humanité tout entière. La destruction intentionnelle et directe d'un patrimoine culturel sur un territoire donné en temps de guerre est un crime de guerre et doit être traitée comme telle par le droit humanitaire. L'article analyse le cas de Tombouctou, dans lequel la destruction du patrimoine culturel était considérée comme un crime de guerre. Un bref historique de la protection du patrimoine culturel en temps de guerre est présenté, ainsi que de la législation actuelle, dont la résolution 2347 du Conseil de sécurité des Nations Unies, la première résolution visant uniquement à la protection du patrimoine culturel en cas de conflit armé. conflit armé. Enfin, le Tribunal pénal international pour la destruction directe du patrimoine culturel au Mali met en accusation pour la première fois un crime de guerre.

Mots-clés: droit humanitaire, Patrimoine culturel, Crime de guerre, Evolution historique, Résolution 2347, Affaire Tombouctou.

Apresentação

As guerras arruínam Estados. Isso inclui a destruição, a pilhagem e o saque do patrimônio cultural. A destruição de um bem cultural pode constituir uma forma de genocídio cultural ou de desmoralizar povos beligerantes opostos; o lucro da pilhagem e do saque são utilizados para financiar o terrorismo1, com isso o patrimônio cultural tem sido mais uma vítima da guerra. A destruição do patrimônio cultural acarreta uma perda para toda a humanidade

Precedentes históricos da guerra e da proteção do patrimônio cultural são remontados pela proteção desses bens culturais e esta não pode se vincular às necessidades militares de atingir um resultado vitorioso, que está subjacente a todo direito internacional humanitário.

A destruição direta de bens culturais em conflitos armados tem se intensificado. Há atentados praticados por grupos extremistas no Afeganistão, Iraque, Líbia, Mali, Síria, Iêmen entre outros.

Dentre esses atentados, o grupo extremista Talibã destruiu duas esculturas do Buda, datadas do século V e classificadas como Patrimônio da Humanidade, na cidade de Bamyan, no Afeganistão, em 2001. Os extremistas alegaram que as esculturas eram ofensivas a um preceito muçulmano contrário a adoração de imagens. Na época, a Resolução 1267 de 1999 do Conselho de Segurança já previa a respeito do patrimônio histórico e cultural do país.

O Iraque também atenta contra o patrimônio cultural nacional. O grupo extremista autodenominado "Estado Islâmico" (EI) destruiu um sítio arqueológico no norte do Iraque, bem como as ruínas da cidade de Nimrud, artefatos assírios do museu em Mossul e mais de 8 mil manuscritos da biblioteca da mesma cidade. Além disso, o EI comercializa bens culturais no mercado negro, transformando antiguidades em uma importante fonte de renda para financiar o terrorismo.

O mesmo grupo extremista destruiu, vandalizou e saqueou bens históricos e culturais na cidade de Palmira, centro da Síria, considerada Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), bem como a cidade de Allepo, hoje em ruínas. Cerca de 300 locais de interesse histórico, cultural e religioso já foram danificados, saqueados ou totalmente destruídos na guerra civil da Síria.

Esses ataques violam as resoluções do Conselho de Segurança, tal como a Resolução 2199 que condena a destruição do patrimônio cultural e adota medidas legais para conter o tráfico ilícito de antiguidades e objetos culturais do Iraque e Síria.

Para colaborar com a proteção do patrimônio cultural, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou algumas Resoluções a fim de coibir a destruição, saque, pilhagem e comércio de bens culturais voltados para o financiamento do terrorismo2. Essas resoluções salientam a necessidade de respeitar os interesses do patrimônio arqueológico, histórico, cultural e religioso do Iraque e Síria, e de continuar protegendo bens culturais, bem como os museus, bibliotecas e monumentos nessa região.

No entanto, a discussão do artigo se baseará apenas na Resolução 2347 do Conselho de Segurança, aprovada em 24 de março de 2017, que é a primeira resolução voltada única e exclusivamente para a proteção do patrimônio cultural em caso de conflito armado. Todas as resoluções citadas acima e aprovadas pelo Conselho de Segurança, ressaltam o fim do terrorismo e a busca pela segurança e paz internacionais, trazendo apenas tópicos de proteção do patrimônio cultural.

Os atentados de destruição do patrimônio cultural e as resoluções citadas acima contribuíram significativamente para a aprovação da Resolução 2347. A resolução condena a destruição do patrimônio cultural e o roubo e contrabando de bens culturais, em caso de conflitos armados. A aprovação da resolução, sublinha que esses ataques são uma tática de guerra com o objetivo de desintegração das sociedades, trazendo uma preocupação para além dos aspectos materiais.

Durante muito tempo a discussão se voltava apenas para os aspectos materiais dos bens culturais, como a destruição de monumentos e o roubo de obras de arte durante a Segunda Guerra Mundial. Atualmente, a UNESCO e a comunidade internacional têm destacado também a importância das características imateriais do patrimônio cultural, legitimado pela Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003.

O termo genocídio cultural, utilizado por Irina Bokova, Diretora-Geral da UNESCO, demonstra que não há apenas destruição física de um bem, mas também uma perda cultural. É uma forma de agredir o inimigo, aniquilando sua cultura e tudo que ela possa representar. Foi o caso de Timbuktu, em que Al-Mahdi cometeu crimes de guerra ao destruir monumentos históricos de valor cultural e religioso, incluindo nove mausoléus e uma mesquita na cidade de Timbuktu, na região central do Mali, entre 30 de junho e 10 de julho de 2012.

Por isso, há um debate na UNESCO acerca da invocação da Responsabilidade de Proteger (R2P) no domínio cultural, já que a destruição do património cultural poderia ser um ato preparatório para o genocídio e justificaria a intervenção da comunidade internacional.

Os Estados têm a responsabilidade primordial de proteger os bens culturais que se encontrem em seu território. Nesse sentido, o Direito Internacional regulamenta em tempo de guerra a proteção do patrimônio cultural, notadamente, por meio da Convenção de Haia para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, de 1954, e seus dois Protocolos, de 1954 e 1999. Além disso, a Resolução 2347 do Conselho de Segurança também prevê a proteção do patrimônio cultural em caso de conflito armado.

A normativa internacional existente, no entanto, nem sempre se mostra efetiva, e violações sistemáticas dessas normas têm sido observadas recentemente, com consequente empobrecimento cultural e perda para as gerações futuras.

O objetivo deste artigo é analisar a destruição do patrimônio cultural como um crime de guerra por meio do caso de Timbuktu. Para tanto, apresenta-se um breve histórico sobre a proteção do patrimônio cultural em tempos de guerra e analisa-se a normativa em vigor aplicável em tempos de guerra e, em seguida, ressalta-se a primeira condenação do Tribunal Penal Internacional de destruição direta de patrimônio cultural com o caso de Timbuktu. Uma análise da Resolução 2347 do Conselho de Segurança e sua relevância para a aprovação pelo Conselho de Segurança da primeira Resolução (2347) voltada para o proteção do patrimônio cultural também é feita.

A partir da análise da evolução histórica do direito internacional humanitário, do arcabouço normativo atual e do caso concreto em apreço, responde-se, por fim, à pergunta base da presente pesquisa: de que maneira o Direito Internacional contemporâneo protege o patrimônio cultural em tempos de guerra?

Resultados y discusión

Breve histórico sobre a proteção do patrimônio cultural em tempos de guerra

As medidas protetivas elaboradas pelos Estados em tempos de guerra ou em tempos de paz e, principalmente, as provenientes de leis papais - que mesmo com a extinção dos Estados papais, continuaram a ser aplicadas -, contribuíram para a elaboração de políticas contemporâneas de proteção de bens culturais.

Da Antiguidade até o final da Idade Média, principalmente na Roma Antiga, o saque de bens culturais era uma prática considerada lícita durante as guerras. O vencedor, como era de costume, destruía propriedades de seus inimigos e saqueava e pilhava seus bens culturais, tal como ocorreu com o Partenon, em Atenas (480 a.C.), atacado pelos persas.

Não obstante, no Direito Romano, o saque se dava pelo princípio si quid bello captum est, praeda est, non postliminio redit_. Assim, também se dera pela publicatio, bens considerados como propriedade do povo, declarados bens públicos, como exemplo rios e mares.

Nas cruzadas da Idade Média, no período entre os séculos X a XIII, eram comuns os saques de bens culturais. Diante da benevolência da Igreja perante as cruzadas e com a promessa de isenções de indulgências e de punições no purgatório, o saque era ainda mais acentuado pelos vencedores dos conflitos de guerra.

Ainda, outras medidas eram adotadas para a transferência dos bens culturais de acordo com Hugo Grotius (2006): o butim, entendido como uma prática em proveito da sociedade romana, realizado por meio do saque dos bens culturais como apropriação desses para venda e para distribuição de renda em benefício do tesouro público; a pilhagem, praticada em proveito das tropas que apropriavam-se dos bens que conseguissem carregar após a conquista de um território. Tudo praticado como ato de cortejos triunfais pelas tropas como símbolo da conquista lograda em guerra.

Na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), as populações germânica e boêmia sofreram inúmeros saques e destruições de seus bens culturais decorrentes dos ataques militares, como, por exemplo, o saque da biblioteca Palatina de Heidelberg, em 1622, realizado pela coalizão católica, que ofereceu tais obras ao papa. Atualmente, tais bens integram o acervo da biblioteca do Vaticano. Outro exemplo se dá pela apropriação e pela transferência de obras culturais de Praga para a Suécia, somando 317 bens transferidos, entre estátuas, artefatos de bronze, pinturas, e trabalhos literários (JOTE, 1994). Com o fim da guerra, foi assinado o primeiro tratado sobre a restituição de bens culturais advindos de saques provenientes de conflitos armados, manifestado pela celebração de paz na Conferência de Westphália (1648).

Já no intervalo entre séculos XVI e XVIII, principalmente com o Renascimento e, posteriormente, com o Iluminismo, surgiram as primeiras questões sobre a proteção contra os saques dos bens culturais durante as guerras, devido à valorização do caráter histórico e artístico, principalmente com Alberico Gentili (1921), primeiro autor a mencionar obras de arte e a legitimar o butim dos bens inimigos por meio do direito de postliminio_, entende que "não somente a causa de guerra deve ser justa e adequada, mas a Guerra deve também começar e ser conduzida com justiça, e que templos e objetos sagrados devem ser protegidos em territórios conquistados”.

Emer de Vattel (2008), foi o primeiro autor a reconhecer os bens culturais como pertencentes à humanidade, em função de sua beleza, e a superioridade dos interesses em detrimento dos Estados beligerantes. Assim, segundo ele, qualquer um que esteja sob a prática de butim_, seria inimigo declarado da raça humana3 […], privando os homens dos monumentos de arte e de arquitetura. Ainda, em seu entendimento sobre a proteção do patrimônio cultural, numa guerra justa, quem a mantém tem o direito de exigir do inimigo uma contribuição para as despesas dessa e para o apoio do exército.

Andres Bello (1946) defende a transferência do bem ao captor desde que conduzido a lugar seguro - regra da propriedade do bem, senão o direito de postliminio se manteria.

As transferências, já não mais os saques reconhecidos como ilegais pelo regime revolucionário da época, eram lícitas quando praticados com o fim de transferir os bens culturais como contribuição para a manutenção das guerras ou compensação pela conquista. Com isso, firmaram-se tratados no período das conquistas Napoleônicas, como o Tratado de Parma (1796), o Tratado de Modena (1796), o Tratado de Bolonha (1796) e o Tratado de Tolentino (1797), instituindo armistícios constituídos de cláusulas específicas voltadas à restituição de bens culturais, com o fim de legitimar e de dar legalidade às transferências no Direito Internacional.

Ademais, os Tratados de Viena (1815) dificultavam a identificação dos bens culturais obtidos pelos saques e os provenientes dos tratados, por não dispor de nada a respeito da restituição desses bens. Assim, nesse mesmo ano, uma nota circular do primeiro-ministro inglês, Visconde Castlereagh, fundamentando a restituição do patrimônio cultural aos Estados vencedores, gerou a retirada, em média, de cinco mil obras do Museu do Louvre, restituindo-as aos Estados de origem.

O Código de Lieber (1864) foi a primeira codificação acerca dos saques e da destruição de bens culturais em conflitos armados, prevendo em seu artigo 35:

As obras de arte clássicas, bibliotecas, coleções científicas, ou instrumentos preciosos, tais como, telescópios astronômicos, assim como, hospitais, devem ser protegidos contra todo dano evitável, mesmo quando eles estão situados em locais fortificados enquanto cercados ou bombardeados.

As Conferências de Paz de Haia de 1899 e de 1907 foram as iniciativas mais importantes de proteção do patrimônio cultural até então. Nelas, foram codificados costumes de guerras. Apesar de não referenciarem o termo bem cultural, traziam outras denominações sobre os bens: inimigos, privados, públicos, privilegiados, entre outras. Previam normas restritivas à circulação dos bens culturais, proibindo a pilhagem, o confisco e a apropriação.

As medidas protetivas baseavam-se apenas na proteção material, na sua conservação diante de ataques e a bombardeios. No artigo 3 da Convenção de 1907, havia previsão somente quanto à imputação de indenização por dano ou destruição de bens culturais.

Constatou-se a ineficácia desses documentos internacionais na Primeira Guerra Mundial, com o exemplo emblemático do incêndio da biblioteca de Louvain - Bélgica, que destruiu aproximadamente três mil obras, o que gerou a celebração de diversos tratados desde esse período, a maioria voltada para a restituição de bens culturais aos territórios de origem. O primeiro foi o Tratado de Versalhes (1919), obrigando a Alemanha a restituir, à França, o Alcorão, originário da cidade de Medina, entre outras obras, cabendo reparação do dano se os bens houvessem sido destruídos.

No Anteprojeto da Convenção da Liga das Nações (1919), constavam políticas de proteção do patrimônio cultural, adotadas, atualmente, em tratados e convenções, com reconhecimento de ser esse um interesse de cooperação internacional, em virtude do empobrecimento intelectual causado pela perda de bens culturais, independentemente da nação a qual pertença.

Posteriormente, foram celebrados o Tratado de Saint-Germain (1919), o Tratado de Trianon (1920), o Tratado de Neuilly-sur-Seine (1919), o Tratado de Sèvres (1920) e o Tratado de Riga (1921), com os países que haviam perdido a Primeira Guerra Mundial. O Pacto de Roerich (1935), foi o primeiro com características protetivas universais, para tempos de paz e de guerra, relacionado a “monumentos históricos, museus e instituições científicas, artísticas, educativas e culturais”, reconhecendo, no artigo 1º, a neutralidade dos bens culturais e, em seu preâmbulo, dispondo que a proteção abarca “todos os monumentos e móveis de propriedade nacional e particular que formam o tesouro nacional dos povos”.

A destruição do patrimônio cultural por meio das pilhagens cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, principalmente pelos nazistas alemãs - com destaque para o próprio Hitler, diante do enriquecimento de seus acervos particulares - estimulou, no pós-guerra, a elaboração da Convenção de Haia, com o objetivo central de proteger os bens culturais em tempos de conflitos armados.

Após a Segunda Guerra (1939-1945), estrutura-se a codificação acerca da normativa internacional em relação ao tráfico ilícito de bens culturais, outorgando-se à UNESCO a responsabilidade pela “preservação e proteção do patrimônio universal dos livros, obras de arte e monumentos de interesse histórico ou científico”.

Nas últimas décadas, ampliou-se o âmbito de aplicação de todos os princípios fundamentais do direito internacional humanitário. Originalmente, o chamado jus in bello era aplicado apenas a conflitos armados internacionais, como evidencia a Convenção de Genebra de 1864. As Convenções de Genebra de 1949 também tinham como objeto central a conduta dos beligerantes em conflitos armados internacionais. Apenas o artigo 3, comum às quatro Convenções de 1949, regia os conflitos de caráter não internacional. A evolução da sociedade internacional levou, contudo, à inadmissibilidade dos crimes cometidos também em conflitos que não extrapolam as fronteiras de um único Estado. Atualmente, portanto, o II Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949, concluído em 1977, e o Segundo Protocolo, de 1999, à Convenção de Haia de 1954, regulam a conduta dos beligerantes também em conflitos de caráter não internacional.

A aprovação de Resoluções pelo Conselho de Segurança contendo previsões para a proteção do patrimônio cultural de Estados beligerantes tornou-se necessária. Para tanto, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 2347 em março de 2017, sendo a primeira resolução com previsão exclusiva de proteção do patrimônio cultural em caso de conflito, que considera um atentado, dano e destruição como crime de guerra.

A proteção na Convenção de Haia de 1954 para a Proteção da Propriedade Cultural em Caso de Conflitos Armados e seus Protocolos de 1954 e 1997

A Convenção de Haia de 1954 estabeleceu, aos Estados partes, o respeito e a abstenção de hostilidade quanto aos bens culturais por meio de medidas que proíbam e previnam atos de roubo, pilhagem, desvio, vandalismo ou qualquer outra atividade praticada contra o patrimônio cultural, atribuindo a esses bens um caráter humanitário em escala internacional, dentro do Direito Humanitário.

Pela primeira vez foi introduzido no Direito Internacional o conceito de patrimônio cultural de toda a humanidade, voltada para a proteção internacional dos bens culturais, móveis e imóveis, segundo o preâmbulo da Convenção de Haia de 1954:

Convencidos de que os atentados perpetrados contra os bens culturais, qualquer que seja o povo a quem eles pertençam, constituem atentados contra o patrimônio cultural de toda a humanidade, sendo certo que cada povo dá a sua contribuição para a cultura mundial.

Isso insere o patrimônio cultural nos Direitos Humanos, consolidando-o como um bem de interesse da coletividade e de salvaguarda de responsabilidade da humanidade em proteger os bens culturais visando à sadia qualidade de vida para as gerações futuras, pois um desequilíbrio do meio ambiente cultural afetaria a dignidade humana, bem como a dignidade cultural (MARTINS; SOARES, 2014).

A responsabilidade comum internacional será solidária, se fundamentada em textos convencionais, como determinado na Convenção de Haia de 1954, em respeito à proteção do patrimônio cultural contra a hostilidade de atos lesivos contra os bens culturais, por eles terem caráter humanitário internacionalmente. Assim, no Direito Internacional da Solidariedade, nos dizeres de Alberto do Amaral Jr. (2011), o princípio da solidariedade está atrelado ao equilíbrio substancial nas trocas visando um fortalecimento do interesse comunitário.

A Convenção tem 40 artigos, divididos em sete capítulos. No artigo 1, define a propriedade cultural. Nela, a proteção do patrimônio cultural, comporta a salvaguarda e o respeito a esses bens (artigo 2), comprometendo-se as Altas Partes Contratantes a respeitar os bens culturais situados no seu próprio território e os do território de outras Altas Partes Contratantes, não permitindo a destruição ou deterioração em caso de conflito armado, conforme o artigo 4.

Ainda no mesmo artigo, há a proibição de qualquer ação de represália que atinja os bens culturais, bem como o roubo, a pilhagem, o desvio ou o vandalismo em relação a esses bens, impedindo, inclusive, a requisição dos bens culturais móveis situados no território de uma outra Alta Parte Contratante.

Com isso, as Altas Partes Contratantes estão sujeitas à proteção dos bens culturais localizados em seu território, por meio de medidas que considerarem apropriadas, em tempos de paz, contra eventuais conflitos que possam ocorrer (artigo 3). Assim como, por meio de abrigos temporários durante os conflitos ou durante os transportes dos bens culturais em proteção especial em meio a hostilidade, conforme o Capítulo III da Convenção de Haia. Igualmente, a parte contratante da Convenção, assume a obrigação de proteger o patrimônio do Estado ocupado a fim de evitar a destruição do patrimônio, como a transferência ilícita.

No Capítulo II, da mesma Convenção, conceitua-se a proteção especial, caracterizada pela imunidade assegurada aos bens, desde que inscritos no Registro Internacional, pelo qual um Estado pode solicitar à UNESCO, uma lista temporária de refúgios para o depósito de bens culturais após uma consulta às Altas Partes Contratantes, cuja localização o solicitante compromete-se a desmilitarizar (BO, 2003).

O artigo 19, trata da aplicação da Convenção em conflitos de caráter não internacional que surjam dentro do território das Altas Partes Contratantes, podendo a UNESCO, ainda, oferecer seus serviços.

Assim, a Convenção de Haia de 1954 é aplicada em tempos de paz e de guerra, tanto em conflitos armados internacionais quanto em conflitos de caráter não internacional, cabendo ao Estados participantes a elaboração de normas protetivas ao patrimônio cultural em consonância com a especificado na Convenção.

Na mesma data, em 1954, foi celebrado o Regulamento de Execução da Convenção de Haia de 1954. Ele prevê, no art. 18, o transporte de bens culturais situados em territórios com conflitos armados para outro Estado, que será o depositário, e que promoverá a restituição dos bens depois de terminado o conflito, em até seis meses, após a solicitação do Estado depositante.

Foi celebrado também, em 1954, o Protocolo para a Proteção de Propriedade Cultural em caso de Conflito Armado, denominado Protocolo I, baseado em dois propósitos: prevenir a exportação ilegal de bens culturais em período de conflitos armados e instar os Estados-membros a preservar bens culturais apreendidos durante as hostilidades (BO, 2003).

De acordo com o Protocolo I, há a obrigação de reter a importação, de impedir a exportação e de restituir os bens culturais exportados em desconformidade com as normas da Convenção, pelas Altas Partes Contratantes. Não obstante, atribui indenização aos possuidores de boa-fé dos bens culturais que devem ser restituídos (Art. 1, do Protocolo I).

Um segundo Protocolo, de 1999, alterou alguns pontos da Convenção, de forma a torná-la mais aplicável, mantendo sua aplicação para conflitos armados internacionais e não-internacionais. Dispõe sobre a proteção de bens culturais móveis de três formas: precauções contra ataques (art. 7), precauções contra efeito das hostilidades (art. 8) e proteção no território ocupado (art. 9), introduzindo obrigações aos Estados, como inventários, planos de emergência contra fogo e colapsos estruturais, remoção de bens culturais móveis para locais adequados, entre outros.

Em relação à proteção no território ocupado, de acordo com o art. 9 §1º, alínea ‘a’, o Estado contratante que ocupa parcial ou totalmente o território de outro, está obrigado a prevenir e proibir qualquer exportação, remoção ou transferência ilícita da propriedade de bens culturais. No mais, o Segundo Protocolo adotou de forma permanente a restituição, instituto exercido através dos tratados de paz, com origem na Conferência de Westphália (1648).

Há, até hoje, limitações e dificuldades em sua aplicação, ao adotar apenas restituição de bens culturais contra roubo, pilhagem, apropriação ilícita de bens culturais e atos de vandalismo (Art. 4, § 3º, Convenção de Haia 1954), durante conflitos armados internacionais. No mais, tais medidas de proteção estão submetidas às normativas de direito interno dos Estados-Parte, sendo também difícil a identificação da origem de tais bens para fins de restituição, sobretudo se ainda considerar o princípio da boa-fé nas normativas dos referidos países. Além de tudo, as categorias de bens culturais definidos e tutelados por Estado-membros são divergentes.

A Resolução 2347 do Conselho de Segurança

Raras foram as guerras nas quais a tragédia humanitária fora acompanhada de um cenário de devastação cultural e histórica tão significativo como os conflitos na Síria, Iraque e Mali. Embora sejam cotidianas as notícias sobre danos, saques e destruição intencional do patrimônio cultural, as informações sobre as dimensões dessas perdas ainda não mensuráveis. As armas não são suficientes para derrotar o extremismo violento.

Construir a paz também requer cultura, requer educação, prevenção e transmissão do patrimônio cultural.

O Conselho de Segurança da ONU acirrou sua produção de normas que visam o combate ao terrorismo desde 2001, assumindo, então, o interesse geral da humanidade na proteção e na salvaguarda do patrimônio cultural. O capítulo VII - artigos 39 a 51 - da Carta das Nações Unidas, autoriza a tomada de medidas coercivas no contexto da manutenção da paz e segurança internacionais. Com base no artigo 39, o Conselho de Segurança pode observar "a existência de qualquer ameaça à paz, violação da paz ou ato de agressão" e, após tal resposta e qualificação dos fatos, fazer recomendações (art. 40 ) ou recorrer de medidas não militares (art. 41) ou militares (art. 42) necessárias para a “manutenção ou restauração da paz e segurança internacionais”, artigos 39 e 41 do Capítulo VII.

Nesse sentido, a dicotomia do patrimônio cultural é estabelecida (a) de um lado, como continuação de uma ação normativa da UNESCO dedicada à proteção do patrimônio cultural; b) por outro lado, na sequência de resoluções anteriores do Conselho de Segurança destinadas a combater o terrorismo.

Assim, o Conselho de Segurança da ONU aprovou, por unanimidade, a Resolução 2347, em 24 de março de 2017, que exige aos Estados-Membros medidas de proteção do patrimônio cultural face a atos e ameaças de extremistas, colaborando com a UNESCO para a proteção dos bens culturais. A resolução é a primeira que o Conselho de Segurança aprova especificamente sobre destruição de patrimônio por ataques extremistas, como os ataques no Afeganistão, Iraque, Síria e, principalmente, no caso de Timbuktu em Mali. A recente decisão do Tribunal Penal Internacional, que, pela primeira vez, se condenou um acusado de crime de guerra por atacar intencionalmente edifícios religiosos e monumentos e edifícios históricos.

A resolução prevê aos Estados-Membros a adoção de estratégia para o fortalecimento da proteção da cultura e da promoção do pluralismo cultural em conflitos armados colaborando com o trabalho desenvolvido pela UNESCO.

De acordo com o preambulo da resolução, a destruição ilícita do patrimônio cultural, assim como o saque e o contrabando de bens culturais em caso de conflito armado, em particular por parte dos grupos terroristas, e a tentativa de negar raízes históricas e a diversidade cultural neste contexto podem alimentar e exacerbar os conflitos e impedir a reconciliação nacional após o conflito, comprometendo assim a segurança, a estabilidade, a governança e o desenvolvimento social, econômico e cultural dos Estados afetados.

Os vínculos entre as atividades terroristas e o crime organizado, em alguns casos, facilitam as atividades delitivas, incluindo o tráfico de bens culturais, a renda e os fluxos financeiros, tal como a lavagem de ativos, suborno e corrupção, designados, também, para financiar o terrorismo.

Já no Artigo 1, a resolução lamenta e condena a destruição ilícita do patrimônio cultural, entre outras coisas, a destruição de lugares e objetos religiosos, bem como o saque e contrabando de bens culturais provenientes de sítios arqueológicos, museus, bibliotecas, arquivos e outros, em caso de conflito armado, em particular por parte de grupos terroristas.

Condena também o comércio direto e indireto de bens culturais que esteja relacionado a grupos terroristas, empresas ou entidades associadas, facilitando o financiamento do terrorismo.4

O artigo 4 afirma “que dirigir ataques ilícitos contra lugares e edificios dedicados a religião, a educação, as artes, as ciências ou caridade, ou contra monumentos históricos, pode constituir crime de guerra, em determinadas circunstancias e sob a lei internacional, e que os autores destes ataques devem ser levados à justiça”.

Esse é um dos artigos mais importantes da resolução, pois até o recente julgamento do Tribunal Penal Internacional do caso de Timbuktu, nunca se havia condenado um acusado por crime de guerra por destruir intencionalmente o patrimônio cultural em conflito armado. Esse artigo positivou a destruição intencional do patrimônio cultural como crime de guerra, sendo reconhecido no direito humanitário.

Ressalta ainda a importância da Convenção para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, de 1954, e seus protocolos (artigo 7).5 No artigo 8, solicita aos Estados-Membros que adotem medidas apropriadas para prevenir o comércio e o tráfico ilícito de bens culturais e outros bens de valor científico ou importância arqueológica, histórica, cultural ou religiosa provenientes de Estados beligerantes, em particular de grupos terroristas, proibindo o comércio transfronteiriço de bens culturais quando há suspeita de originarem de conflito armado e sua procedência não esteja documentada nem certificada, retornando esses bens ao seu lugar de origem, principalmente se retirados do Iraque ou da Síria durante o período de guerra.6

Insta os Estados-Membros a colaborar e dar assistência ao Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), em cooperação com a UNESCO e a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), por meio de cooperação policial e judicial a fim de coibir toda forma de tráfico de bens culturais e crimes conexos que possam beneficiar o crime organizado e os grupos terroristas.

No artigo 19, a resolução salienta que as operações de manutenção da paz das Nações Unidas, quando especificamente instruído pelo Conselho de Segurança e de acordo com as regras de intervenção para tais operações podem abranger, conforme o caso, apoio as autoridades competentes quando solicitem proteção do patrimônio cultural contra sua destruição, exumação ilegal, saques e contrabando em caso de conflito armado, em colaboração com a UNESCO, e que essas operações devem agir com cautela quando estão em estreita proximidade com locais culturais e histórico.7

Portanto, a destruição deliberada do patrimônio cultural é um crime de guerra e tornou-se uma tática de guerra para prejudicar as sociedades a longo prazo, numa estratégia de genocídio cultural. É por isso que a defesa do patrimônio cultural é mais do que uma questão cultural, é um imperativo de segurança, inseparável da defesa da vida humana.

Caso Timbktu

O Tribunal Penal Internacional proferiu em 26 de setembro de 2016 a primeira condenação por crimes cometidos contra o patrimônio cultural e religioso numa situação de conflito armado.

Ahmad al-Faqi al-Mahdi, capturado em setembro de 2015, cumprirá 9 anos de prisão por ter destruído nove mausoléus do século 16 e parte de uma mesquita do século 15 na cidade de Timbuktu, na região central do Mali, na África. O acusado era responsável por vigiar o “respeito à moral pública” e por “prevenir o vício” na cidade, em nome do grupo radical islâmico ao qual pertencia, o Ansar Eddine (defensores da fé).

Al Mahdi, nascido em Agoune, a 100 quilômetros a oeste de Timbuktu, Mali, era uma personalidade ativa no contexto da ocupação de Timbuktu. Ele supostamente era um membro do Ansar Eddine, um movimento Tuareg associado a Al Qaeda no Magrebe Islâmico ("AQIM"), trabalhando em estreita colaboração com os líderes dos dois grupos armados. Alega-se que, até setembro de 2012, ele era o chefe do "Hisbah, criado em abril de 2012. Ele também foi associado ao trabalho do Tribunal de Timbuktu islâmico e participou na execução de suas decisões.

Al Mahdi é acusado, nos termos do artigo 258 (3) (a) (perpetração e co-perpetração); artigo 25 (3) (b) (solicitando, indução); artigo 25 (3) (c) (a ajuda, a cumplicidade ou a outras formas de assistência) ou artigo 25 (3) (d) (a contribuir de qualquer outra forma) do Estatuto de Roma, da prática de crime de guerra: dirigir intencionalmente ataques contra os seguintes edifícios:

  • mausoléu de Sidi Mahamoud Ben Omar Mohamed Aquit;

  • mausoléu Sheikh Mohamed Mahmoud Al Arawani;

  • mausoléu Sheikh Sidi Mokhtar Ben Sidi Muhammad Ben Sheikh Alkabir;

  • mausoléu Alpha Moya;

  • mausoléu Sheikh Sidi Ahmed Ben Amar Arragadi;

  • mausoléu Sheikh Muhammad El Mikki;

  • mausoléu Sheikh Abdoul Kassim Attouaty

  • mausoléu Ahmed Fulane;

  • mausoléu Bahaber Babadié e;

  • Sidi Yahia mesquita (a porta)

A acusação dizia respeito a um crime cometido em Timbuktu entre 30 junho de 2012 e 11 de julho de 2012. A Câmara indicou que os edifícios alvejados eram protegidos e considerados parte significativa do património cultural de Timbuktu e do Mali e, ainda, não constituíam objetivos militares. Eles foram escolhidos especificamente por causa de seu caráter religioso e histórico, a fim de agredir a oposição beligerante. Como consequência do ataque, eles ficaram totalmente destruídos ou gravemente danificados. A sua destruição foi considerada como um assunto sério pela população local.

A proteção especial do patrimônio cultural no Direito Internacional pode ser identificada nos artigos 279 e 5610 na Convenção de Haia de 1907 e na Comissão sobre a Responsabilidade de 1919, que reconhece a "destruição arbitrária de edifícios e monumentos religiosos, beneficentes, educacionais e histórico” como crime de guerra. As Convenções de Genebra também reconheceram a necessidade de uma proteção especial de alguns objetos civis. Subsequentes instrumentos internacionais abordam uma maior proteção dos bens culturais, incluindo os Protocolos Adicionais I e II da Convenção de Genebra sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos Armados e o Segundo Protocolo da Convenção de Haia de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em caso de conflito armado.

Considerações Finais

A proteção do patrimônio cultural se dá por meio de normas internacionais que visam a preservar a identidade de uma nação e o progresso social no longo prazo, ao entender que à sua salvaguarda cabe o interesse de permanência e de identidade do povo. Portanto, qualquer destruição por um país causará uma perda e um prejuízo para o patrimônio cultural, bem coletivo da humanidade.

A proibição de atos intencionais de destruição sistemática do patrimônio cultural de grande importância para a humanidade também se enquadra na categoria de obrigações erga omnes.

O patrimônio cultural é um bem comum da humanidade. A evolução histórica do Direito Internacional demonstra que esse patrimônio deve protegido em tempos de guerras não apenas internacionais mas também internas. Afinal, museus, monumentos e instituições científicas e culturais são parte da "herança comum de todos os povos" e devem ser protegidos como tal.

Este artigo demonstrou como o Direito Internacinal evoluiu na salvaguarda dos bens culturais. A ideia de legitimidade da destruição do patrimônio cultural, que prevaleu na maior parte da história do jus gentium desde a Roma antiga é hoje inadmissível. Como demonstrado, existe hoje vasto e suficiente arcabouço normativo para a proteção desses bens incomparáveis e insubstituíveis, de valor inestimável para todos os povos do mundo. O Direito Internacional contemporâneo reconhece o patrimônio cultural como um bem comum da humanidade, um bem público global, cuja preservação é do interesse de todos.

Justamente por isso, as normas que resguardam o patrimônio cultural criam obrigações erga omnes, devidas à comunidade internacional como um todo. A Resolução 2347 do Conselho de Segurança veio para corroborar e positivar os crimes praticados contra o patrimônio cultural como crimes de guerra, principalmente os causados intencionalmente e diretamente contra os bens culturais.

O patrimônio cultural permite que todos possam dialogar da mesma maneira, unindo as pessoas ao invés de as destruir. Em uma sociedade afetada pelo conflito, o patrimônio cultural pode ajudar a reconciliação, trazer a paz, pois este carrega um forte valor simbólico.

Ainda mais emblemática da evolução do Direito Internacional na proteção do patrimônio cultural em tempos de guerra é a eficácia que se começa a atribuir ao referido arcabouço normativo. O caso Tumbuktu é o primeiro atentado intencional e de destruição direta do patrimônio cultural que foi julgado pelo Tribunal Penal Internacional. Anteriormente, houvera outros casos de atentados que atingiram indiretamente o patrimônio cultural, como o caso notório da tentativa de destruição da cidade velha de Dubrovnik, na ex-Yugoslávia. A destruição do patrimônio cultural também foi levada a julgamento e considerada crime de guerra.

A sentença de Al Mahdi é inovadora. Os crimes contra o patrimônio cultural não são mais apenas considerados crimes de guerra, mas são também punidos como tal. O Direito Internacional evoluiu historicamente para consagrar substancial arcabouço normativo de proteção do patrimônio cultural. Ainda há muito o que evoluir, contudo.

Ressalta-se a destruição de dezenas de sítios arqueológicos na Síria pelo Estado Islâmico, sendo alguns com mais de 3 mil anos de existência que ainda estão impunes. Ao responder à pergunta central que motivou esta pesquisa, este artigo demonstrou que, da perspectiva histórica, há razões para otimismo no que diz respeito à proteção do patrimônio cultural. Historicamente legitimado, hoje sua proibição é obrigação erga omnes. Ainda há muito o que evoluir no combate à impunidade. Mas o caso de Timbuktu é um bom sinal. As gerações futuras deverão herdar um patrimônio cultural histórico melhor preservado.

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Notas

Para citar este articulo: Dias, A. (2018). Destruição do patrimônio cultural: crime de guerra. Via Iuris (25), 1-30.

* Projeto de investigação: “A normativa de proteção ao tráfico ilícito de bens culturais: o acervo arqueológico do Instituto Cultural Banco Santos” Grupo de pesquisa: Memória, patrimônio cultural e natural e desenvolvimento local. Universidade de São Paulo (EACH/USP). São Paulo (Brasil).

1 FORREST, 2011, p. 56.

2 Entre elas estão: a Resolução 1483/2003, a Resolução 1546/2004, a Resolução 2139/2014, a Resolução 2170/2014, a Resolução 2199/2015, a Resolução 2253/2015 e a Resolução 2322/2016.

3 O termo “raça humana” caiu em desuso atualmente, mas a citação se manteve fiel aos escritos de Emer de Vattel.

4 Resolução 2347: “2. Recalls its condemnation of any engagement in direct or indirect trade involving ISIL, Al-Nusra Front (ANF) and all other individuals, groups, undertakings and entities associated with Al-Qaida, and reiterates that such engagement could constitute financial support for entities designated by the 1267/1989/2253 ISIL (Da’esh) and Al-Qaida Sanctions Committee and may lead to further listings by the Committee;“

5 Resolução 2347: “7. Encourages all Member States that have not yet done so to consider ratifying the Convention for the Protection of Cultural Property in the Event of Armed Conflict of 14 May 1954 and its Protocols, as well as other relevant international conventions; “

6 Resolução 2347: “8. Requests Member States to take appropriate steps to prevent and counter the illicit trade and trafficking in cultural property and other items of archaeological, historical, cultural, rare scientific, and religious importance originating from a context of armed conflict, notably from terrorist groups, including by prohibiting cross-border trade in such illicit items where States have a reasonable suspicion that the items originate from a context of armed conflict, notably from terrorist groups, and which lack clearly documented and certified provenance, thereby allowing for their eventual safe return, in particular items illegally removed from Iraq since 6 August 1990 and from Syria since 15 March 2011, and recalls in this regard that States shall ensure that no funds, other financial assets or other economic resources are made available, directly or indirectly, by their nationals or persons within their territory for the benefit of ISIL and individuals, groups, entities or undertakings associated with ISIL or Al-Qaida in accordance with relevant resolutions;“

7 Resolução 2347: “19. Affirms that the mandate of United Nations peacekeeping operations, when specifically mandated by the Security Council and in accordance with their rules of engagement, may encompass, as appropriate, assisting relevant authorities, upon their request, in the protection of cultural heritage from destruction, illicit excavation, looting and smuggling in the context of armed conflicts, in collaboration with UNESCO, and that such operations should operate carefully when in the vicinity of cultural and historical sites;”

8 Artigo 25, Estatuto de Roma Responsabilidade Criminal Individual [...] 3. Nos termos do presente Estatuto, será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem: a) Cometer esse crime individualmente ou em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja, ou não, criminalmente responsável; b) Ordenar, solicitar ou instigar à prática desse crime, sob forma consumada ou sob a forma de tentativa; c) Com o propósito de facilitar a prática desse crime, for cúmplice ou encobridor, ou colaborar de algum modo na prática ou na tentativa de prática do crime, nomeadamente pelo fornecimento dos meios para a sua prática; d) Contribuir de alguma outra forma para a prática ou tentativa de prática do crime por um grupo de pessoas que tenha um objetivo comum. Esta contribuição deverá ser intencional e ocorrer, conforme o caso:

9 “Art. 27. In sieges and bombardments all necessary steps must be taken to spare, as far as possible, buildings dedicated to religion, art, science, or charitable purposes, historic monuments, hospitals, and places where the sick and wounded are collected, provided they are not being used at the time for military purposes. It is the duty of the besieged to indicate the presence of such buildings or places by distinctive and visible signs, which shall be notified to the enemy beforehand.”

10 “Art. 56. The property of municipalities, that of institutions dedicated to religion, charity and education, the arts and sciences, even when State property, shall be treated as private property. All seizure of, destruction or wilful damage done to institutions of this character, historic monuments, works of art and science, is forbidden, and should be made the subject of legal proceedings.“