Qual a concepção de Jean Jacques Rousseau em relação ao estado de natureza?

Em 17 de junho de 1770 Rousseau visitou Buffon em Montbard, então diretor do jardim do rei, cargo que ocupou por quase meio século.. Uma única carta trocada entre eles chegou até nós. Datada de 13 de outubro de 1765, nela Buffon demonstra simpatia e compreensão a um companheiro perseguido.. No entanto, depois da publicação das Confissões, Buffon afirma – não sendo o único – não mais estimar a figura de Rousseau. O naturalista expressará uma aversão crescente que se acentuará após a morte do genebrino (ROUSSEAU, 1976, p. 119, notas explicativas).

Sabemos que Buffon e sua História natural tornaram-se referências teóricas obrigatórias durante o século XVIII para filósofos e naturalistas. Não surpreende que tenham acompanhado Rousseau ao longo de muitos anos ou, como sustenta alguns, até “o final de seus dias” (FELLOWS, 1960, p. 187). Em muitos de seus textos Rousseau toma abertamente de empréstimo inúmeras passagens da História natural, particularmente ao longo do Emílio e do Discurso sobre a desigualdade.

Se nos fiarmos em certas passagens, talvez seríamos condicionados a pensar que a relação de respeito e de admiração entre Rousseau e o diretor do jardim do rei fosse apenas de mão única e não recíproca. Tal impressão ainda se reforçaria pela disparidade do número de referências ou passagens em que um autor cita o outro. Buffon aparece corriqueiramente nos textos de Rousseau, ao passo que não parece possível dizer que a recíproca seja verdadeira. No entanto, apenas para citarmos dois exemplos, veremos que as referências ao puro estado de natureza e ao homem natural concebidos por Rousseau – curiosamente construídos a partir de certas reflexões de Buffon – são constantes na obra de Buffon, ainda que o diretor do jardim afaste-se criticamente da posição assumida pelo genebrino.

Sem entrar em debates anedóticos, mapear as relações teóricas envolvendo os dois autores – objeto de não muitas investigações e estudos – constitui um dos propósitos maiores deste artigo. Somente assim se esclarecerá as relações de continuidade e de ruptura entre eles. Para tal fim, não abordaremos a totalidade dos temas que ligam um autor ao outro. Por isso, elegemos como objeto de investigação as concepções de homem natural e de estado de natureza, tal como defendidas por cada um deles.

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A concepção de estado de natureza em Buffon aparece em constante relação com sua ideia de sociedade, sendo, então, necessário começar nossas reflexões por esta última. O sentido conferido por Buffon à ideia de sociedade não é unívoco. 1) o termo parece ser entendido em um sentido restrito enquanto sinônimo de nação civilizada (1749, tomo III)., excluindo tanto a sociedade familiar quanto os pequenos agrupamentos humanos.. 2) Buffon (1753, 1758 e 1766, tomos IV, VII e XIV) sustenta uma ideia de sociedade de acordo com a qual a configuração familiar se apresenta como o primeiro momento. Nesta segunda perspectiva, a cultura é afirmada sem que haja uma oposição drástica em relação à natureza, pois o homem natural já se encontra socializado, ao menos em família. A sociedade é, portanto, uma exigência da própria natureza.. 3) o termo aparece (também em 1753, tomo IV) revestido das conotações que as teorias políticas da época lhe atribuíram. Numa formulação que se aproxima das teorias contratualistas clássicas, os homens racionalmente se dirigem para a formação social, de modo que a sociedade depende menos de conveniências físicas do que de relações morais. Em outras palavras, a sociedade é apresentada como o resultado de uma decisão refletida do homem e, não obstante, é o ambiente no qual o homem poderá desenvolver-se plenamente. Para o autor, o homem só se torna verdadeiramente homem em sociedade e graças à sociedade..

Sem a pretensão de abordar todos esses sentidos, tampouco de resolver as contradições em que o próprio Buffon se coloca., restrinjamos nossa análise à segunda conotação, pois ela diz respeito diretamente às críticas que o senhor de Montbard dirige a Rousseau.

Em 1758, na seção intitulada Animais carnívoros (volume VII da História natural), o pensamento de Buffon ganha contornos mais precisos e se direciona para a natureza sociável do homem. É ao longo desta seção que Buffon irá marcar explicitamente a diferença de sua posição em relação às concepções de homem e de estado de natureza de Rousseau. Os outros textos de Buffon, as Variedades na espécie humana (1749) e o Discurso sobre a natureza dos animais (1753) são anteriores ao aparecimento do Discurso sobre a origem da desigualdade de Rousseau (1755).

Como bem observou Claude Blanckaert, foi Locke quem inspirou Buffon em seu argumento inicial “sobre a necessidade da sociedade conjugal e parental” (BLANCKAERT, 1992, p. 590). Lembremos Locke no capítulo “Do poder paterno”, do Second Treatise of civil Government:

Adão foi criado como um homem perfeito, seu corpo e sua mente em completa posse de sua força e de sua razão, e assim foi capaz, desde o primeiro instante, de promover seu próprio sustento e preservação, e governar suas ações de acordo com os ditames da lei da razão nele implantada por Deus. A partir dele o mundo foi povoado com seus descendentes, que nasceram todos bebês, frágeis e desamparados, sem conhecimento ou compreensão. Mas para suprir os defeitos deste estado imperfeito até o momento em que o progresso do crescimento e a idade o tivessem removido, Adão e Eva, e depois deles todos os pais, estavam sujeitos pela lei da natureza a uma obrigação de preservar, alimentar e educar as crianças que tivessem gerado; não como criaturas produzidas por eles, mas pela obra de seu próprio Criador, o Todo-Poderoso, a quem deviam delas prestar contas. (LOCKE, 1960, p. 305)

Em 1758, a sociabilidade será considerada como natural, sendo a união familiar seu primeiro momento. Buffon defende a ideia de que a sociedade se fundamenta na natureza e é exigida – segundo uma concepção que já aparecera em Locke e, também, em outros momentos da História natural – pelo próprio tempo necessário para o crescimento e desenvolvimento dos seres humanos ou pelo período indispensável à maturação e à autossuficiência da criança: “as crianças pereceriam se não fossem assistidas e cuidadas por vários anos”, nos diz o autor (BUFFON, 2011, p. 123).. Sem a sociedade e todos os seus benefícios, o gênero humano não poderia, pois, perdurar. Ainda de acordo com o autor, a própria necessidade física que exige zelo e cuidado na conservação de uma criança “basta para demonstrar que a espécie humana não teria podido durar nem multiplicar-se senão em virtude da sociedade; que a união de pais e mães aos filhos é natural, já que é necessária” (BUFFON, 2011, p. 123).

Em todos esses textos (Discurso sobre a natureza dos animais, Animais carnívoros e, ainda, Nomenclatura dos macacos), vemos o mesmo argumento: o homem não é um animal; seu crescimento é mais lento, portanto, exige uma longa educação, uma família durável, razão da existência da linguagem e do pensamento. Os homens são, portanto, naturalmente sociáveis e, como tal, são dotados de linguagem, já que a morosidade no crescimento e no desenvolvimento da criança, bem como a dependência prolongada, tornando necessário um longo comércio com os pais, fazem imperiosamente nascer uma comunicação pela linguagem, dando à sociedade seu fundamento na natureza.

Até digo que, a menos que se pretenda que a constituição do corpo humano tenha sido completamente diferente do que é hoje e que seu crescimento fosse muito mais rápido, não é possível sustentar que o homem tenha alguma vez existido sem formar famílias [...]. Ora, essa união não pode deixar de produzir um vínculo respectivo e duradouro entre os pais e a criança, e apenas isso já é o suficiente para que eles se acostumem entre si aos gestos, signos, sons e, em uma palavra, a todas as expressões do sentimento e da necessidade; o que também é provado pelo fato, já que os selvagens mais solitários têm, como os outros homens, o uso dos signos e da fala. (BUFFON, 2011, p. 123)

Michèle Duchet considera que de uma sociedade natural caminha-se progressivamente a outras formas de organização social. Em Buffon, do mesmo modo que o homem é capaz de progredir, também se constata um desenvolvimento e um aperfeiçoamento social rumo à civilização. Passa-se, com isso, da “sociedade natural” formada pela família às “pequenas sociedades” e, destas, à civilização, às “sociedades policiadas”. Para Duchet, “as sociedades humanas desempenham um papel motor no desenvolvimento e progresso da espécie, que parece tender para o estado da civilização como seu fim natural” (DUCHET, 1995, p. 240). Para nosso argumento, não importa esta passagem insensível através de nuances imperceptíveis entre a forma mais simples e elementar de agrupamento humano (a família primitiva) e as mais complexas (as nações policiadas e civilizadas)10. Convém ao nosso propósito fazer o movimento contrário, isto é, descender metodologicamente por graus insensíveis das nações polidas e civilizadas até o grau mais elementar de organização social – fundado na natureza. O objetivo aqui é negar a existência possível do homem natural de Rousseau.

Ora, vemos que se descende por graus bastante insensíveis das nações mais esclarecidas, as mais polidas, aos povos menos industriosos; destes últimos a outros mais grosseiros, mas ainda submetidos a reis e a leis; destes homens grosseiros passa-se aos selvagens, que são bastante dessemelhantes entre si, nos quais encontramos tantas nuances diferentes quanto as encontradas entre os povos policiados; alguns formam nações bastante numerosas submetidas a chefes; outros encontram-se em sociedades menores e submetem-se apenas aos usos; e, finalmente, os mais solitários e os mais independentes deles, que não deixam de formar famílias e de submeterem-se a seus pais. Um Império, um Monarca, uma família e um pai, eis os dois extremos da sociedade: esses extremos são também os limites da natureza. (BUFFON, 2011, p. 121)

A sociedade – não importando qual a modalidade – é, segundo o autor, prescrita pela própria natureza, “fundada sobre a natureza” (BUFFON, 2011, p. 125). Portanto, um homem vivendo isolado, sem se valer da palavra e sem reconhecer seus semelhantes, seria algo contrário à natureza, ou até mesmo antinatural. Para Buffon, esse homem descrito por Rousseau – como “vagando nas florestas sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra, sem laços, sem nenhuma necessidade de seus semelhantes, assim como sem nenhum desejo de prejudicá-los” e que encontraria os indivíduos do outro sexo apenas para relações rápidas e fugidias – definitivamente não existe ou existe apenas enquanto ficção. Aos seus olhos, a natureza exige da espécie humana um contato constante e certo auxílio, pelo menos no que concerne aos cuidados que os pais devem ter com os recém-nascidos e com as crianças.

Quando Rousseau havia ordenado o afastamento de “todos os fatos, pois eles não se prendem à questão” (ROUSSEAU, 1964, p. 132), querendo possivelmente dizer que “o homem da Natureza tendo desaparecido sem deixar nenhum traço histórico e vivendo todos os homens atualmente observáveis em sociedade, nenhum documento visível poderia ajudar a reconstruir o homem original” (ROGER, 1989, p. 339). Buffon não pode aceitar este método e, por isso, referindo-se claramente a Rousseau, pontua as distâncias de seu fazer em relação ao cidadão de Genebra: “parece-me que quando se quer raciocinar sobre fatos, é preciso afastas as suposições e se fazer uma lei de não remontar senão depois de ter esgotado tudo o que a natureza nos oferece”11.

Nem mesmo os exemplos dos asselvajados (homo ferus) seriam capazes de contestar essa verdade estabelecida, qual seja: “o homem, em todos os estados, em todas as situações e sob todos os climas, tende igualmente à sociedade; é um efeito constante de uma causa necessária, pois se relaciona com a própria essência da espécie, isto é, com sua propagação”. Os exemplos de isolamento absoluto são apenas exceções que acabam confirmando a regra. Para Buffon, os homens isolados perdem o acesso à herança cultural do gênero humano. Por isso, são aos seus olhos basicamente criaturas alienadas e degeneradas.

Os casos evocados de crianças selvagens são o de Peter de Hanôver (1724) e Marie Angélique Leblanc, a menina de Songy em Champagne (1731)12. Buffon supõe um encontro entre Peter e Marie Angélique, do mesmo modo que Condillac imaginara nas páginas do Ensaio o encontro das duas crianças perdidas após o dilúvio e que desconheciam o uso dos signos (CONDILLAC, 2014, p. 193). Este encontro, suposto por Buffon, despertaria “a inclinação natural” para a sociabilidade e estes dois seres se reuniriam e formariam, de acordo com os preceitos ditados pela natureza, uma família. Em poucas gerações, esta família passaria a compor uma pequena sociedade e, por ventura, uma sociedade civil, maior e mais estruturada.

A menina selvagem encontrada nos bosques de Champagne e o homem encontrado nas florestas de Hanôver não provam o contrário; eles viveram em uma solidão absoluta, sendo assim, não podiam ter nenhuma ideia de sociedade, nenhum uso de signos ou da palavras; mas se eles tivessem se encontrado um ao outro, a inclinação da natureza os conduziria e o prazer os uniria; ligados um ao outro, eles logo se entenderiam, teriam primeiro falado a língua do amor entre si e, depois, a da ternura entre eles e seus filhos; aliás, esses dois selvagens vieram de homens em sociedade e, sem dúvida, foram abandonados na floresta, não na primeira idade, pois teriam morrido, mas aos quatro, cinco ou seis anos, uma idade, numa palavra, na qual eles já eram suficientemente fortes de corpo para obter sua subsistência, mas ainda muito fracos de cabeça para preservar as ideias que lhes haviam sido comunicadas. [...] Examinemos, portanto, esse homem em pura natureza, isto é, este selvagem em família. Por pouco que prospere, logo será líder de uma sociedade mais numerosa, cujos membros terão as mesmas maneiras, seguirão os mesmos usos e falarão a mesma língua; na terceira ou, no mais tardar, na quarta geração existirão novas famílias que poderão permanecer separadas, mas que, sempre unidas pelos laços comuns dos usos e da linguagem, formarão uma pequena nação que, aumentando com o tempo, poderá, de acordo com as circunstâncias, ou tornar-se um povo ou permanecer num estado semelhante ao das nações selvagens que conhecemos. Dependerá, acima de tudo, da proximidade ou do afastamento em que esses novos homens se encontrarão de homens policiados. (BUFFON, 2011, pp. 123-124)

Vejamos agora o caráter que anima as críticas dirigidas a Rousseau.

O autor do Discurso sobre a desigualdade toma conhecimento da seguinte afirmação de Buffon (tomo IV): “o homem poderia, assim como o animal, viver de vegetais” (BUFFON, 2010, p. 460). Para Rousseau, a condição de possibilidade tanto da dieta herbívora quanto do isolamento humano – sendo o postulado inicial de sua antropologia a dispersão e o isolamento dos homens no puro estado de natureza – passa pela definição precisa do entorno no qual o homem se insere. Em outras palavras, só é permitido formular a hipótese do homem, sem o auxílio de outro, seguir uma dieta composta exclusivamente de vegetais imaginando um meio ambiente adequado ou favorável a isso. Também apoiando-se nas páginas da História natural de Buffon e em oposição às hipóteses de Locke13, Rousseau elabora uma imagem da natureza sempre fértil, nunca deficitária e capaz de gerar continuamente excedentes. Na nota IV do segundo Discurso, Rousseau lança mão de uma longa passagem da História natural (tomo I, 1749, BUFFON, 2007a, pp. 458-459) em que Buffon sustenta a fertilidade natural da Terra ou de um terreno que ainda não foi habitado por seres humanos. O homem do puro estado de natureza exige como condição de sua existência (mesmo que teórica) uma terra pródiga ou condições materiais favoráveis de vida. Ora, de acordo com Buffon e Rousseau, a fertilidade da terra se encontrava em seu apogeu durante o estado selvagem, com florestas primitivas intocadas pelas mãos humanas. Como os animais e, de maneira mais acentuada, os homens consomem muito da terra e lhe restituem pouco – produzindo um balanço negativo –, quanto menor a densidade demográfica e, portanto, quanto menos homens consumirem os alimentos ou recursos da terra, maior será a quantidade de materiais orgânicos depositados em sua superfície e, por conseguinte, maior será a quantidade de alimentos e mais positivo será o balanço.

Visando responder e refutar Rousseau naquilo que se remete à sua defesa – curiosamente ela mesma inspirada no próprio Buffon – do caráter herbívoro do homem do puro estado de natureza, Buffon sustenta que o homem no estado de natureza, “não se limitava a viver de ervas, sementes ou frutos e em todos os tempos, assim como a maioria dos animais, procurava se alimentar de carne”. Ou ainda, afirma que a “a dieta pitagórica”, isto é, o regime vegetariano, “preconizada por filósofos antigos e novos e até mesmo recomendada por alguns médicos jamais foi indicada pela natureza” (BUFFON, 2011, p. 121).

Todavia, muito mais do que uma mera crítica ao regime alimentar, as páginas dos Animais carnívoros marcam uma oposição a todo o conjunto de ideias defendido pelo filósofo genebrino sobre o estado de natureza, a condição de isolamento e a independência do homem, a origem e os vícios da sociedade, entre tantos outros tópicos. Grosso modo, Buffon critica a hipótese de Rousseau – central para a inteligibilidade do segundo Discurso – sobre o isolamento absoluto do homem no puro estado de natureza e, tal como fizera John Locke, argumenta a favor de uma sociedade conjugal natural.

Distinguindo o “estado ideal” do “estado real de natureza”, o autor acusa Rousseau de se valer do primeiro termo e de construir apenas quimeras que, por sua vez, somente distorcem a realidade e condenam a vida em sociedade. Nesse sentido, Buffon sustenta que o estado de dispersão e independência humanas é uma mera suposição teórica. De modo análogo e ainda contra Rousseau, Buffon assevera que imaginar uma dieta exclusivamente herbívora, supor um estado de fertilidade da terra ou, ao menos, uma facilidade na obtenção dos meios de subsistência – fatores que evitariam os conflitos e a dependência entre os homens e garantiria uma situação de paz permanente –, não passariam de uma extravagância intelectual e uma quimera de felicidade. Com a palavra, Buffon:

na primeira idade nas eras de ouro, o homem, inocente como a pomba, comia avelã e bebia água; encontrando em toda parte a sua subsistência, não tinha inquietude, vivia independente, sempre em paz consigo mesmo e com os animais; mas assim que esqueceu sua nobreza, ele sacrificou sua liberdade para se reunir aos outros, a guerra e a idade do ferro tomaram o lugar do ouro e da paz; a crueldade e o gosto da carne e do sangue foram os primeiros frutos de uma natureza depravada, que os costumes e as artes terminaram de corromper. Eis o que em todos os tempos certos filósofos austeros, selvagens por temperamento, reprovaram no homem em sociedade: aumentando seu orgulho individual pela humilhação de toda a espécie, eles expuseram esse quadro, que vale apenas por contraste e, talvez, porque seja bom apresentar às vezes quimeras de felicidade aos homens. (BUFFON, 2011, pp. 121-122)

Esta passagem é muito ilustrativa e, de certa maneira, demonstra uma leitura bastante acertada da obra de Rousseau ao asseverar que o puro estado de natureza, imaginado por este último, é apenas um “estado ideal” cuja importância se dá pelo valor de contraste. Um estado, acrescenta Rousseau, “que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá”, mas cujo estabelecimento teórico se faz necessário para se formar um critério de avaliação do nosso estado presente (ROUSSEAU, 1964, p. 123). O método de Rousseau consiste em despir o homem, por meio do pensamento, de todos os seus atributos e caracteres adquiridos. Trata-se de uma ficção, um dépouillement antropológico. Para tanto, convém primeiramente deixar de lado os livros científicos e, em seguida, meditar sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana (ROUSSEAU, 1964, p. 125). Nas palavras de Bachofen, trata-se fundamentalmente de uma “ascese meditativa”, já que só se alcança esse dépouillement por meio da “meditação”, isto é, por meio de “uma ascese do espírito”, “um exercício intelectual e, mais ainda, moral” (BACHOFEN, 2002, p. 57). Nas Confissões, Rousseau diz encontrar em si mesmo a imagem do homem do estado de natureza, no momento de suas meditações na floresta de Saint-Germain (ROUSSEAU, 1959, pp. 388-389).

Como afirma Buffon na Nomenclatura dos macacos (1766), o puro estado de natureza no interior do qual se supõe um homem “sem pensamento e sem palavra” não seria senão “um estado ideal, imaginário que jamais existiu” (BUFFON, 1771, p. 16). Com tal afirmação, o autor da História natural pretende se desvincular da metodologia rousseauniana por não querer se afastar dos dados concretos oferecidos pela natureza, uma vez que almeja formular uma concepção de estado real de natureza. Ao contrário de Rousseau, Buffon sustenta que os “fatos”, afastados pelo primeiro, estão aí e que estes, invariavelmente, se prendem sim à questão. Aos seus olhos, o estado de natureza é um estado conhecido, é o próprio estado em que se encontram os selvagens historicamente observados: “é o selvagem vivendo no deserto, mas vivendo em família, conhecendo seus filhos, conhecido por eles, usando a palavra e fazendo-se entender”, nos diz Buffon (2011, p. 123). Por isso, ele não pretende supor como faz

um filósofo, um dos mais orgulhosos censores de nossa humanidade, que há uma distância maior do homem na pura natureza para o selvagem do que do selvagem para nós; que as idades que se passaram antes da invenção da arte da palavra foram muito mais longas que os séculos que levaram para aperfeiçoar os signos e as línguas.

Poderíamos sair em defesa de Rousseau e dizer que Buffon não percebeu que a tréplica já se encontrava previamente desenvolvida em duas das notas do Discurso sobre a desigualdade (X e XII). Ao contrário de Rousseau, Buffon não consegue imaginar um puro estado de natureza em que os homens permaneceriam isolados e as mulheres poderiam, sem o auxílio do homem, garantir sozinhas a subsistência de suas crianças. Para ele, a existência social, em um primeiro momento familiar, possui um fundamento natural e os homens jamais viveram em um estado de dispersão e autossuficiência. Nesse sentido, ele acaba concordando com o argumento de John Locke ao defender a ideia de uma sociedade conjugal natural. Por isso, os mesmos argumentos, mobilizados na nota XII contra Locke, podem ser utilizados para criticar Buffon, basta trocar o nome do destinatário. Assim, embora Buffon demonstre ser vantajosa e mesmo necessária à espécie humana a união permanente entre o homem e a mulher, “não se segue que isso tenha sido estabelecido desta forma pela natureza”. Buffon prova tão somente que poderia haver um motivo plausível para o homem se ligar a uma mulher quando ela tem um filho, mas não prova que ele deva permanecer ligado a ela antes do parto (ROUSSEAU, 1964, p. 217).

Já na nota X, Rousseau não hesita em se perguntar se os supostos animais, Homo sylvestris (os orangotangos ou os pongos), cujas semelhanças com o ser humano tocam qualquer observador, não seriam na realidade verdadeiros homens selvagens, cuja raça dispersa nas florestas não teve a ocasião de desenvolver nenhuma de suas faculdades virtuais e não adquiriu qualquer grau de perfeição e, por isso, ainda se encontrava no estado primitivo de natureza. Trata-se de um argumento a serviço da tese principal do segundo Discurso, a saber, o isolamento e a independência absolutos do homem. Se eles forem homens, a existência de um estado de natureza anterior a toda e qualquer modalidade de organização social, em que as variedades humanas viveriam dispersas nas florestas, deixaria de ser uma pura hipótese filosófica. Por isso, a nota X responde de antemão a objeção de Buffon presente no tomo VII, de acordo com a qual os selvagens mais solitários encontrados no planeta já viviam em família e já possuíam o uso da palavra, assim como todos os outros homens. “Não se teria encontrado”, questiona Buffon, “percorrendo todas solidões do globo, animais humanos privados da palavram surdos à voz como aos signos, os machos e as fêmeas dispersos, o pequenos abandonados, etc.?” (BUFFON, 2011, p. 123)

Ora, poder-se-ia inverter a questão: se eles tivessem sido realmente encontrados, ou se os pongos fossem comprovadamente inscritos no gênero humano, Buffon teria reconhecido sua humanidade? Possivelmente não, pois a linguagem e a sociabilidade são pensadas por ele como condições prévias da humanidade. Para Buffon, o homem natural e o homem selvagem contêm em germe o homem social e o homem civil, assim os processos por meio dos quais eles se civilizam não produzem e não engendram nada que não esteja contido na natureza do homem. Já Rousseau, por sua vez, não pode fundamentar a recusa aos pongos do nome de “homens selvagens” em virtude de não falarem, já que “embora o órgão da palavra seja natural ao homem, a palavra em si não lhe é, porém, natural”. Seria uma razão fraca para os que sabem até que ponto a “perfectibilidade pode ter elevado o homem acima de seu estado original” (ROUSSEAU, 1964, P. 210).

Contudo, não convém fazer essa defesa. Para nosso propósito, o importante é esclarecer a diferença entre os autores. Eles tomam pontos de partida diferentes. Apesar de sabermos dos inúmeros e massivos empréstimos realizados pelo autor do Discurso sobre a desigualdade à História natural, é preciso considerar que as reflexões de cada um deles não se inscrevem no mesmo terreno, nem compartilham da mesma concepção de homem natural.

Sobre isso, é interessante concluirmos com as reflexões de Jean Ehrard. Segundo este intérprete, a hipótese de um estado de natureza não pode ser considerada como uma instância monolítica ao longo da história da filosofia. Podemos destacar duas das acepções que essa hipótese assumiu: “o estado do homem isolado” e a “relação natural do homem com seus semelhantes, independente de toda organização política”. Ainda segundo Ehrard, “foi nesse último sentido que o estado de natureza interessou, sobretudo, aos predecessores de Rousseau”, assim como, podemos com justiça acrescentar, a seus contemporâneos. Se considerarmos o estado de natureza como um estado de isolamento absoluto, tal como Rousseau o pintou na primeira parte do Discurso sobre a desigualdade, é preciso encará-lo tão somente como uma “hipótese de trabalho, uma ficção” (EHRARD, 1994, p. 476), alcançada por meio de um dépouillement antropológico e de uma meditação. Mas se admitirmos que esse estado já se constitui enquanto um estado social, tal como caracterizado em Buffon, ele pode receber um conteúdo histórico e empírico mais preciso: pequenas sociedades familiares; comunidades selvagens que vivem sem governo e sem leis; dentre tantas outras formas de agrupamentos sociais encontradas e catalogadas pelo mundo. Com isso, talvez a tréplica de Rousseau não seja propriamente justa, pois não se podem diluir as diferenças metodológicas e epistemológicas dos registros nos quais suas respectivas discussões estão inseridas. O diretor do jardim do rei não busca construir a história natural com base em uma história hipotética ou uma ficção metodológica que postule o isolamento absoluto do homem no estado de natureza. Aos seus olhos, “o indivíduo isolado não existe na espécie humana, e o pretenso estado de natureza imaginado por Rousseau é pura utopia” (ROGER, 1993, p. 562).

Qual a concepção de Rousseau sobre o estado de natureza?

Rousseau afirma que o ser humano é naturalmente bom. Em estado de natureza, viveria uma vida isolada dos demais, plenamente livre e feliz. O indivíduo seria o "bom selvagem" inocente e incapaz de praticar o mal, como os outros animais.

Qual a concepção de estado para Jean Jacques Rousseau?

Como o objetivo de Rousseau é encontrar o fundamento do estado civil, onde a liberdade é preservada, é necessário que haja uma lei em que o homem continue a ser livre. As leis, portanto, têm que ser expressão da vontade do homem, vontade do corpo político.

Qual é a concepção de estado de natureza para Jean Jacques Rousseau e no que ela se diferencia da concepção hobbesiana?

Enquanto em Hobbes há o medo da própria natureza e uma visão negativa (em duplo sentido) da liberdade, em Rousseau a natureza é o ponto de referência moral e a liberdade é o que permite a expressão de tal natureza benigna.

O que Jean Jacques Rousseau compreendia como estado de natureza considerando a sua concepção de estado natureza como ele entende o contrato social?

Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) Por fim, de acordo com o autor suíço, no estado de natureza há harmonia e abundância pelo fato de haver igualdade, liberdade e de o humano se configurar como um ser coletivo, o qual realiza decisões de forma conjunta. Isso significa que são seres que decidem objetivando o bem comum.