Artigos • • https://doi.org/10.1590/0103-6351/5544 copiar Show
Elias Jabbour Alexis Dantas Sobre os autores
O objetivo deste artigo é demonstrar que o crescimento do setor estatal na economia chinesa, acelerado desde 2009, abre condições para a possibilidade de o “modelo chinês” se tratar de algo que vai se distanciando - historicamente - de um modelo típico de “capitalismo de Estado”, e mais longe ainda de ser um “capitalismo liberal”. Diante de uma gama de evidências afirmamos que o “socialismo de mercado” já pode ser classificado como uma nova formação econômico-social (NFES) que tem na complexidade seu principal atributo, pois implica tratar-se de uma formação marcada pela convivência de diferentes modos de produção. Por não se tratar de uma formação social no auge de seu desenvolvimento o “socialismo de mercado” deve ser abordado como um fenômeno regido por combinações entre diferentes modos e relações de produção. Classificar e expor as lógicas que regem o desenvolvimento do “socialismo de mercado” será objeto de análise neste trabalho. Palavras-chave:
The aim of this paper is to demonstrate that the growth of the state sector in the Chinese economy, accelerating since 2009, opens conditions to conclude that the Chinese model is something that is distancing itself historically from a typical model of state capitalism and is even further from being a liberal capitalism. Faced with a range of evidence, we affirm that the market socialism in China can already be classified as a “New Socio-Economic Formation” (NSEF) that has its main attribute in complexity, since it implies that it is a formation marked by the coexistence of different modes of production. Since it is not social formation at the height of its development, the market socialism must be treated as a phenomenon governed by combinations of different modes and relations of production. Classifying and exposing the laws governing the development of socialist market economy will be the aim of the analysis in this work. Keywords:
O desenvolvimento chinês é, talvez, o fenômeno mais importante do mundo presente. Seu crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos 35 anos foi de 9,5% a.a., ao mesmo tempo que a renda per capita no período passou de US$ 250 em 1980 para US$ 9.040 em 2014 (Jabbour; Paula, 2018JABBOUR, E.; PAULA, L. F. A China e a “socialização do investimento”: uma abordagem Keynes-Gerschenkron-Rangel-Hirschman. Revista de Economia Contemporânea, v. 22, n. 1, p. 1-23, 2018., p. 14). Dado esse fato, o crescimento chinês - e a própria natureza de seu sistema - é motivo de controvérsias de diversa monta. Entre outros elementos, a polêmica não é o “modelo” e sim o fato de esse processo ocorrer negando a deus ex machina que condiciona o dinamismo econômico à existência de instituições que garantam a primazia da propriedade privada. Ao contrário, uma de suas especificidades está - por exemplo - na existência de um Estado que toma a si mesmo o papel tanto, segundo Burlamaqui (2015BURLAMAQUI, L. Finance, development and the Chinese entrepreneurial state: A Schumpeter-Keynes-Minsky approach. Brazilian Review of Political Economy, v. 4, n. 141, p. 728-744, 2015.), “de emprestador de última instância quanto de investidor de primeira instância”. O objetivo deste artigo passa por desenvolver o seguinte argumento:
Essa citação demonstra a interessante e recente tendência de elevação do papel do Estado sobre a estrutura de propriedade chinesa. Na esteira dessa observação, trabalhos recentes demostram a grande diferenciação entre a estrutura de propriedade na China em comparação com outras partes do mundo (grandes conglomerados estatais, empresas de capital misto, propriedade dividida por ações). Esse processo reflete-se diretamente em aumento contínuo, desde a segunda metade da década de 1990, do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional (Jabbour; Dantas, 2018JABBOUR, E.; PAULA, L. F. A China e a “socialização do investimento”: uma abordagem Keynes-Gerschenkron-Rangel-Hirschman. Revista de Economia Contemporânea, v. 22, n. 1, p. 1-23, 2018.), conforme salientado anteriormente. Essa tendência é percebida, também, na queda do aumento da taxa de investimentos do setor privado (de 34,8% em 2011 para 2,8% em junho de 2016). Sobre os lucros das empresas estatais, saiu de um crescimento de 15,2% em 2016 para 23,5% em 2017. Logo, nosso trabalho buscará demonstrar que o fenômeno recente marcado por maior protagonismo estatal, sobretudo após 2009, nos permite diagnosticar que a “dinâmica chinesa” é algo que se distancia tanto de uma espécie de “modelo liberal” quanto de um “capitalismo de Estado” strictu sensu. A nosso ver está surgindo na China uma Nova Formação Econômico-Social (NFES) que chamamos de “socialismo de mercado”. Ou seja, para nós o “socialismo de mercado” deixou de ser uma abstração, passando a tornar algo real, concreto. O caráter original do artigo reside na constatação de que essa NFES que surge na China tem um caráter complexo, ou seja, comporta a coexistência (e combinação) de distintos modos de produção. O grande desafio intelectual que nos propomos neste artigo é a compreensão da natureza da coexistência, a coabitação de diferentes modos de produção numa mesma formação social e como essa dinâmica dá caracteres únicos a um processo cuja essência ainda demanda busca e compreensão. Intentaremos avançar, inclusive, em algumas lógicas de funcionamento como forma de dar maior consistência ao argumento central. Aliás, a própria essência do argumento sugere a demonstração das lógicas de funcionamento que dão contornos próprios a essa NFES. Este artigo é um passo importante na citada busca e compreensão da essência do fenômeno chinês, partindo de uma abordagem teórica/metodológica nada convencional, nem mesmo entre os marxistas de forma geral. Além desta introdução, o artigo se divide em outras cinco seções. Na seção 2, expõe-se a categoria de Formação Econômico-Social (FES) como elemento indispensável de validação teórica. A utilização dessa categoria não guarda serventia somente para sair da superfície acerca da natureza do processo em curso na China. Faz-se necessária sua utilização, também, no sentido de nos diferenciarmos das escolas hegemônicas nos debates sobre as características do fenômeno em tela A seção 3 apresenta nossa interpretação particular sobre o socialismo, seguida da exposição das evidências que sugerem correção ao argumento central do artigo Na seção 4 são demonstradas as cinco lógicas gerais tanto do desenvolvimento histórico quanto do próprio funcionamento da economia chinesa. A seção 5 contrapõe alguns lugares comuns, envolvendo desde a construção do socialismo, até mesmo sua concepção diante dos clássicos dos fundadores do materialismo histórico. Ao final apresentamos algumas conclusões. 2 Sobre o “Socialismo de Mercado”: a episteme e os critérios de validação teóricaO ponto central de nossa discussão não está em responder se a China é, conforme sua constituição e dirigentes, um Estado socialista ou, trata-se - no mais generoso juízo de valor - de uma variante asiática de capitalismo de Estado. Nesse tocante, infelizmente, não pensamento hegemônico pertence à noção para quem o que ocorre na China é uma “restauração capitalista” sob a forma de um “capitalismo de Estado”. Não é de se surpreender que um autor da estatura de David Harvey (1992HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.), que não somente alça Deng Xiaoping ao mesmo altar neoliberal de Reagan e Thatcher, ainda constata que “a espetacular emergência da China como uma força econômica global pós-1990 foi uma consequência não intencional do rumo neoliberal no mundo capitalista avançado”. Trata-se de uma observação típica de um esquema pronto, modelar e fotográfico da realidade que guarda muita proximidade com um determinado relativismo pós-moderno em detrimento da objetividade histórica característica de análises baseadas no materialismo histórico (Jabbour, 2012JABBOUR, E. China hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado. São Paulo: Anita Garibaldi/EDUEPB, 2012.). Abrindo necessário parêntese, no debate de ideias, situamo-nos em um campo diferente ao dos postulados atualmente hegemônicos das ciências sociais - entre eles o positivismo clássico, que se expressa sob a forma de, segundo Fernandes (2000FERNANDES, L. O enigma do socialismo real. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.) “certo modismo intelectual pós-moderno - que concebe a teoria social como mera narrativa com propósito moral”. Logo, segundo Jabbour (2012), “(...) passam a ser colocadas no centro do processo de construção da subjetividade humana a teoria e a prática do relativismo como fio condutor e norte da teoria do conhecimento”. De nossa parte, acreditamos que a objetividade e, consequentemente, a visão de processo histórico ainda são os critérios cruciais de validação teórica. Avançando, dentro dos marcos epistemológicos anteriormente expostos, se admitirmos a China, e seu “socialismo de mercado”, como uma formação social complexa, para Harvey, por exemplo, serve a relação feita por Marx entre o desenvolvimento das formações geológicas e o processo de desenvolvimento da sociedade, conforme sugerido em carta enviada a Vera Zasulich
2.1 A categoria marxista de FES como o núcleo basilar de argumentaçãoUma tipologia de diagnóstico requer sólidas bases teóricas e conceituais. Logo, nosso principal elemento de validação teórica reside em uma categoria pouco compreendida, redundando - assim - em problemas relacionados a questões próprias de validação teórica, por exemplo. Referimo-nos à categoria de FES. O termo “FES” é pela primeira vez utilizado nos escritos de Marx no Prefácio à Contribuição à crítica da Economia Política:
Segundo Sereni, é em Lênin que ocorre uma verdadeira “restauração” do sentido da categoria de FES, vejamos:
Segundo Silva (2009), a categoria de FES teve em Emilio Sereni “a sua mais acabada e rica compreensão”, citando a seguinte passagem de Sereni:
Althusser e Balibar discorrem sobre essa categoria em dois níveis. A primeira é mais próxima de um esboço de construção da uma “teoria do tempo histórico”, como segue
Althusser e Balibar (1970ALTHUSSER L.; BALIBAR, E. Reading Capital. Paris: NLB, 1970.) chegam a uma definição mais clara e coerente da categoria de FES: “Totality of instances articulated on the basis of a determinate mode of production.” Nesse tocante, relacionando as observações de Marx, Althusser, Balibar e Sereni com a utilização da categoria de FES como instrumento de validação teórica, são pertinentes as palavras de Roberts (2017ROBERTS, M. Xi takes full control of China’s future. Redline: Contemporary Marxist Analysis, 2017. <https://rdln.wordpress.com/2017/10/26/xi-jinping-thought-and-the-nature-of-china-today/>. Acesso em: 11 May 2019.
O fundo das razões que levam a maioria dos marxistas a se igualarem aos economistas vulgares dos nossos tempos (neoclássicos) a assumirem posições baseadas em “modelos estáticos” para quem a China é um país capitalista reside no tratamento estático, um “desejo” de classificar e demarcar fenômenos dentro de enquadramentos e categorias aceitas, previamente. Hobsbawn é mais agudo ao afirmar:
É exatamente disso que se trata: trocar o estático pelo dinâmico. Perceber que na realidade dos modos de produção devemos seguir a trilha sugerida por Ignacio Rangel de perceber que o grau de complexidade de uma sociedade - onde a sua famosa expressão contemporaneidade do não coetâneo (Rangel, 2005) é uma regra geral - demanda exercitar a difícil busca apenas do que é essencial, necessário. Para tal, elevar o grau de abstração é essencial, algo que vá além da categoria de modo de produção intentando encontrar a origem de determinada sociedade. Voltando a Lênin, segundo Sereni:
Classificamos a República Popular da China como uma sociedade comandada por uma força política decidida a realizar a transição ao socialismo, o que não redunda - de forma alguma - reconhecer a ordem econômica presente como socialista. Samir Amin nos lembra muito bem que:
Exemplo interessante de análise totalizante pode ser percebida por Mamigonian, que percebe no “marxismo de Mao Tsé-Tung” o nível de consequência que pode proporcionar o bom uso das categorias do materialismo histórico a uma formação social complexa. Em suas palavras:
Esse raciocínio é complementado da seguinte forma:
3 Sobre o “socialismo de mercado”Samir Amin e Armen Mamigonian nos ajudam a deixar mais claro que o sinônimo da percepção do “socialismo de mercado” como uma formação social complexa é assumir, conforme a proposta de Ignacio Rangel, que estamos tratando a unidade de análise como uma formação social complexa. Assim sendo, o “socialismo de mercado” é uma formação que associa - via coexistência e coabitação - modos de produção de diferentes épocas históricas em clara unidade de contrários. Não se trata de uma sociedade estruturada no mais alto patamar possível de desenvolvimento humano, ou seja, o socialismo em sua plenitude. Do processo descrito por Amin e Mamigonian até hoje a China percorreu todo um processo histórico que tem nas reformas econômicas iniciadas em 1978 um típico processo que combina continuidade e ruptura. *** A questão que se coloca é: qual modo de produção é dominante? A resposta demanda a interposição de outras questões: qual classe e/ou força política detém o controle dos fatores objetivamente estratégicos sejam eles políticos (a força política representativa da classe social que exerce controle do poder do Estado) ou econômicos (o modo de produção que detém o poder real tanto sobre os ferramentais fundamentais do processo de acumulação - de juros, taxa câmbio e sistema financeiro estatal - quanto na promoção de deslocamento e concentração do próprio setor produtivo em indústrias-chave e possibilitando crescimento e desenvolvimento a partir da geração dos efeitos de encadeamento industrial aos demais modos de produção)? Para tal é sugestiva a seguinte passagem, de Fan et al.:
Por outro lado, existe uma grande diferença entre classificar a China como um país capitalista e reconhecer que o capitalismo, seja ele privado ou de Estado, existe no país como um importante - e poderoso - modo de produção. Nesse sentido, a realização da transição em uma formação social complexa como a chinesa implica reconhecer que a unidade de contrários aludida anteriormente se expressa na convivência dos seguintes modos de produção:
Os elementos de mediação entre as diferentes estruturas/formações sociaisO processo de desenvolvimento não ocorre por impulsos, ou raramente ocorre dessa forma. Muito menos se trata de um processo de “desenvolvimento equilibrado” como nos mostraram Rosenstein-Rodan e Nurske em suas famosas e pioneiras obras sobre as economias externas e o crescimento equilibrado. Ignacio Rangel e Albert Hirschman foram exímios críticos dessa concepção. Em ambos o desenvolvimento é um processo de saltos não de um ponto de equilíbrio a outro, e sim sob forma de saltos entre pontos de desequilíbrios. Nas palavras de Rangel:
Esse raciocínio cabe perfeitamente ao processo de desenvolvimento em uma formação social complexa como já demonstramos aqui, sobre a China. Diferentes modos de produção representando, cada um deles, em um determinado estágio de desenvolvimento da própria humanidade requerem a existência de elementos de mediação entre as diferentes dinâmicas e respectivas velocidades e movimentos característicos de cada estrutura/formação social. São eles:
4 A economia política do “socialismo de mercado”: as lógicas que regem seu movimentoNão negamos aqui que a construção teórica que estamos tentando construir é parte de uma crítica ao etapismo que vigorou, e ainda exerce influência, nas elaborações marxistas sobre a transição do capitalismo ao socialismo. Indicar o “socialismo de mercado” como uma nova FES não é somente parte de um esforço de desvendar as lógicas que regem a construção do socialismo em formações sociais complexas. Esse mesmo raciocínio vale à nossa leitura sobre o “socialismo de mercado”; um esforço para compreender a China e descobrir a lógica fundamental de seu processo de desenvolvimento. Buscamos adaptar o materialismo histórico às peculiaridades de uma formação social complexa como a chinesa. Expostas tais indicações e tendo clareza de estarmos tratando de uma formação social complexa, o passo agora é extrair as lógicas de funcionamento da economia chinesa. O “socialismo de mercado” é, na verdade, a resposta, quase que um “método de análise”, que encontramos a essas e outras questões que vão surgindo. Trata-se de nossa interpretação particular sobre a razão e o significado do desenvolvimento das forças produtivas que transcorre na China, cuja contrapartida é o poder político exercido pelo PCCh. Uma justa questão que se coloca: qual a diferença entre o “socialismo de mercado” e o capitalismo, já que a existência de um largo setor público também pode ocorrer sob o capitalismo? A passagem seguinte é esclarecedora:
Perceber que na China convivem vários modos históricos de desenvolvimento nos levou a intentar a descoberta de como as lógicas dos vários modos de produção coetâneos se articulam, auxiliam ou limitam umas às outras. Após 40 anos do início do processo de reforma e abertura na China já é possível perceber ao menos cinco lógicas de funcionamento, conforme:
5 Sobre o socialismo: enfrentar senso comum e a “dialética de Saturno”Não é difícil perceber que o senso comum projetou, com sucesso, uma versão da China como um país capitalista. Afora os juízos pejorativos de valor amplificados pela grande mídia, retrato tragicômico dos interesses do imperialismo. Temos plena clareza da pouca aderência que a nossa visão daquele processo suscita. Algumas considerações são importantes. Sabemos não ser tarefa fácil propor a construção de uma teoria como subsídio capaz de explicar esse “socialismo de mercado” envolto, e parte principal, em um mundo em plena transformação. E que tem no núcleo dessa transformação uma FES de novo tipo, socializante, cujo país-sede está muito próximo de se transformar no líder de um novo centro do sistema que transita do Atlântico Norte ao Leste Asiático. Sendo claros: o país de terceiro maior tamanho territorial e, também, o mais populoso do mundo e que advoga o caráter socialista de sua experiência está passando a dar as cartas no sistema mundial. Voltemos assim à polêmica sobre o socialismo chinês, polêmica esta que tende a se estender ao longo, pelo menos, da próxima década. O déficit de visão de processo histórico é parte do problema. Nesse sentido, é bom lembrar que:
Desde seu surgimento já eram visíveis as diferenças de opinião e, de concepção, sobre a natureza do socialismo. Desde Lassale (pela “direita”), Blanqui (pela “esquerda”) e Marx, cuja visão de conjunto o levou a adotar sempre posições mais centristas. Ora, não é de se imaginar que o mesmo ocorre quando o assunto é a China. E foi frequente com relação à União Soviética. Essas divisões podem ser explicadas da seguinte forma:
O socialismo levanta expectativas de tipo messiânicas. Eis a fonte por onde age de forma violenta a “dialética de Saturno”. Não é incomum relacionar o socialismo como a expressão de uma sociedade onde a contradição desaparece levando consigo as desigualdades sociais, a economia monetária, as fronteiras entre o “meu” e o “seu”. Sobre a China, o “socialismo de mercado” dentro de uma visão talmúdica é sinônimo de “traição” aos princípios do marxismo. Nesse caso, a “dialética de Saturno” se expressa na confusão entre os que percebem a economia de mercado como uma categoria histórica e aqueles que colocam um sinal de igualdade entre mercado e capitalismo. O igualitarismo muito comum no movimento comunista leva a redução de Marx à de mais um pensador da “questão social” ou, no máximo, um ricardiano menor. Retornando, já no Manifesto comunista, nos lembram Marx e Engels que: Nada é mais fácil do que recobrir o ascetismo cristão com um verniz socialista. Noções igualitaristas devem ser enfrentadas nessa tarefa de construção de uma nova teoria a que propomos. Nesse sentido, a seguinte passagem de Losurdo é interessante e guarda essencialidade:
É evidente, portanto, a impossibilidade da “promessa” de igualdade material contida na noção de “comunhão de bens”. Losurdo confirma esse raciocínio conforme segue:
Duas consequências podemos extrair dessas duas passagens: 1) no socialismo, a igualdade material não é possível; e 2) no comunismo essa “igualdade material” não tem sentido. Daí a ênfase dos fundadores do socialismo científico ao comprometimento dos trabalhadores com o desenvolvimento das forças produtivas. Como forma de síntese do que discutimos sobre o socialismo, encerramos esta seção com a seguinte citação:
6 ConclusõesConcluímos este artigo de forma muito satisfatória. Apresentamos a hipótese de que existe um movimento na China, notadamente após 2009, onde o maior protagonismo do Estado nas grandes questões que envolvem o processo de acumulação, o “socialismo de mercado”, já pode ser considerado como uma NFES. Trata-se de um processo que, como já lançado na própria Introdução, desde a segunda metade da década de 1990 já conformava um processo de elevação do controle estatal sobre os fluxos de renda no país. Na verdade, o Estado chinês controla cerca de 30% da riqueza nacional, um nível muito maior que o apresentado em alguns países ocidentais na chamada “Golden Age” (1950-1980) do capitalismo: em países como os EUA, Alemanha, França e Grã-Bretanha esse controle variou entre 15% e 25% (Piketty et al., 2017PIKETTY, T; YANG, L.; ZUCMAN, G. Capital accumulation, private property and rising inequality in China. NBER Working Paper, n. 23.368, Apr. 2017.). Porém, conforme demonstrado, foi a resposta à crise de 2009 na qual esse movimento demonstrou concretude com o Estado, sendo o financiador (via bancos públicos) e executor (via empresas estatais) de um pacote fiscal de US$ 589 bilhões. Ora, algo de muito diferente estava ocorrendo à China que poderia ter passado despercebido dos analistas, em geral, e dos marxistas, em particular. Ao começarmos a aviltar a hipótese aqui levantada e demonstrada sugerimos que a China, e sua dinâmica de desenvolvimento, estava - de certa maneira - distante de ser uma variante de capitalismo liberal ou de “Estado”. A possibilidade teórica dessa interpretação buscou subsídio em uma categoria marxista muito pouco conhecida e/ou mesmo utilizada: a categoria de formação econômico-social. Por via de desenvolvimento, citações e demarcações de fronteira com outros polos de pensamentos, buscamos expor que essa categoria é única quando o sentido é a busca da gênese de processos complexos. Partindo dessa categoria de análise, avançamos na formulação de nosso argumento. A dinâmica da coexistência em “unidade de contrários” entre diferentes modos de produção foi fundamental, principalmente por indicar que o modo de produção socialista, representado pela própria natureza do poder político estatal e da estrutura financeira e produtiva, é dominante em meio a outros modos de produção. É bom notar que não trabalhamos com categorias apriorísticas, entre elas a da existência de um “socialismo puro”. Não existe “socialismo puro” na China, ao contrário. A dinâmica dos diferentes modos de produção indica interação plena entre eles, e amplamente contraditória. Contradições tais que podem ser exprimidas no fato de a China conviver com contradições de variados graus, entre elas as contradições sociais, ambientais etc... Mas essa indicação não é suficiente. Essa NFES engendra lógicas de funcionamento muito particulares, que a distingue das lógicas dos países capitalistas. Cinco lógicas de funcionamento foram apresentadas e exemplificadas, dando substância ao argumento do trabalho, são elas: 1) os diferentes modos de produção não se restringem a coexistir, mas convivem em “unidade de contrários”; 2) A lei do valor não é passiva de superação sob o “socialismo de mercado”, visto como parte do início do processo histórico de construção do socialismo; 3) a existência de dois setores, o estatal e o privado, demanda contínua reorganização de atividades entre esses setores. Essa contínua reorganização de atividades ocorre mediada pelo surgimento cíclico de instituições que delimitam uma contínua reorganização de atividades entre os setores estatal e privado da economia; 4) Existe uma regularidade nesse processo cíclico de reorganização de atividades entre os dois setores. O crescimento do setor privado não ocorre em detrimento de uma diminuição do papel do Estado. Existe, no concreto, uma recolocação estratégica do Estado ao ampliar seu papel de forma qualitativa; e 5) O planejamento guarda razão sob forma de uma lógica de funcionamento essencial no “socialismo de mercado”. Por fim, sob a rubrica da “dialética de Saturno” trouxemos à tona um antigo debate sobre as expectativas criadas durante o processo de construção do socialismo e a validade dessa sadia polêmica à compreensão da China atual. Para tanto, lançamos mão de citações, também, de clássicos como Hegel, Marx e Engels. A nós, nunca foi tão fundamental voltarmos aos “clássicos” para buscar explicações para fenômenos novos e complexos. Temos clareza da complexidade do tema e das polêmicas envolvidas. Na verdade, este artigo encerra um primeiro e grande passo. Já é passado o momento de se discutir a China fora de parâmetros aceitos a anteriori por todos os principais lados do debate. Este artigo se coloca como parte alternativa, outsider da própria, e necessária, polêmica.
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