Exercícios sobre comunidades quilombolas no Brasil

ANÁLISE DO ESTADO NACIONAL E A CONSTITUCIONALIDADE DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS NA BAHIA1

1 8. Geografía política, globalización y redes.

Diosmar M. Santana Filho

Mestrando em Geografia – Universidade Federal da Bahia (UFBA)

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Guiomar Inez Germani

Professora Doutora – Programa de Pós-Graduação em Geografia (UFBA)

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RESUMO

Os Territórios Quilombolas configuram-se no Estado Nacional brasileiro pelo reconhecimento no Art. 68 dos Atos de Dispositivos Transitórios Constitucionais (ADTC), da Constituição de 1988, como comunidades remanescentes dos antigos quilombos. A partir de então, coube ao Estado a certificação de auto-reconhecimento, demarcação e titulação de propriedade coletiva de seus territórios. Para tanto, o processo social-histórico de formação do Estado Nação, pautado nas relações sociais etnocêntricas e verticais, têm reflexo nos eventos para a integração da população negra descendentes dos africanos(as) a este. Os princípios legais instituídos em 1850, com a Lei 601 (denominada Lei da Terra), refletiram na configuração do direito à propriedade no século XXI. Em 2013, dos 1749 Territórios Quilombolas no país, a unidade federativa do Estado da Bahia concentra 425 com certidão de auto-reconhecimento, e apesar de transcorridos 24 anos da existência de um marco legal que reconhece seus direitos territoriais, somente dois Territórios Quilombolas têm titulo de propriedade (como Assentamento Rural), outros dez foram decretados para titulação. Dessa forma, o presente artigo traz um estudo quanto a geopolítica do Estado Nacional brasileiro e a constitucionalidade dos Territórios Quilombolas na Bahia no século XXI. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa e de reflexão dialética desenvolvida pela revisão bibliográfica e de estudos sobre a identidade/diferença e a geopolítica dos quilombos, ao reconhecer questões intrínsecas ao seu desenvolvimento como o combate ao racismo e a agenda pública com políticas afirmativas e inclusivas para população negra ter acesso e direito a terra.

Palavras-chave: Estado Nacional; Território; Identidade/diferença; Quilombo; População Negra. 2

INTRODUÇÃO

O reconhecimento institucional do Território Quilombola pelo Estado Nacional brasileiro tem, nas últimas décadas do século passado e na primeira do século XXI, o que se pode denominar de elucidação pública. Neste período acontecerá maior reflexão social e política, quanto às transformações e/ou mudanças pelas quais passam a sociedade contemporânea ao tornar-se públicas as identidades/diferenças acerca da situação sócio-espacial do povo negro. Situações originárias dos séculos passados que deram a forma e o conteúdo para formação do Estado Nação da República Federativa do Brasil.

Os eventos ocorridos no Brasil, em relação à população negra, não são diferentes das demais nações americanas originárias do processo social-histórico de: invasão, ocupação e expropriação de terras e territórios dos povos indígenas do sul ao norte do continente americano, e dos povos do continente africano, pelos Estados Nações, constituídos ou em processo,de constituição do continente europeu.

O processo social-histórico a ser refletido tem início, no século XVI, com a invasão portuguesa às terras indígenas Tupi-Guarani, com a implantação do sistema de escravismo dos povos originários e com a exploração da floresta para a exportação de madeiras nobres como o Pau-brasil. Este dará, posteriormente, origem ao nome Brasil, a única Colônia portuguesa nas Américas.

Contudo, a não adaptação e resistência dos povos originários ao plantation system e à escravidão, negando a apropriação violenta do seu espaço e seus territórios – estes entendidos como a materialidade da relação de produção vivida e simbólica com os elementos naturais e culturais construídos no tempo e espaço – surgiram novos ciclos de relações sociais e de produção, pela alta lucratividade do comércio negreiro no Atlântico. Este novo momento terá como base o tráfico e a escravidão dos povos de diferentes partes da África Ocidental Subsaariana e do Golfo da Guiné. Inicialmente de origem Banto, depois os Jeje-Mina e os Iorubás-Nagô. O tráfico e a escravidão têm registro, desde 1518, e durou por mais de trezentos anos entre a África e as Américas. Neste período, aproximadamente, cerca de quatro milhões de pessoas foram traficados dos seus territórios étnicos para as terras brasileiras.

As informações têm como referência os registros oficiais da época correspondente aos anos de 1535 e 1850, analisados por Anjos (2006) e DeRiggs (2011), que não poderá ser considerado como número real, pois só incluem nos registros os navios negreiros que aportaram nos portos do Salvador, Grão-Pará, Recife, São Luis, Santos, Rio de Janeiro e Rio Grande e declararam a quantidade de mercadorias. Não estão contabilizados os homens e mulheres que morreram ainda em terra africana; os que ficaram no Atlântico durante o período de travessia, e 3

os povos, trazidos através do tráfico ilegal, que perdurou além dos períodos de normatização do tráfico no Atlântico, ainda não caracterizado pela historiografia brasileira (ANJOS, 2006, p.35, DERIGGS, 2011, p. 224).

Portanto, os grupos étnicos traficados e escravizados, passaram a ter nas terras da Colônia, no Império Brasil e na República, sua base de identidade e pertencimento. Na verdade, foram a força motriz do plantation system da cana-de-açúcar, que segundo DeRiggs (2011) constituiu-se como instituição socioeconômica dominante, no Brasil e nos países caribenhos. Pela sua natureza, encravada nas plantações, o plantation system de “instituições totais”, tem nos aspectos organizacionais “fronteiras limítrofes bem definidas com uma estrutura hierárquica interna demarcada muito similar a um sistema interno de castas” (DERIGGS, 2011, p. 125).

Além do sistema econômico das plantações de cana-de-açúcar, observa-se nesse processo uma segunda instituição: a da escravidão. Com a escravidão o tempo social-histórico se estabelece como outra norma, relacionada ao trabalho escravo. Mattos (2005), explica que a instituição da escravidão moderna tem sido analisada pela exploração da força de trabalho, mas, na verdade, a mesma implicava bem mais. A autora contextualiza que “tal instituição esteve baseada na violência política, fundada na exclusão (real e/ou simbólica) do escravo da condição de pertencimento à sociedade que o escravizava” (MATTOS, 2005, p.15). Estas duas instituições – plantação e escravidão – tornam-se intrínsecas e se autoconectam para a organização da sociedade que se forma durante o período colonial e imperial. Segundo Guimarães (2009):

Durante 388 anos, o latifúndio colonial e feudal e seu semelhante, o sistema escravista de plantação, lançaram mão dos mais variados meios a seu alcance para impedir que as massas humanas oprimidas, que vegetavam a ourela das sesmarias ou se agregavam aos engenhos e fazendas, tivessem acesso a terra e nela fixassem em caráter permanente suas pequenas ou médias explorações (GUIMARÃES, 2009, p; 46).

No período acima a população negra teve delimitados os espaços e temporalidades, questão fundamental ao direito à propriedade da terra, que deve ser analisado e compreendido nos reflexos das instituições públicas do Estado contemporâneo. Pois, o processo exige atenção e visualização através de lentes, que revelem o modo estrutural de organização da vida na sociedade que se formou, mas, sobretudo, com atenção aos sujeitos, todos eles oriundos do processo social-histórico, que marcará as relações nos séculos seguintes, entres os sujeitos que a vivenciaram ou que precisarão vivenciar e lutar pelo reconhecimento de identidade étnica e política. Neste sentido Castoriadis (2007) irá chamar a situação organizacional vivida e sua sucessão de “alteridade da sociedade instituída”, por entender que o fator genérico da instituição da sociedade em geral, determina comportando-a, minimamente, a uma linguagem, com regras 4

de reprodução, regras de proibição e do permitido, do lícito e do ilícito, das maneiras de produzir e reproduzir a vida material, compreendendo que:

A cada vez, essa instituição da sociedade é outra, e não outra somente no espaço, mas também se altera no tempo. Ela não é dada de uma vez por todas: a auto-alteração da sociedade que é a historia e sua historia sua temporalidade criadora própria e destruidora (CASTORIADIUS, 2007, p.30).

Assim poderão ser também explicadas as relações verticais, que têm nas diferenças postas, os interesses políticos, sociais e territoriais, em relação ao econômico. A garantia de acesso à sociedade colonial e imperial pelos sujeitos respalda-se nos grupos sociais de origem, e não se modela pelo inicial sistema econômico e sim pelo processo social-histórico dos grupos.

Por esse viés, a sociedade brasileira e suas instituições de controle e regulação na atualidade, veem o acesso e direito à propriedade da terra pela população negra, a exemplo, dos territórios quilombolas no espaço do Estado Nacional.

Moura (2004) chama atenção da “quilombolagem” – reconhecido protesto radical ao sistema da escravidão –, e por outro lado denomina de “quilombo” o núcleo de resistência e unidade organizacional. Numa sociedade que o social e o político se organizam pela origem dos grupos, a população negra, passa a ter nas origens ancestrais e de pertencimento, a forma para romper com a situação posta como determinante para seu modo de vida. Nos séculos XVI e XVII, o Brasil Colônia conheceu a resistência desta, aos sistemas postos, com o Quilombo de Palmares, o qual até ser invadido completamente e assassinado o seu povo e as suas lideranças, durou cem anos.

Contudo, as insurgências e lutas para por fim ao tráfico e a escravidão, surgem como resultado de conquista política que poderia se suceder em emancipação da população negra. Os eventos de revoltas e insurgências poderiam ser um ponto para construção de uma nova sociedade de principio no Brasil, mas isso não acontece. O que determinará o fim a escravidão serão os novos interesses do Velho Continente (Europa) em relação ao Novo Mundo (as colônias da América e África).

No início do século XIX, o Brasil configurava-se como uma das últimas colônias na América Latina, e diferentes das ex-colônias espanholas, teve a sua emancipação social e política marcada pela presença da família Real portuguesa. Não era uma simples Colônia, era o Reino Unido de Portugal e Algarves, quando, em 7 de setembro de 1822, o então Imperador D. Pedro I “rompe” os laços familiares e políticos com a Coroa Portuguesa, ao declarar a independência e instituir o Império. Mas, a expulsão das tropas portuguesas do território brasileiro só será definitiva em 2 de julho de 1823, na Bahia, com a participação popular de homens e mulheres, indígenas, africanos e seus descendentes (escravos, alforriados e livres) e 5

brancos. Embora pouco reconhecido, foi este o ponto culminante para expulsar, por definitivo, as tropas portuguesas do Território e consolidar a Independência do Brasil.

Todavia, isso não significa que o tráfico e a escravidão tornaram-se algo superado no Estado Imperial, este, de certa forma, vem carregado das identidades/diferenças que o grupo social dominante tinha com a organização institucional existente. A emancipação cidadã por meio do estabelecimento de relação de trabalho livre e acesso aos direitos da população negra não fazia parte do projeto político, mesmo sendo declarada a alforria e o acesso a propriedade para alguns.

O pensamento liberal que passa a predominar, já no século XIX, nas metrópoles europeias e nas respectivas colônias e ex-colônias, traz consigo novas formas de organização da força de trabalho e o princípio universalista do direito à liberdade, algo que irá ser fundamental para a população negra. Ainda no Império, um período em transformação, os ideais são reestabelecidos já na primeira Constituição de 1824, ao serem mantidas as bases do sistema – plantação e escravidão – para assegurar o desenvolvimento, agora não só social e político, mas, sobretudo, econômico. Esta era uma postura que não se adequava às novas formas de organização do espaço comercial internacional, principalmente no Atlântico, devido aos novos parceiros da indústria, no caso a Grã-Bretanha2 a qual não tinha interesse pela manutenção da escravidão e passa a criminalizar o tráfico no Atlântico.

2 As regiões para onde foi levada a maioria dos africanos escravizados – Brasil, Caribe e o sul dos Estados Unidos – e as áreas da África que os forneceram já estavam envolvidos em outra tendência global: a dimensão moral, ideológica e política que se originou no mesmo Continente que gerara os mecanismos de escravidão maciça e os ligou a um sistema econômico transcontinental em expansão […] A Grã-Bretanha, com seu exemplo ampliado pelo visível sucesso econômico e por sua Marinha, conseguiu realizar uma mudança ideológica momentosa que cruzou fronteiras e pressionou as outras nações europeias em 1815, a condenar o comércio de escravos como “repugnante para os princípios de humanidade e moralidade universal” (COOPER, HOLT, SCOTT, 2007, p. 49)

Por outro lado, Alburquerque Junior (2007), contextualiza que o Estado Império brasileiro surge como instrumento de continuidade da estrutura econômica e social que vinha do período colonial, reforçando as mesmas hierarquias, ao sustentar a escravidão e a estrutura fundiária concentrada, “mantendo, inclusive, o estatuto colonial quando se tratava das relações econômicas entre nosso país e os países hegemônicos na economia internacional” (ALBURQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 42).

Toda a estrutura que se mantém nos princípios reais e de hierarquias na sociedade imperial, tem suas contradições dadas pelas questões que permeiam o entendimento dos ideais do homem branco europeu como ser superior, respaldado na religião Católica Apostólica Romana. Neste contexto, os povos africanos são tratados com indiferença e incapazes de participar de novos ciclos de relações sociais e econômicas. Quanto a este entendimento, Mattos 6

(2005) analisa que a expansão comercial da época moderna criou sociedades escravistas no Novo Mundo, engendradas nos séculos XVI e XVII em formas de legitimação religiosa, próprias do “antigo regime”. Mas que esta foi se redefinindo com o tempo.

Neste contexto, a partir de meados do século XVIII, as novas noções de liberdade econômica e cidadania política que começavam a ser engendradas no bojo das revoluções atlânticas tiveram que conviver com desafios econômicos, mas também políticos e culturais – colocados pela problemática da emancipação (MATTOS, 2005, p. 15).

Todavia, o processo social-histórico e político que se estabelece no Império quanto à emancipação e a cidadania dos sujeitos, frente às ideias de trabalho e mão de obra livre, vê definições que se criam com o fortalecimento dos determinantes de origem dos grupos sociais, antes do econômico, prevalecendo a exclusão de direitos aos povos escravizados. Uma das questões é determinada, pela Constituição de 1831, de quem pode exercer o trabalho livre no Império, ao restringir o desembarque e o trabalho de africanos considerados bárbaros. Outra questão é quem tem direito a propriedade da terra a partir de 1850, a partir da Lei de Terras. Esta Lei durante certo tempo passou despercebida em diversos estudos quanto aos direitos da população negra no Brasil, tanto no período da Colônia, Império e República, pelo fato de a propriedade concentrada da terra ser estudada e analisada pela dimensão da produção econômica.

Pois, a Lei 601, de 18 de setembro de 1850, estabelece princípios e dispõem sobre as terras devolutas do Império, sendo denominada de “Lei da Terra”, a qual em seu enunciado declara:

Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais. bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonisação extrangeira na forma que se declara […] (BRASIL, 1850).

Para tanto, no período de sanção da Lei, a escravidão e o tráfico eram práticas legais. Com isso, os grupos sociais excluídos do regime social e político e, consequentemente, do acesso aos bens materiais e econômicos, só poderiam adquirir terras, conforme o Art. 1º “ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra”. Em seu art 2º criminaliza outras formas de apossamento que não seja a compra. Sobre este aspecto Delgado (2005, p. 29) analisa que com a promulgação da Lei da Terra, foi liquidado o sistema de posses fundiárias que se estabeleceu, desde 1822, transformando o setor de subsistência em regime de propriedade familiar. Acabando com a possibilidade futura de reconhecimento da 7

mão-de-obra escrava liberta ter acesso a terra, o que inclui ainda a impossibilidade de criação de quilombos legais ou estabelecimentos familiares legalizados.

Eram estas as condições em 1888, quando foi decretada a Abolição pela Princesa Izabel. A população negra, recém liberta, foi privada das condições econômicas para ter acesso à propriedade da terra, conforme determinada a Lei de Terras. Para tanto, a Abolição e depois a instituição da República, em 1889, são reflexos do conjunto de movimentos internacionais e das lutas que se intensificaram, nas últimas décadas do século, nos principais centros urbanos e nos ambientes rurais, protagonizado por negros (as) livres e os grupos da elite econômica que aderem aos princípios liberais clássicos europeus de liberdade e cidadania, pelo trabalho livre, que não altera o processo de acesso à propriedade da terra no Brasil – da Colônia ao Império, do Império a República.

No entanto, cabe na atualidade, entender os reflexos das questões instituídas pelo Império com a Lei de Terras, e outras normas que se estabeleceram na instituição da República, no século XIX, ao desafio posto – a partir da Constituição de 1988, pelo Art. 68 do Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitórios (ADCT) –, que reconhece e garante o direito ao Território Quilombola à população negra, onde o Estado Nacional e as suas unidades federativas devem garantir às comunidades originárias dos antigos quilombos, o reconhecimento étnico e o direito à terra.

Desta forma, o presente artigo traz um estudo quanto ao processo social-histórico da formação do Estado Nacional e as garantias constitucionais do Território Quilombola na Bahia no séc. XXI; e a constituição dos territórios quilombolas pela identidade/diferença no acesso ao direito a terra na Bahia.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O estudo das identidades/diferença e as escalas nas relações de poder e política, expressam formas e conteúdos, a partir da reflexão dialética analítica, sobre as relações sócioespaciais da geopolítica do Estado Nacional brasileiro e a garantia do território quilombola na Bahia na primeira década do século XXI.

Para Moreira, o problema da análise sobre a diferença na geografia, esta na relação entre espaço-sujeito-diferença, ao sairmos do campo da cultura centralizada, sem que se dê com a identidade o que a cultura identitária fez com a diferença, isto significa instituir o primado por excelência da reflexão dialética. “Diferença como mesmidade da essência valor (mas, então, uma economia política da diferença, não uma antologia!)” (MOREIRA, 1999, p. 54-55). 8

Segundo Lakatos, Marconi apud Engels (2010, p. 83) explica que a dialética é a grande ideia fundamental segundo a qual o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisa acabadas, mas como um complexo de processos em que as coisas, a aparência estáveis, do mesmo modo que seus reflexos intelectuais do nosso cérebro, as ideias, passam por uma mudança interrupta de devir e decadência “portanto, para a dialética, as coisas não são analisadas na qualidade de objetos fixos, mas em movimento: nenhuma coisa está “acabada”, encontrando-se sempre em vias de se transforma, desenvolver […]”

Henrique (2002, p. 3) aprofunda que o período atual da história humana, ainda é marcado pelas fortes desigualdades sociais, econômicas e políticas, a Geografia Crítica e o Método Dialético (ainda) são a possibilidade (lógica) de explicação unitária e totalizante do mundo presente ou do espaço geográfico. O Método Dialético pressupõe a realidade como processo e a verdade sempre como provisória, são os pressupostos para romper as separações formais entre teoria/prática; sujeito/objeto, sociedade/natureza.

Portanto, o estudo quanto à identidade/diferença e a geopolítica, serão importantes, para compreensão acerca das relações socioespaciais que irão se fortalecer no Estado Nacional e no pacto federativo, com fragmentação destes em territórios tradicionais institucionalizados, como os Territórios Quilombolas. Nas análises desenvolvidas, as categorias espaço e território serão a base para as reflexões dialéticas da relação sociedade e natureza do espaço e tempo propostas por Santos (2006) quanto aos processos, formas e conteúdos nos eventos.

Dessa maneira o estudo se desenvolve com: o levantamento dos referencias bibliográficos (livros, teses, dissertações, artigos e demais publicações realizadas, em especial os estudos quanto à geopolítica do Estado Nacional e a questão dos Territórios Quilombolas); coleta de dados secundários em instituições públicas de pesquisa e gestão pública (Grupos de Pesquisa GeografAR da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Fundação Cultural Palmares (FCP), e publicações do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) a cerca do reconhecimento à regularização fundiária dos territórios quilombolas no Brasil e na Bahia; e dados produzidos por instituições sociais como a Comissão Pró-Índio de São Paulo.

O estudo sobre o tempo e espaço, desenvolveu-se a partir da análise de dois períodos históricos: no primeiro, o processo geopolítico de consolidação do Estado Nacional democrático compreendido entre os anos de 1988 ao ano 2000; no segundo, a análise da consolidação constitucional dos territórios quilombolas no período de 2001-2012 na Bahia, numa interface entre políticas afirmativas para inclusão e direitos à população negra. 9

ESPACIALIDADE E TEMPORALIDADE

Pelo estudo do processo social-histórico de formação e constituição do Estado Nacional, tendo sempre o encontro com as realidades dos sujeitos que o consolida e a análise das relações sócio-espaciais, é possível ter uma compreensão quanto à complexidade da sociedade brasileira contemporânea. Na segunda metade do século passado, a sociedade assumiu discursos reformistas e universalistas, acerca de questões como o combate ao racismo e todas as outras formas de violência, onde o fenótipo do ser determina interações sociais e políticas de opressão e exclusão. Assim, como neste contexto, é tratado o reconhecimento dos territórios quilombolas, em especial na Bahia do século XXI?

As questões analisadas, quanto às características da construção social, política, econômica e cultural desta sociedade, constituem diferenças de relações e interação no uso do espaço pelo seu povo. Dessa forma, será observado o processo do Estado Nação, declarado em dois eventos de seu processo histórico: com a Abolição da escravatura e Proclamação da República. Os dois eventos, podem ser superados no discurso social que se consolida na institucionalidade do Estado Nacional, mas não serão superados, na realidade vivida pela população negra, que adentra o século XX, como maioria da população, expondo as contradições da sociedade, que adere a princípios liberais de direitos, entretanto, sua implantação, esbarra em ideias e pensamentos preconceituosos, racistas e elitistas. Em especial, quando o objeto de direito em questão for a propriedade privada ou coletiva da terra.

Sobre essas questões postas no estado de direito e o processo social-histórico que se produz e altera nas temporalidades e as contradições da sociedade, Castro (2011, p. 41) aborda que o poder e a política são emergentes às questões de conflito de interesse que surgem das relações sociais e se territorializam, ou seja, materializam-se em disputas entre esses grupos e classes sociais para organizar o território da maneira mais adequada aos objetivos de cada um, ou seja, do modo mais adequado aos seus interesses.

Ojo-Ade (1999) em estudo realizado sobre a situação e presença do negro na sociedade brasileira, estabelece como pergunta chave se este país é um paraíso para esta população negra? O autor destaca que a resposta foi inversa, na verdade era saber se existe racismo no Brasil! Sem dúvida, um sim será ressoante, não entre as forças que concentraram o poder econômico e político, mas entre o grupo social que ficou excluído do espaço político decisório do Estado Nação, assim, “o paraíso, ao quais alguns, já se referem sutilmente, é simplesmente uma camuflagem, uma invenção da imaginação hipócrita. Melhor ainda, seria uma utopia dos privilegiados, o que, para os negros, é um pesadelo” (OJO-ADE,1999, p. 42). 10

Castro (2012), ressalva que neste processo, é necessário não tornar completamente pessimista a compreensão, mas é possível avançar quanto à origem do termo política, pois este é uma referência central para o público e o civil, que será uma oposição às formas de organização social, na sociedade que tem, no comando, possibilidades de igualdade para a coexistência entre os diferentes. A autora supracitada esclarece que:

Todavia, se avançarmos para a ideia da polis com referência aos limites territoriais do politikós, percebemos como as regras necessárias ao ordenamento social, criado para superar a precariedade das condições que surgem do convívio entre livres e diferentes, são condições fundadoras do espaço político (CASTRO, 2012, p.60).

Nessa direção Jaccoud (2008, p.49) esclarece que o racismo no Brasil é associado a processo social-histórico do sistema escravista, e que este avançará com a instituição do direito a liberdade à população negra, pelo motivo que os discursos de superioridade e inferioridade entre raças se fortaleceram. Os grupos sociais, de origem europeia, não foram destituídos dos seus espaços político e, consequentemente, de poder. Eles continuam interagindo com a mesma estrutura de outrora, que neste momento irá dialogar com a compra e venda da mão de obra livre da população negra e também dos imigrantes estrangeiros, que são oficializados ao entrar no Território Nacional, como capazes de garantir o desenvolvimento do Estado Nação. Os sujeitos oprimidos de até então, são excluídos de mais um novo fluxo social, político e econômico de acesso a direitos e, consequentemente, à propriedade da terra.

Se a identidade não tinha no racismo e no etnocentrismo as bases para a consolidação da identidade nacional, a política de imigração da mão de obra europeia será uma das estratégias para garantir, não só o fortalecimento do espaço político, mas, também, favorecer os ideais de que a nação precisaria embranquecer para não se tonar um “atraso”, o que seria resolvido, dentro de algumas décadas. Dessa forma, (GERMANI, 2006, p. 128) nos elucida que a decisão pela mão-de-obra de imigrantes tem relação direta com o olhar político da época sobre essa população negra, sendo “o escravo africano a força de trabalho de todo o sistema implantado na colônia: primeiro nos engenhos, depois nas minas de ouro e mais tarde nas fazendas de algodão e café”, este não poderia vir a ser parte do sistema produção, onde a mão-de-obra passaria a integrar o sistema de produção livre, com ações públicas do Estado Nacional que se fortalecia em integração com as políticas externas comerciais.

No entanto, entre os fatores que impediram a emergência de um sistema econômico capaz de absorver a mão-de-obra livre está à promulgação da Lei nº 601/1850, a chamada Lei de Terras. Operando uma regulamentação conservadora da estrutura fundiária no Brasil, a Lei de Terras foi promulgada no mesmo ano em que se determinou a proibição do tráfico de 11

escravos (Lei Euzébio de Queiroz), marco da transição para o trabalho livre (THEODORO, 2008, p. 37:38).

Com a efetivação da política de imigração de mão-de-obra europeia para trabalho no campo e na cidade no Império, e posteriormente, na República entre os anos de 1871 e a década de 1920, segundo Anjos (2006, p. 35) entraram no país 3.390,000 imigrantes europeus, sendo que 1.373,000 eram italianos; 901.000, portugueses e 500.000, espanhóis.

É importante notar que esse número se aproxima dos quase 4 milhões de africanos que foram retirados de sua habitat natural e trazidos para o Brasil oficialmente entre 1535 e 1850, sem considerar o período clandestino do trafico, ainda não caracterizado pela historiografia brasileira (ANJOS, 2006, p.35).

Nos estudos sobre a organização dos quilombos como territórios de resistência e mudanças no modo de produção escravista, Moura (2004) define que os quilombos foram do ponto de vista de organização e de continuidade histórica, a maior expressão de resistência a escravidão no Brasil […] “o quilombo caracteriza-se basicamente pela sua conotação radical, como expressão da radicalidade diante do escravismo” (MOURA,2004, p.32)

Segundo Anjos (2007) esses povos garantem a resistência pela identidade étnica-racial, e define os espaços construídos como território étnico:

Será o espaço construído materializado a partir das referencias de identidade e pertencimento territorial, e, geralmente, a sua população tem um traço de origem comum. As demandas históricas e os conflitos com o sistema dominante têm imprimido a este tipo de estrutura espacial exigências de organização e a instituição de uma auto-afirmação política, social econômica e territorial (ANJOS, 2007, p.35).

Lienhard (1999, p. 113) explica que nessas condições “a etno-história moderna há de entender-se a história dos grupos ou setores marginalizados pelos sistemas colônias ou neocoloniais.” Pois, a chamada “etnicidade”, baseada numa condição pré-colonial ainda viva ou reinventada, vem a ser antes de tudo a resposta de certos setores socioculturais a sua discriminação no seio da sociedade global, “colonial” ou “moderna”.

Por tudo isto se justifica entender o reconhecimento dos Territórios Quilombolas no marco constitucional do Estado Nacional, a partir da Constituição de 1988, e sua consolidação no Estado da Bahia, no século XXI uma contribuição à geopolítica do Estado Nacional brasileiro e ao processo social-histórico do espaço, para a garantia constitucional dos territórios, tendo como foco a constituição dos territórios quilombolas pela identidade e acesso e direito a terra.

ENQUADRAMENTO TEÓRICO: ESTADO DA ARTE DA QUESTÃO

Santos (2006, p. 99) define que os eventos históricos pelas dimensões geográficas e políticas se caracterizam na mudança de realidade e envolvem a interferência de atores sobre 12

espaço ou região, sendo que a força capaz de agir será o Estado, pelo seu “uso legítimo da força”, encarnado ou não no direito. A lei, ou o que toma seu nome, é, por natureza, geral.

O Caderno Identificação e Abordagem do Racismo Institucional, publicado pelo Instituto AMMA (2009), exemplifica o conjunto de convenções e leis, das quais o Brasil tornou-se signatário e adotou como normas constitucionais, na segunda metade do século XX e no início década do século XXI, tendo em vista a afirmação da cidadania de negros (as) e seus territórios.

Entre as convenções internacionais das quais o país tornou-se signatário, assumindo o combate ao racismo como dever social e institucional de uma nação democrática, destacam-se:

a) A Convenção Nº 169 de 1957, como membro signatário da Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, realizada em 1989, em Genebra na Suíça. Tornado-se signatário dos princípios e normas internacionais enunciadas na Convenção e na Recomendação sobre populações indígenas e tribais;

b) A Conversão sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela ONU, em 21 de setembro de 1965, e ratificada pelo Brasil, em 27 de março de 1968, instrumento internacional voltado ao combate à discriminação racial, integrado ao sistema especial de proteção aos direitos humanos. No primeiro parágrafo estabelece “os Estados Partes condenam a discriminação racial e comprometem-se a adotar uma política de eliminação da discriminação racial em todas as suas formas e de promoção de entendimento entre todas as raças”.

c) A III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas, realizada em Durban na África do Sul, em 2001, onde o Brasil tornou-se signatário.

Para o reconhecimento pelo Estado Nacional do racismo e outras práticas de intolerâncias correlatas como crime, se pode destacar:

a) A Constituição Federal, de 1988, ao ser contundente ao tornar crime os atos de racismo, prevendo reclusão, alberga vários valores fundamentais, entre os quais está o principio de igualdade. Em seu Art. 3º, inciso IV, constitui como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;

b) No Art. 216 da Constituição de 1988, consta que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem. O inciso V define que os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. 13

Sendo enfático em seu parágrafo 5º que ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos;

c) No Art. 68 do Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitórios (ADCT): consta que aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos;

d) O Art. 51 no Ato das Disposições Transitórias (ADT) da Constituição de 1989, do Estado da Bahia, estabelece que o “Estado executará, no prazo de um ano após a promulgação desta Constituição, a identificação, discriminação e titulação das suas terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos”.

e) Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003 – regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do (ADCT).

Pelo fato da população negra sair do processo de exclusão socioespacial para o reconhecimento de direitos civis e sociais a partir da criminalização legal do racismo pelo Estado brasileiro, Porto-Gonçalvez (2006, p. 278) assinala que a questão jurídica torna-se, “por tudo o que estamos vendo, objeto de um intenso debate por todo lado, até porque se trata de estabelecer a norma legal em aberto conflito de interesse cuja novidade, hoje, é a presença de novos protagonistas”.

Anjos (2006, p. 15) analisa que o processo de exclusão da população negra na constituição do Estado brasileiro, a partir da violência do sistema escravista e após-abolição, fundamentados em estudos científicos, desenvolvidos na Europa e depois no Brasil, legitimou a política pública de embranquecimento populacional. No entanto, a população negra, sobreviveu a esta política de tornar a população nacional branca e chegou ao século XXI, não como minoria, “embora seja classificada desta maneira por meio dos artifícios numéricos” mais como uma maioria.

Com o advento dos investimentos públicos para a afirmação étnica da população na primeira década do século XXI, no Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2010, 97 milhões de pessoas declaram-se negras (soma dos pretos e pardos), totalizando, 51% da população nacional.

Segundo dados da FCP3, foram Certificados no Brasil, 1749 Territórios Quilombolas4, entre 2003 e 2012. Nos dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo, publicado no relatório

3 Consulta realizada no site http://www.palmares.gov.br/quilombola/ em 01.02.2013

4 Os Territórios Quilombolas são titulados de forma coletiva e indivisa, ou seja, o território titulado – que já não era desmembrado – continua não podendo sê-lo posteriormente. Tal medida se dá em proveito da manutenção desse 14

território para as futuras gerações. É uma terra que, uma vez reconhecida, não será vendida quer na sua totalidade, quer aos pedaços (INCRA, 2012).

5 Consulta realizada no site http://www.palmares.gov.br/quilombola/# em 01.02.2013.

6 Consulta realizada no site http://www.incra.gov.br/index.php/noticias-sala-de-imprensa/noticias/12455-bahia-tem-quatro-decretos-de-interesse-social-de-quilombolas-assinados-em-semana-da-consciencia-negra em 05.02.2013.

7 http://www.geografar.ufba.br/site/default.php

“Terras Quilombolas Balanço 2011”, 117 territórios receberam títulos de propriedade da terra, entre os anos de 1995 e 2011. Segundo INCRA, em 2012, no Brasil existem 103 processos abertos esperando (inicio ou finalização) para a demarcação e publicação do Relatório Técnico de identificação e Delimitação (RTID).

Quanto aos números de regularização dos territórios quilombolas titulados no Estado da Bahia, a partir do Art. 51 do ADT da Constituição estadual de 1989 e o Decreto 4.887/2003. Segundo os dados da FCP5, foram Certificados 425 Territórios. Entre os anos de 2009-2012, foram decretados 10 territórios quilombolas de interesse social pela Presidência da República6 (Olhos D´água do Basílio, Agreste, Sambaíba, Mata do Sapé, Jatobá, Lagoa do Peixe, Nova Batalhinha,Parateca Pau´Darco, Salamina Putumuju e Dandá). Dessa forma, o Mapa I produzido em 2010, pelo GeografAR7, traz a espacialização de parte desses territórios certificados e em processo de titulação.

Nos estudos produzidos pelo GeografAR, sobre as Comunidades Negras Rurais do Médio São Francisco, foram identificadas e tituladas, pelo Estado da Bahia através do Projeto de Assentamento e Reforma Agrária (PA) e o Projeto Especial Quilombola, cerca de 42 comunidades e 13 tem a propriedade definitiva da terra, segundo Amorim e Germani (2005, p. 807):

Estão distribuídas pelos municípios de Barra – Brejo do Mutuca, Brejo do Saco, Curralinho, Porto da Palha e Wanderley; Bom Jesus da Lapa – Alagoinhas, Araçá Cariaca (PA), Batalha (PA), Campo Grande I (PA), Campo Grande II (PA), Fortaleza, Lagoa dos Peixes, Pedras e Patos, Rio das Rãs (PEQ) e Santa Rita; Carinhanha – Angico, Barra da Parateca, Barrinha, Canabrava, Feirrinha/Marrequinho (PA), Garrido, Ramalho, Três Ilhas; Igaporã – Bringela, CanabravaContandas, Guarentá, Gurunga, Ibiruçu, Lagoa Grande, Sambarba e Santa Maria; Malhada – Parateca e Pau D’Arco (PEQ), Rumo ao Rio (PEQ) e Tomé Nunes (PA), Muquém do São Francisco – Jatobá; Riacho de Santana, Quilombo e São José; Sítio do Mato – Barro Vermelho (PA), Mangal (PA) e Talismã (PA). As Comunidades que não estão identificadas como PA ou PEQ não possuem título de propriedade da terra que ocupam (AMORIM, GERMANI, 2005, p. 807).

No entanto, o não comprimento constitucional do direito aos Territórios Quilombolas no estado da Bahia, tem relação com a geopolítica do Estado Nacional e seus limites para o comprimento do constitucional. E apresenta necessidade de inter-relações culturais, sociais, ambientais, políticas e econômicas, para que a sociedade avive sobre o modelo institucional posto pela elite latifundiária do século XIX e a empresarial no século XX, que se instalaram nos 15

poderes políticos e econômicos, do Império à República do século XXI, excluindo a população negra de direitos civis e coletivos.

O reconhecimento dos limites do Estado Nacional e das unidades federativas no avanço sobre a diferença na ocupação dos espaços territoriais e políticos pelos grupos sociais e econômicos, irá contribuir para a não institucionalidade dos territórios quilombolas. Pois, esses territórios de configuração social étnica e política, definem os usos dos espaços na afirmação étnica coletiva, produzida e reproduzida no processo histórico político e econômico da sociedade.

Mapa I – Comunidades Negras Rurais – 2010

Haesbaert (2010, p. 341) esclarece que ao invés de uma compreensão geográfica de “território” único como estado ou condição clara e esteticamente definida, devemos priorizar assim a dinâmica combinada de múltiplos territórios ou “multiterritorialidade”, melhor expressa pelas concepções de territorialização e desterritorialização, principalmente agora que a(s) mobilidade(s) domina(m) nossas relações com o espaço.

Santos (2007, p.34) avalia que a Geografia dos comportamentos e das práticas nas relações raciais se soma à distribuição espacial dos grupos raciais, constituindo espacialidades 16

materiais e simbólicas intimamente vinculadas às subjetividades, intersubjetividades e identidades de indivíduos e grupos.

Pois, Santos (2006, p. 39) define que o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá.

Dessa maneira a garantia constitucional do território quilombola no Brasil no século XXI, está relacionado também ao combate ao racismo na institucionalidade8 a exemplo do que os Estados Unidos, no final da década de 1960, empregaram com o conceito de discriminação indireta ou racismo institucional para a promoção de políticas de equidade racial. O conceito, no entanto, surgiu no contexto dos direitos civis e com a implementação de políticas afirmativas. (JACCOUD, 2008, p. 145).

8 Racismo Institucional tem como definição: o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, praticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de trabalho, os quais são resultantes da ignorância, da falta de atenção, do preconceito ou de estereótipos racistas. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações (AMMA, 2009).

No Brasil, o combate ao racismo institucional ainda não é uma realidade mesmo com o advento das políticas de promoção da igualdade racial, devido à forma como se organiza o Estado Nacional e relações socioespaciais políticas e econômicas, como a dos partidos político tradicionalmente elitista e mantenedor dos princípios do latifúndio do século XIX.

Segundo Brasil (2008, p.01) o Partido Liberal Federal (PFL) rebatizado de (DEM), ingressou no Ministério Público Federal (MPF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº. 3239, em 2005, onde alega inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03, pelos seguintes argumentos: a impossibilidade de edição de regulamento autônomo para tratar da questão; a inconstitucionalidade do uso da desapropriação, prevista no art. 13 do Decreto 4.887/03; a inconstitucionalidade do emprego do critério de auto-atribuição; a invalidade da caracterização das terras quilombolas como aquelas utilizadas para “reprodução física, social, econômica e cultural do grupo étnico” (art. 2º, § 2º do Decreto 4.887/03).

Sendo que a Lei 9.784/99 já disciplinava o processo administrativo da União, seguida pelo Art. 14 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), prevendo o direito a propriedade dos povos as terras tradicionalmente ocupadas, sendo a Convenção 169 da OIT celebrada pelo Presidente da República (art. 84, inciso IV, CF), sobre atos internacionais. Posteriormente, essas foram submetidas ao Congresso Nacional, que as aprovou através do 17

Decreto Legislativo nº 143/2002, sendo contrário ao argumento feito pelo autor da ADIN, conforme o parecer da Procuradoria Regional da República/MPF.

Para tanto, há necessidade de compreender como se configuram a relação espaço e território quilombola nesta sociedade marcada pela integração a partir de determinante racial, por sua vez, o Território Quilombolas sobreviveu na exclusão aos processos sociais-históricos até o seu reconhecimento no século XX, constitucionalmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo social-histórico analisado tem no espaço e tempo, a realidade encontrada pela população negra brasileira no século XXI, principalmente no Estado da Bahia, quanto ao acessar o direito ao Território Quilombola, conforme preconiza as conversões, normas e leis, reconhecidas e instituídas no Estado Nacional, a partir da Constituição Cidadã de 1988.

A construção de uma nacionalidade pelo reconhecimento da identidade/diferença se apresentou ao Estado Nacional, desde o século XVI, como possibilidade de formação e afirmação de uma sociedade de geopolítica do multi-territorial. Mas, o que se observou em todo processo social-histórico é a recusa à integração da essência dos povos africanos a esse Estado, os mesmos responsáveis pelo fortalecimento e forma do modo de produção que perdurou por mais de três séculos como única via em duas instituições a plantação e a escravidão, do Brasil colonial ao imperial.

O contexto histórico produz conteúdos, que se apresentam como desafios na elaboração de políticas públicas modernas e contemporâneas, ambas interconectadas com o reconhecimento da identidade e diferença, no uso e acesso aos espaços territoriais, políticos, econômicos e sociais. No Brasil, as relações sócioespaciais, a partir da promulgação do Constituição de 1988, apresentam ao Estado Nacional e ás unidades federativas, em especifico o Estado da Bahia, o desafio de transformar, a história de vida da população negra quilombola. O não avanço na garantia constitucional de direito efetivo de propriedade da terra, no século XXI, representa atraso real, ao desenvolvimento nacional, pelo fato desta população, ter secularmente garantido a sustentação e manutenção da produção e reprodução, através da territorialidade, no processo de luta e resistência, a exclusão e opressão sofrida por este próprio Estado Nacional.

Assim, os Territórios Quilombolas, identificados e reconhecidos pelo Estado, precisam de avanço conforme toda análise produzida, no que se refere à efetivação do direito coletivo à propriedade. Para tanto, superar o racismo nas institucionalidades do estado de direito, será um desafio para toda a sociedade, pois os atos de partidos políticos como o PFL (atual DEM), que 18

usa do direito institucional para contestar, a constitucionalidade de normas como o Decreto 4.887/2003, instrumento de garantia administrativa e efetivação do compromisso da sociedade com o Art. 68 do ADTC, reflete o tamanho do desafio vivido na totalidade, quanto ao direito a terra, preconizado pelos povos africanos nos século XVI-XVII, com o Quilombo de Palmares, é contemporâneo e expõe a realidade coletiva em real atraso civilizatório e humano no Brasil.

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