(Atualização em 9/3/2014, às 23h53) Em 1970, o Brasil ainda vivia sob a ditadura do regime militar, instaurado em 1964. O presidente era o general Emílio Garrastazu Médici (Arena), que governou o país de 1969 a 1974. Médici era da "linha dura", a ala mais radical dos militares. Seu governo foi, talvez, o mais repressivo da história política do Brasil, resultando na morte e tortura de centenas de oposicionistas, acusados ou suspeitos de "subversão". Foi também um período em que parte da oposição decidiu partir para a luta armada, e ocorreram sequestros de diplomatas estrangeiros para trocá-los por prisioneiros políticos e assaltos a banco. Milagre brasileiro Na época, a economia brasileira crescia mais de 10% ao ano. Não que o crescimento da economia fosse obra do governo. Como a economia mundial crescia, a brasileira acabou se beneficiando. Houve um aumento dos empréstimos obtidos no exterior e dos investimentos estrangeiros no país. As exportações aumentaram, especialmente as de produtos agrícolas, como soja e laranja. Crescimento da economia significava também aumento da oferta de empregos na indústria. Foi um momento em que a classe média realizava seus sonhos comprando carros e eletrodomésticos. Foi nesse contexto político e econômico que a seleção brasileira conquistou a Copa do Mundo no México e o Brasil se tornou o primeiro país tricampeão. Futebol e propaganda política Além da tortura e da repressão, o governo Médici usou a propaganda como arma política. O presidente Médici era apresentado como um "homem do povo" e "apaixonado por futebol". A vitória da seleção brasileira sobre a seleção italiana por 4 a 1, na final, foi bastante explorada pela propaganda do governo Médici em slogans do tipo "Ninguém segura este país" ou "Brasil; ame-o ou deixe-o". O técnico que classificou o Brasil para a Copa de 1970 foi João Saldanha, que acabou substituído por Mario Zagalo durante a competição. Alguns acreditam que a substituição de Saldanha por Zagalo teria sido resultado de uma suposta interferência de Médici. O então presidente da República teria dado palpite na escalação do time feita por Saldanha. O técnico teria respondido que Médici mandava nos ministérios, mas que quem mandava na seleção era ele (Saldanha). Futebol: o ópio do povo Temendo que a vitória da seleção na Copa do Mundo fosse explorada pela propaganda do regime militar, o que acabou acontecendo, alguns intelectuais de esquerda, opositores do Regime, afirmavam que o futebol era o "ópio do povo", pois faria a população se alienar, deixando de lutar pela solução dos problemas sociais. A expressão foi criada por Karl Marx. Era como ele considerava a religião. Porém, em 1974, a seleção brasileira decepcionou os torcedores, ao não conseguir repetir a conquista da Copa anterior. E o regime militar brasileiro também não conseguiu manter sua popularidade. Naquele ano, o aumento do preço do petróleo imposto pela Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) gerou uma crise econômica mundial que levou ao fim do chamado "milagre econômico". A inflação disparou no Brasil e os brasileiros sofreram com o aumento dos preços e o arrocho salarial. 1978: a Copa na Argentina Em 1976, foi instaurada uma ditadura militar de extrema-direita na Argentina. No Brasil, os militares ficaram quase vinte e um anos no poder (de abril de 1964 a março de 1985). Na Argentina, os militares ficaram apenas sete anos (de março de 1976 a dezembro de 1983). Apesar de ter durado menos tempo, a ditadura portenha conseguiu ser muito violenta com a oposição. Na América do Sul, outra ditadura sangrenta foi a instaurada pelo general Augusto Pinochet no Chile, que governou o pais de 1973 a 1990. Em 1978, a seleção de futebol da Argentina venceu a Copa do Mundo em casa. Similarmente ao que ocorreu no governo Médici, quando a seleção brasileira conquistou o tricampeonato, a ditadura argentina aproveitou a conquista do título mundial para fazer propaganda e ganhar popularidade. Apesar de invicto, o time brasileiro perdeu a chance de disputar a final quando foi superado em saldo de gols pelo time da casa depois que a seleção da Argentina goleou a seleção do Peru (6x0). A goleada atraiu suspeitas de fraude. Ainda hoje, muitos torcedores brasileiros suspeitam que houve "marmelada". Segundo essa versão, o time peruano teria sido subornado para "entregar" o jogo. Até o fato de o goleiro da seleção peruana, Ramon Quiroga, ser um argentino que se naturalizou peruano, contribuiu para aumentar as suspeitas. De qualquer modo, com ou sem trapaça, a seleção argentina venceu a seleção holandesa na final. A seleção brasileira teve que se conformar com o terceiro lugar e com o título de "campeão moral". A Copa de 1978 também é lembrada pela partida que ficou conhecida como a "Batalha de Rosário", na qual brasileiros e argentinos se enfrentaram num jogo que terminou empatado (0x0). Argentina e Inglaterra: rivais na guerra e no futebol Em 2 de abril de 1982, para desviar a atenção da opinião pública dos problemas internos, o governo ditatorial argentino resolveu apelar novamente para o nacionalismo: iniciou uma guerra contra o Reino Unido pela posse das ilhas Falklands (a Guerra das Malvinas, nome das ilhas para os argentinos). O tiro saiu pela culatra: a guerra terminou com uma humilhante derrota para as forças armadas argentinas, cuja rendição para os britânicos se deu em 14 de junho do mesmo ano. Com a derrota, a opinião pública da Argentina se voltou contra o governo, que entrou em colapso. No ano seguinte, a ditadura chegava ao fim na Argentina. Na Copa de 1986, realizada no México, que acabou vencida pela Argentina, os argentinos viram num jogo contra a seleção inglesa, uma chance de se "vingarem" da derrota na guerra. Dessa vez, os argentinos saíram vitoriosos (2x1). Foram dois gols de Maradona, o segundo foi legítimo, mas o primeiro foi feito com a mão. O craque argentino afirmou cinicamente que esse gol foi de cabeça, a mão que se viu era "de Deus". Quando o assunto é a relação entre futebol e ditadura no Brasil, é de conhecimento geral que o general Emílio Garrastazu Médici se esforçou para vincular sua imagem à conquista da Copa do Mundo de 1970. A AERP (Agência Especial de Relações Públicas, agência oficial de propaganda do governo militar), criada por seu antecessor, o general Costa e Silva, em janeiro de 1968,[1] soube trabalhar muito bem em suas peças publicitárias os ideais do regime vinculados ao bom momento econômico, a conquista da Seleção e a popularidade do do então presidente da República. Presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) fora do Palácio do Planalto – inaugura a Rodovia Belém-Brasília. Esta imagem é parte do Fundo Agência Nacional Série FOT Subsérie PRP (Fonte: Wikimedia)O gosto de Médici pelo futebol e sua frequente aparição nos estádios brasileiros facilitou o trabalho da AERP. A imagem de presidente-torcedor é bastante difundida na literatura acadêmica sobre o período, conforme aponta João Máximo: “o general presidente era um torcedor confesso, desses de acompanhar os jogos com radinho de pilha colado ao ouvido”.[2] Para Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento et al. (2014), Médici “era um gremista e flamenguista fanático”.[3] E Marcos Guterman (2009) afirma que Médici era um “autêntico torcedor de futebol”.[4] Nesse contexto, serão analisadas as memórias de três geniais atacantes da Seleção de 1970: Tostão, Pelé e Rivellino, publicadas em obras relativamente recentes sobre suas respectivas carreiras e vidas pessoais: Lembranças, opiniões, reflexões sobre futebol (1997) e Tempos vividos, sonhados e perdidos: um olhar sobre o futebol (2016), de Eduardo Gonçalves de Andrade, mais conhecido por Tostão; Pelé: a autobiografia (2006), de Edson Arantes do Nascimento;[5] Rivellino (2015), de Maurício Noriega, biografia do craque que inclui também depoimentos do próprio jogador. Em todas as obras analisadas, a conquista daquela Copa e a imagem de Médici aparecem obrigatoriamente juntas. TostãoDiferentemente do mainstream dos atletas de futebol, Tostão nunca se furtou de manifestar seus posicionamentos políticos. A título de exemplo, a matéria mais emblemática foi a entrevista concedida ao periódico de resistência Pasquim, em maio de 1970. Em sua obra de 1997, o ex-jogador disserta sobre Médici e sua percepção sobre a cerimônia de recepção aos tricampeões do mundo:
No trecho acima, a “fera de ouro” revela sua percepção acurada do uso político da seleção pelo regime. Avesso ao governo vigente à época da conquista, Tostão relata o dilema com o qual teve de lidar em um contexto tão complicado, após 27 anos passados desde então. A imagem de Médici como usurpador da conquista foi percebida pelo atleta, que sempre se destacou por se posicionar politicamente. Em seu livro de memórias mais recente, intitulado Tempos vividos, sonhados e perdidos (2016), Tostão retorna ao assunto em resposta às críticas sobre o grau de responsabilidade dos atletas na capitalização da conquista pelo regime:
Em resumo, em seus relatos memorialísticos publicados décadas mais tarde, Tostão se mostra avesso à capitalização política da conquista pelo regime e pelo presidente Médici, além de demonstrar seu incômodo com as críticas sobre a suposta omissão dos atletas no contexto da Copa de 1970. Tostão e Pelé. Fonte: Acervo CBFPeléEm suas memórias, o “rei” cita o interesse de Médici pelo esporte bretão: “[a]lguns de nós recebemos um telefonema do general Emílio Médici, presidente do Brasil. […] Médici, que estava no poder desde 1969, era conhecido como fã de futebol. (NASCIMENTO, 2006, p. 191).[8] A imagem de torcedor reaparece na narrativa de Pelé, assim como a intimidade oriunda de “telefonemas” entre o presidente e alguns atletas. Assim como Tostão, a cerimônia de recepção dos atletas campeões por Médici no Palácio do Planalto é relembrada. Porém, é vista com bons olhos por Pelé, conforme os termos grifados por mim em seu depoimento:
O tom da narrativa é nostálgico, carregado de emoção e empatia pelo ditador. O “capital político” citado por Pelé não é problematizado, enquanto o “patriotismo” e o envolvimento emocional de Médici expresso em seu “discurso comovente” são ressaltados. Nota-se, também, no relato memorialístico de Pelé a resposta aos questionamentos críticos sobre o papel dos jogadores e o vínculo com o regime:
Trinta e seis anos após a Copa de 1970, Pelé se esquiva de maiores argumentações, possivelmente evitando mais polêmicas envolvendo sua imagem. É importante ressaltar que Pelé é visto com antipatia por parte da imprensa esportiva (fora de campo, em suas convicções pessoais), sendo tratado como apoiador do regime militar; seja por ter se declarado contra o “comunismo” (inimigo idealizado do regime), seja por ter apoiado Médici na inauguração de um hotel brasileiro no México (logo após a Copa do Mundo de 1970) ou por ter ajudado João Havelange em sua campanha para presidência da FIFA, entre outros episódios.[11] RivellinoCapa da biografia de Rivellino.A passagem de Rivellino sobre o general-presidente vai ao encontro do relato de Pelé sobre as ligações telefônicas realizadas pelo Chefe de Estado a membros do elenco:
A imagem de Médici como torcedor de futebol também é alimentada no depoimento de Roberto Rivellino, e a intimidade com a qual se dirigia diretamente aos atletas via telefonemas é confirmada. Rivellino é sintético quando indagado por seu biógrafo Maurício Noriega a respeito da relação do regime militar com a Seleção:
Conforme seu relato, passados quarenta e cinco anos após a Copa de 1970, Rivellino sugere certo incômodo com o assunto. Assim como Pelé, é bem sucinto e desconversa sobre a relação. É reproduzido certo estereótipo segundo o qual os jogadores de futebol no Brasil posicionam-se “apoliticamente”, dizendo que o campo esportivo e o político não se misturam. A Copa de 1970 e seu uso político – a guisa de conclusãoBaseados nos relatos de Tostão, Pelé e Rivellino, podemos concluir que, de fato, o objetivo de capitalização política da conquista foi atingido, uma vez que até hoje a imagem de Médici com a taça Jules Rimet em mãos é bastante relembrada pela mídia quando se trata da Copa do Mundo de 1970. A Seleção Brasileira de futebol contribuiu, de certa forma, para reafirmar o clima otimista do país, em meio a todas as arbitrariedades que ocorriam simultaneamente nos bastidores e nos porões da ditadura, fundamentada em um “autoritarismo paternalista ultrarrepressivo”,[14] conforme aponta Marcos Guterman. Os relatos dos ex-atletas sugerem o incômodo de serem vinculados, de certa forma, a um plano publicitário do regime militar, ao mesmo tempo em que reforçam a imagem de Médici como a de um torcedor que acompanhava de perto o futebol e a Seleção Brasileira. ReferênciasGIANORDOLI-NASCIMENTO, Ingrid Faria; MENDES, Bárbara Gonçalves; NAIFF, Denis Monteiro Giovani. “Salve a seleção”: ditadura militar e intervenções políticas no país do futebol. Psicologia e Saber Social, v. 3, n. 1, p. 144-153, 2014. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/psi-sabersocial/article/view/12211; Acesso em: 18 jul. 2020. GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país. São Paulo: Editora Contexto, 2009. MÁXIMO, João. Memórias do futebol brasileiro. Estudos Avançados, v. 13, n. 37, p. 179-188, 1 dez. 1999. NASCIMENTO, Edson Arantes do. Pelé: a autobiografia. red. Orlando Duarte e Alex Bellos, trad. Henrique Amat Rêgo Monteiro, Rio de Janeiro: Sextante, 2006. [título original: My Autobiography] NORIEGA, Maurício. Rivellino. São Paulo: Contexto, 2015. TOSTÃO. Lembranças, opiniões, reflexões sobre futebol. São Paulo: DBA, 1997. TOSTÃO. Tempos vividos, sonhados e perdidos: um olhar sobre o futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Notas[1] GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país. São Paulo: Editora Contexto, 2009, p. 159. [2] MÁXIMO, J. “Memórias do futebol brasileiro“. Estudos Avançados, v. 13, n. 37, p. 179-188, 1 dez. 1999, p. 187. [3] GIANORDOLI-NASCIMENTO, Ingrid Faria; MENDES, Bárbara Gonçalves; NAIFF, Denis Monteiro Giovani. “Salve a seleção”: ditadura militar e intervenções políticas no país do futebol. Psicologia e Saber Social, v. 3, n. 1, p. 144-153, 2014, aqui p. 147. Acesso em: 18 jul. 2020. [4] GUTERMAN. O futebol explica o Brasil, p. 161. [5] Cabe ressaltar que, embora o livro traga como subtítulo a palavra “autobiografia”, trata-se de uma obra complexa quando se discute sua autoria, uma vez que Pelé contou com dois “redatores”, os jornalistas Alex Bellos e Orlando Duarte, para elaborar o processo de redação do livro. Além disso, o livro foi publicado, originalmente, em Inglês, sob o título de My Autobiography, pela editora Simon & Schuster UK Ltd. [6] TOSTÃO. Lembranças, opiniões, reflexões sobre futebol. São Paulo: DBA, 1997, p. 62. [7] TOSTÃO. Tempos vividos, sonhados e perdidos: um olhar sobre o futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 50. [8] NASCIMENTO, Edson Arantes do. Pelé: a autobiografia. red. Orlando Duarte e Alex Bellos, trad. Henrique Amat Rêgo Monteiro, Rio de Janeiro: Sextante, 2006, p. 191. [9] Idem, p. 191-192, grifos nossos. [10] Idem, p. 192. [11] Ver: Com ‘imensa satisfação’, Pelé serviu Médici no ano do tri. ESPN, 27 ago. 2014. Acesso: 18 jul. de 2020> [12] RIVELLINO apud NORIEGA, Maurício. Rivellino. São Paulo: Contexto, 2015, p. 61. [13] Idem, p. 61. [14] GUTERMAN. O futebol explica o Brasil, p. 161. Seja um dos 32 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA Como citarCORNELSEN, Elcio Loureiro; MARINHO, Matheus. A Copa de 1970 e seu uso político: a imagem do general Médici nas narrativas de três protagonistas da Seleção Brasileira. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 61, 2020. |