Quantos dias são necessarios para desu


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que o buscavam seus irmãos, elle não só respondeu, que os que faziam a vontade do seu Padre eram seus irmãos, senão tambem as suas irmãs: Ipse meus frater, et soror est. Logo quando lhe disseram que o buscava sua Mãe, não só havia de dizer (como disse) que os que faziam a vontade de seu Padre, eram sue Mãe; mas coherentemente havia de acrescentar, que eram sua Mãe e seu Pae. Pois porque não disse do mesmo modo ; Ipse Mater mea, et Pater est ? Porque ser Pae de Christo é uma grandeza tão superior a toda a esphera humana, que a nenhum homem a promette Christo. A primeira e mais alta dignidade entre os homens, é a dos apostolos, como diz S. Paulo: Primum quidem apostolos : (1 Cor. XII -- 28) e a esses apontando-os com o dedo, concede Christo o nome de irmãos seus e mãe sua : Ecce Mater mea, et fratres mei : mas o de Pae seu, nem a Pedro, nem a outro concede tal coisa. João, que é o mais amado, seja filho de minha Mãe: Ecce filius tuus: (Joann. XIX — 26) mas Pae meu, que é dignidade maior, só o Eterno Padre, e José.

Em outro genero foi José tambem Pae: como Pae daquella familia, que em tão pequena casa habitava em Nazareth. Tambem aqui, e sem sair d'aqui, faz o compasso um circulo maior que o mundo. Todo o mundo habitado não igualava a grandeza, que dentro daquellas quatro paredes tão estreitas, estava encerrada. Aquella pequena familia, de que José era cabeça, compunha-se de duas partes tão immensas, que uma era o Filho de Deus, outra a Mãe de Deus : e se esta era a magestade do corpo, qual seria a dignidade da cabeça ? O Padre, o Filho e o Espirito Santo são a Trindade do ceu : Jesus, Maria, José, são, a Trindade da terra. Mas na Trindade do ceu nenhuma pessoa manda, nem obedece; porque não ha, nem pode haver entre ellas sujeição, ou imperio. Na da terra, porém, com assombro das jerarchias, uma manda, e duas obedecem : e sendo Jesus e Maria as que obede. cem, José é o que manda e governa.

Quando Josué mandou ao sol e á lua que parassem : Sol contra Gabaon ne movearis, et luna contra vallem Ajalon : (Jos. X

12) parece que foi aquella a maior delegação da omnipoten


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Tão annexo andou a S. José, e tão altamente confirmado desde o ceu pelo mesmo Deus este terceiro titulo de pae de seu Filho, o qual elle exercitou com summa vigilancia, amor e cuidado, não só em quanto Menino, senão em todas as idades, sustentando-o com o trabalho de suas mãos e suor de seu rosto, na patria, no desterro, e em toda a parte. Mas se a Elias o sustentou Deus por um anjo, a Daniel por um propheta, e a todo o povo de Israel por espaço de quarenta annos com o manná chovido do ceu todos os dias; a seu Filho porque lhe não proveu os alimentos, como diz David, das despensas occultas da sua omnipotencia ; e a meza que lhe poz, e á que o poz, foi a de um pobre official, ganhada com o trabalho, e provida com o jornal de cada dia, e em que tambem o mesmo FiIho tivesse a sua parte ? A razão desta, não menor, mas muito maior providencia que Deus teve com seu Filbo, foi aquella que deu S. Paulo, quando disse : Debuit per omnia fratribus similari. (Hebr. II — 17) Como o Filho de Deus se tinha feito homem, era conveniente que em tudo se fizesse similhante aos outros homens, aos quaes tinha o mesmo Deus condemnado em Adão a comer o seu pão com o suor do seu rosto. Este é o sustento e modo de os homens se sustentarem, o mais decente, o mais natural, o mais innocente, e o mais justo. Os reis sustentam-se dos tributos dos vassallos; mas quantas injustiças vão envoltas nestes tributos? Os grandes sustentam-se dos seus morgados ; mas quantos, como o de Jacob, por astucias e enganos foram roubados a Esaú? Outros se sustentam pelas armas nas guerras, outros pelas letras nos tribunaes, outros pelos governos nas provincias remotas; e sendo tanto o pão que alli se recolhe, e que talvez não chega a se comer, qual é o que não seja amassado com as lagrimas e sangue dos innocentes?

O ditosos, ó bemaventurados (que com isto devia e quero acabar) aquelles de quem cantou David : Labores manuum tuarum quia manducabis; beatus es, el bene tibi erit! (Psal. CXXVII

2) Aquelle es, e aquelle erit; o que cada um é, e o que ha de ser; o que é nesta vida, e o que ha de ser na outra, são os dois cuidados maiores de todo o homem que tem fé, e uso de razão :


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desvelado. Não me estranbeis o equivoco, que em manhà tảo alegre e tão festiva, até os evangelistas o usaram, como logo vereis. Torno a dizer, que é grande madrugador o amor, porque quem tem cuidados não dorme. A philosophia deste porque não é menos que de Platão, a quem chamaram o divino : Inquiela res est amor : parum diligis, si mullum quiesces: 0 amor é um espirito sempre inquieto, e quem aquieta muito, signal é que ama pouco. Vistes algum hora quieta ou ardendo na cera, ou em outra materia menos branda, uma labareda de fogo? Jámais. Sempre está inquieta, sempre sem socegar, sempre tremendo, e não de frio. E porque o amor não sabe aquietar, por isso não pode dormir. Talvez adormecerão os Sentidos, mas o amor sempre vela, porque sempre lhe faz sentinella o coração: Ego dormio, et cor meum vigilat. (Cant. V

-2) Um dos mais insignes amadores do mundo foi Jacob_ E que dizia este famoso amador ? Fugiebal somnus ab ocu lis meis : (Gen, XXXI - 40) Diz que fugia dos seus olhos o somno. A campanha em que o amor e o somno se dão as batalhas, são os olhos, e nos olhos de Jacob estava tão costumado o amor a ser vencedor, e o somno a ser vencido, que não se atrevia o somno a lhe accommetter os olhos, antes sugia delles : Fugiebat somnus ab oculis meis. E como o maior despertador dos sentidos e dos cuidados é o amor, cujas azas, e as do desejo, voam mais que as do tempo; d'aqui rem que para quem espera pela manhã as estrellas são vagarosas, os gallos mudos, as horas eternas, a noite não acaba de acabar, e por isso, como dizia, quem mais ama, mais madruga.

Madrugaram hoje todas as Marias a ungir na sepultura o sagrado corpo : e qual madrugou mais ? Para mim é consequencia certa, que a Magdalena. A Magdalena amava mais que todas, logo a Magdalena madrugou mais que todas. E d'onde tiraremos a prova ? Por ventura, porque todos os evangelistas nomeiam a Magdalena em primeiro logar, e S. João só a ella ? Seja embora conjectura provavel. Por ventura, porque só da Magdalena se diz que chorou : Stabat ad monumentum foris plorans ? (Joan. XX — 11) Melhor razão; porque o madrugar e o chorar é pro


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instante para toda a eternidade. E da maneira que o mesmo sol natural, depois de dar volta ao hemisferio opposto, torna a renascer neste nosso, claro, resplandecente e coroado de raios, enxugando as lagrimas da aurora, restituindo a cor e formosura aos campos, despertando as musicas das aves, doirando os ceus, e alegrando a terra; assim tambem o Senhor veste for. moso dia. Anoitecera no occidente do seu sepulchro amortalhado em nuvens funestas, deixando todo o mundo ás escuras na tristeza de sua paixão ; voltando porém a esta hora vivo e formosissimo, amanheceu outra vez no oriente do seu mesmo occaso, e enchendo o ceu e a terra de nova luz e resplandores de gloria, primeiro que tudo enxugou as lagrimas daquella aurora divina, que, trespassada da espada de Simeão, como morta o acompanhava, e como viva o chorava na sepultura : logo restitniu a cor e a formosura á sua egreja, mudando os luctos, de que estava cuberta, em cores e galas de festa : trocou as lamentações em musicas alegres, e os Heus saudosos e sentidos em alleluias : doirou e esclareceu os ceus, que por isso appareceram os anjos vestidos de neve e oiro: renovou e transfigurou a terra, convertendo as endoenças em paschoas, o silencio mudo em repiques, os rosmaninhos em flores, as trevas e eclipses em luzes, a tristeza, emfim, e melancolia destes dias nos parabens e alegria desta manhà.

Mas porque a manhà e o dia pudéra não ser este, antes parece que tinha obrigação de o não ser; lancemos-lhe bem as contas, e veremos, hora por hora, quanto madrugou o nosso Sol, e quanto o desvelou o seu amor. Fallando Christo Senhor nosso de sua morte, sepultura, e resurreição, diz que assim como Jonas esteve tres dias e tres noites no ventre da balea, assim elle havia de estar tres dias e tres noites morto debaixo da terra : Sicut enim fuit Jonas in ventre cei tribus diebus, el tribus noctibus ; sic erit Filius hominis in corde lerræ tribus diebus, et tribus noctibus, (Matth. XII — 40) Lancemos agora a conta ao tempo em que Christo esteve na sepultura, e busquemos estes tres dias, e estas tres noites. A hora em que o Senhor foi sepultado, foi sexta leira ás cinco da tarde, e para estar tres dias e tres noites debaixo da


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Estrella, nem desdiz dellas a propriedade que se lhe acrescenta, do mar, pois eram moradoras das praias do Tiberiades. E, Gnalmente, o appellido de matutinas, ou estrellas da madrugada, não só declara a diligencia com que nesta hora madrugaram, senão o parentesco que tinham por sangue com a primeira e soberana Maria, que por antonomasia se chama, Stella malutina, E quando as Marias, sendo mulheres, sein temor da noite, nem dos soldados, madrugaram tão vigilantes e diligentes para adoBar e servir a Christo morto; nós que o cremos resuscitado, sem outro impedimento mais que o do somno, negligencia, ingratidão e esquecimento; que podemos responder ao mesmo Senhor, quando a esta mesma hora nos arguir, dizendo a cada um: Ubi eras, cùm me laudarent astra matutina ?

E se o exemplo dos Marias na madrugada desta manhã, basla para nos arguir e envergonhar; quanto mais o da madrugada do Senhor, que ellas já não acharam no sepulchro, o qual não só. madrugou para nos dar o exemplo, senão tambem para ser nosso exemplar nesta vigilancia! Perguntam os theologos, se Christo resuscitando foi exemplar da nossa resurreição? E respondem com S. Thomaz, que sim. Nosso exemplar na vida, nosso exemplar na morte, e tambem na resurreição nosso exemplar. Na vida, porque devemos, viver para elle; na morte, porque devemos morrer por elle; e na resurreição, porque havemos de resuscitar como elle. Este como, estendi eu na minha proposta, não só á immor, talidade da outra vida, senão á imitação desta. Elle chamou a sua morte dormir, e á sua resurreição accordar; e nós devemos, accordar como elle resuscitou. Resuscitou de madrugada : e para que? Para que o desvelo e fineza do seu amorempenhasse a correspondencia, e agradecimento do nosso, a que em honra e memo, ria desta madrugada lhe sacrifiquemos todas. Assim, o fazia com espirito prophetico David, muitos seculos antes desta manhà, já então agradecido a ella, porque é propriedade e virtude do exemplar poder causar e insluir seus esfeitos antes de existir : Prævenerunt oculi mei ad le diluculo, ul medilarer eloquia lua : (Psal. CXVIII — 148) Os meus olhos, dizia este bom rei a Deus, sempre se preveniam e antecipavam muito de madrugada a meditar


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em vós, e no que me tendes revelado. Faz menção dos olhos, porque nelles consiste o sacrificio de vèncer e resistir ao somno naquella hora. E a razão de escolher David entre todas as horas, não só do dia, senão da noite, mais esta da madrugada que outra, commenta Hugo cardeal, que era porque esta da madrugada foi a hora em que Christo resuscitou : Prævenerunt oculi mei ad te diluculo, qua hora Christus resurrexit. Viu o grande propheta, posto que de tão longe, as amorosas impaciencias (digamol-o assim) com que a ausencia é saudades dos liomens, murto o Senhor, è insensivel, o não deixavam aquietar na sepultura : viu o artificio admiravelmente engenhoso, com que para concordar a vérdade de sua palavra com as ancias do seu amor, de vinte e duas horas de trevas, fez tres noites, e de quatorze de luz, tres dias : e como era aquelle generoso coração, que sempre desejava pagar de algum modo a Deus o quo detto receita : mino, pro omnibus quæ retribuit mihi ; (Ibid. CXV - 12) para corresponder, quanto lhe era possivel, aos extremos e fineżas desta madrugada, dedicou a meditação, á honra, e ao agradecimento della todas as suas. Por isso repetia lantas vezes o mesmo offerecimento. Uma vez: In malulinis meditabor in te : (Ibid. LXII

7) outra vez : Mane oratio mea præveniet le : (Ibid. LXXXVII

14) outra : Mane aslabo tibi : (Ibid. V-5) outra : Mane exaudies vocem meam : (Ibid.) outra : Ad annuntiandum mané misericordiam tuam : (Ibid. XCI3) outra, finalmente, e nella todas com a repetição do sacrificio dos seus olhos : Anticipaverunt vigilias oculi mei. (Ibid, LXXVI - 5)

Mas se as finezas do amor de Christo, assim na vida como na morte, foram tantas e tão extremadas ou extremosas; com razão me perguntareis, que fundamento e motivo teve David (e devemos nós ter) para antepôr a desta madrugada da resurreição a todas as outras ? Respondo, que obrou o juiso de David nesta eleição como tão sabio e tão santo. Porque comparada esta fineza do amor de Christo na sua resurreição, com todas as finezas da sua vida e da sua morte, só esta propriissimamente foi, e se deve chamor fineza. Christo Redemptor nosso, em quanto fez e padeceu na vida e na morte, mereceu para si e para nós : pora nós


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outro, ou o sol a allumiar o homem, ou o homem a louvar a Deus ? In gratiarum actione solem prævenire, magnum certaminis decus.

O sol tem duas balizas, oriente e o occaso; e não só na primeira quando nasce, senão tambem na segunda quando se põe, quer S. Paulo, que, como nas duas columnas de Hercules, ponha o homem um non plus ultra, antecipando-se sempre, e adianlando-se ao sol, Sol non occidat super iracundiam veslram : (Ephes. IV – 26) Se acaso tivestes occasião de ira contra vosso proximo, adverti, diz o apostolo, que não se ponha o sol, sem que primeiro vos reconcilieis, e ponhaes em graça com elle. De sorte que o nosso amor de Deus e do proximo ha de competir de tal modo em se adiantar sempre ao sol, que nem o sol amanheça no oriente, antes de nós darmos graças a Deus, nem o mesmo sol se ponha no occaso, antes de nós nos pormos em graça com o proximo. Na historia deste mesmo dia temos duas figuras, que com grande propriedade nos ́representam dobrada antecipação desta competencia. Quando a Magdalena não achou a Christo no sepulchro, veio dar conta a S. Pedro, e a S. João; e diz o texto sagrado, que ambos correram logo a certificar-se do que ouviam ; porém S. João correu mais que S. Pedro, e chegou primeiro : Currebant autem duo simul, et ille alius discipulus, quem amabat Jesus, præcucurrit citius Petro, et venil primus ad monumentum. (Joon. XX — 21) S. Gregorio Papa diz, que S. João neste caso fazia a figura da syoagoga, e S. Pedro a da egreja. Mas se nós chegarmos mais ao texto, na palavra Discipulus quem amabat Jesus, porque não diremos que S. João fazia a figura do amor, e na competencia com que ambos corriam, Cu, rebant duo simul, que S. Pedro fazia a do sol ? É S. Pedro figura do sol, porque tem as chaves do ceu, Tibi dabo clares regni cælorum : (Mat. XVI - 19) e assim como S. Pedro tem os poderes de abrir e fechar o ceu; assim o sol abre o mesmo ceu, quando apparece no oriente, e o fecha, quando desapparece no occaso. E s. João é figura do amor, assim de Deus, como do proximo; porque de Christo foi o mais amado, Discipulus quem amabal ; e dos proximos o maior amante : Filioli,


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quelle supremo Senhor, que lhes deu o ger, antecipando ao sol para lhe offerecer as premicias do dia; elle sem memoria, sem intendimento, sem vontade, e sem sentidos naquella voluntaria sepultura do somno e do descuido, só confesse dormindo e roncando, que é o mais ingrato?

Desperta, o homem indigno, aos brados de todas as creaturas; abre os olhos, e vê a que madrugas, e a que não madrugas. Deixadas as madrugadas mecanicas, como as do official vigilante, que madruga para bater e malhar o ferro, obrigando tambem a madrugar o ar e o fogo : os que professam vida e acções mais nobres, para que madrugam ? Madruga o mathematico, para observar as estrellas, antes que lh'as esconda o sol : madruga o soldado, para vigiar o seu quarto, ou na muralba, ou na campanha, ou no bordo da nau: madruga o estudante sobre o livro, que tantas madrugadas custou ao seu Auctor, quantas são as lettras, muitas vezes riscadas, de que está composto : madruga o requerente, madruga o caminhante, madruga cercado de galgos o caçador, e sobre todos com mais estrondosas madrugadas os principes, devendo madrugar, não para montear desertos, e matar seras; mas, como fazia el-rei David, para alimpar os povoados de vicios, e matar os que os commettem : In matutino interficiebam omnes peccatores terræ. (Psal. C-8) E que appetite menos digno de tão alto e soberano nome, que despertarem ao som de trombetas, e muitas horas antes do sol, para correr uma lebre, ou dar uma lançada no javali amalhado, aquelles que sem este despertador depois da quarta parte do dia, tendo tanto que ver e prover, ainda não teem abertos os olhos? O que differentemente haviam de madrugar para agradecer a Deus este mesmo descanço, se advertiram e disseram com o pastor agradecido: Deus nobis hæc otia fecit !

E se estos madrugadas por outra parte licitas e honestas, o descuido de se empregarem na adoração do Senhor, Qui fabricatus est auroram, et solem, (Ibid. LXXIII - 16) bastára para as fazer ociosas, e menos christàs; que censura merecem aquellas, que em logar de se dedicarem e consagrarem ao verdadeiro Deus, se sacrificam aos idolos ? Fundido por Arão o idolo de

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oiro, e signalado para a celebridade e dedicação da insame imagem o dia seguinte, Cras solemnitas Domini est, (Exod. XXXII

5 e 6) o que fizeram todos, foi levantarem-se muito de manhà a offerecer-lhe sacrificios : Surgentesque mane oblulerunt holocausta ; e aos sacrificios se seguiram banquetes, brindes, e jogos: Sedit populus manducare, et bibere, et surrexeruni ludere. Foi boa madrugada esta ? E quantas são debaixo do falso nome de chrislandade as que se parecem com ella ? Os nossos idolos são as nossas paixões, e os nossos appetites : e raro é o christão de somno e juiso tão repousado que o deixe dormir, e não desvele a sua idolatria. Quanto corta pelo somno o adultero ? Quanto corta pelo somno o vingativo ? Quanto corta pelo somno o ladrão? Quanto corta pelo somno o taful ? Quanto corta pelo somno o invejoso, o ambicioso, e, mais vigilante que todos, o avarento e cobiçoso ? Os judeus adoraram o bezerro de oiro, os christãos adoram o oiro, ainda que não peze tanto como o bezerro. Do oiro tomou o nome a aurora, e esta é a despertadora que os não deixa dormir, e faz vigiar, machinando subtiJezas, traças, enganos, traições, e sacrificando ao torpe, vergonhoso, e brutal idolo do interesse, o descanço, a razão, a vida, a honra, a consciencia, a alma. Quão justamente arguiu Christo o somno e negligencia dos que não puderam vigiar uma hora com elle, á vista do contrario exemplo e vigilancia infame de Judas! Vel Judam non videtis quomodo non dormit, sed festinat tradere me judæis ? Basta que a cobiça de Judas para me vender e me entregar não dorme, e o meu amor e a vossa obrigação não pode acabar com vosco a que corteis pelo somno, e vigieis uma hora commigo?

Este é o meu ponto, e esta a hora em que estamos, na qual lanto madrugou Christo por amor de nós. E para maior confusão dos que em vez de madrugar nella para o louvar, madrugam para o offender; tornemos a historia do idolo, e ponbamo-nos dois passos atraz. A bora em que Deus afogou is exercitos de Pharaó no mor Vermelho, foi muito de madrugada : Jamque advenerat vigilia matulina, et ecce respiciens Dominus super castra ægyptiorum per columnam ignis, et nubis interse


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filhas de Jerusalem, e vede o rei Salomão coroado com o diadema, de

que o coroou sua mãe. Quem coroou a Salomão, não ha dur vida, como consta do texto sagrado, que foi scu pae David, o qual privou do coroa a Adonias, filho seu mais velho, e a deu a Salomão. Pois se David foi o que lhe deu a coroa, porque diz o mesmo Salomão (cujas são estas palavras no capitulo terceiro dos Canticos) que o coroou não seu pae, senão sua mãe: In diademate, quo coronavit illum Maler sua? Porque ainda que David foi o que coroou a Salomão, e lhe deu a investidura do reino; as diligencias, os empenhos, e a intercessão de Bersabé, sua mãe, como tão valida e amada do mesmo David, foi a que lhe impetrou e conseguiu a coroa. E julgou o juiso de Salomão no tal caso, que mais devia a coroa á intercessão de sua mãe, que á liberalidade de seu pae.

Toda esta demonstração não sere a outrem, senão a mim, pelo total silencio já consessado, com que no sermão de acção de graças pelo felicissimo nascimento do novo e quarto infante, nem uma só palavra fallei em S. Francisco Xavier. Em S. Francisco Xavier, torno a dizer, aquelle grande oraculo e patrono singular da rainha nossa senhora, a.cuja poderosissima intercessão attribue sua magestade todas as suas e nossas felicidades, e muito particularmente na successão, d'antes tão suspirada, e agora tão multiplicada de principes naturaes. Pois se neste (que não quero chamar ultimo, senão quarto principe) com prodigiosa fecundidade de todos successivamente vardes, devemos novas e maiores graças ; como no sermão proprio dellas, e discorrendo por lodas, em nenhuma achei logar em que pôr a Xavier ? Não foi descuido, ou desattenção minba, senão grandeza sua. Uma personagem lão grande não cabe em partes. Por isso me resolvi a fazer novo sermão, que fosse todo seu : e é este.

Mas segundo a sentença que propuz de Salomão, della se segue uma terrivel consequencia. Salomão no seu caso julgou que mais devia a coroa á intercessão de sua mãe, que lh'a conseguiu,

, que á liberalidade de seu pae, que lh'a deu: logo diremos nós no nosso caso, que as graças da presente mercê alcançada de Deus por S. Francisco Xavier, mais se devem ao mesmo Xavier,


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que a Deus ? A resposta desta duvida demanda tanto fundo, que me não atrevo a embarcar nella, sem pedir primeiro a graça. Ave Maria.

II. Ha beneficios de Deus, em que todas as graças se devem a Deus, e nada aos homens. E ha beneficios, tambem divinos, em que parece que as graças mais se devem aos homens, que a Deus. Vamos por partes.

Os beneficios do primeiro genero são aquelles que Deus faz por amor de si mesmo, como refere por bocca de Isaias : Propler me, propter me faciam. (Isai. XLVIII — 11) E então faz Deus estes beneficios por amor de si mesmo, diz S. Dionysio Areopagita, quando elle é o auctor, e elle o motivo, sem haver outrem fóra de si, que o mova, ou provoque a isso : Quando ipsi sui ipsius, el sibi ipsi provocatur, et motor est. Tal foi o beneficio da creação do mundo, antes do qual não havia homem, nem anjo, que lhe pudesse pedir, ou mover a que o creasse. Assim que, todas as graças devidas a Deus por tão grande e universal beneficio, são pura e meramente suas, sem baver, nem poder haver quem tivesse parte nellas.

Os beneficios do segundo genero são aquelles que Deus faz por intercessão e rogos de outrem, principalmente quando o mesmo Deus está deliberado, e empenhada sua providencia ou justiça a fazer e executar o contrario. Pelo peccado da adoração do bezerro no deserto, provocado Deus da rebellião e idolatria daquelle ingrato povo, tão poucos dias depois de o ter libertado do captiveiro do Egypto com tantos prodigios, deliberou a sua justiça, a sua ira, e o seu suror, como diz o texto, de o extinguir totalmente e sepultar no mesmo deserto. Em fim lhe perdoou Deus pelas orações e instancias de Moysés: e dependeu tanto destas orações, e da força dellas a conservação do povo, diz David, que tendo Deus já aberta a brecha nas muralhas para assoJação de todos, se a fortissima resistencia de Moysés se não oppuzera na mesma brecha a defensa, sem duvida seria todo assolado e destruido : Et dixit, ul disperderet eos, si non Moyses eleclus ejus stetisset in confractione in conspectu ejus. (Psal. CV


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tos no terceiro filho, ou degenerarem depois delles as gerações, ou ser muito difficultosa a passagem para chegar ao quarto. Naquella area, em que Deus, affogado no diluvio o mundo, guardou para a conservação e continuação delle a propagação do genero humano, não houve mais que tres filhos, Sem, Cham, e Japhet. Na fecundidade de Anna, com quem Deus se mostrou tão liberal, posto que milagrosa ; que diz o texto sagrado ? Visitavit Dominus Annam, el concepil tres filios, el duas filias :(1. Reg. II

21) Visilou Deus o Anna, e concebeu e pariu tres filhos e duas filhas. De maneira que os filhos varões foram somente tres ; e o sexo maseulino, que ella tinha pedido, Si dederis servæ luæ sexum virilem, (Ibid. I - 11) logo parou no terceiro parto e degenerou ao feminino. E posto que a providencia divina vigia sobre os reinos e reis com maior cuidado, Sunt maxima curæ regna Deo, não deixa de se observar nelles esta mesma regra. De Judas, aquelle primeiro rei em que se continuou a serie dos que precederam a David, e depois delle até Christo, diz o texto sagrado, que lhe nasceram de sua mulher tres filhos : e nota que nascido o terceiro, parou nella a fecundidade, e não passou ao quarto : Tertitium quoque peperit, quo nato, parere ulira cessavit. (Gen. XXXVIII — 5) Até nos mesmos elementos, sendo elles quatro, deixou Deus como estabelecida a mesma lei. O primeiro, que é a terra, fecundo em todos os generos das vidas, tambem tres : vegetativa, sensitiva e racional: o segundo, que é a agua, fecundo nos peixes : o terceiro, que é o ar, fecundo nas aves ; mas o quarto, que é o fogo, totalmente esteril e infecundo.

Só com o ceu parece que dispensou o Creador, apparecendo no quarto dia da creação, e no ceu tambem quarto, o sol fonte da luz, de quem a recebem os outros astros para o governo universal do mundo e dos tempos. Mas tão fóra esteve de ser isto dispensação daquella lei, ou excepção daquella regra, que antes foi a maior confirmação della. Porque? Porque precedendo no terceiro dia a major de todas as fecundidades, que é a das plantas, tudo o que no seguinte appareceu no ceu, não foi produzido por elle, ou parto seu, senão uns fragmentos, ou pedaços da luz creada no primeiro dia, os quaes foram postos no ceu não como


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Mas não quero prognosticar mais grandezas, que as que cabem no meu thema, posto que tão pequeno, Quartus frater. Atlrever-me-hei a dizer deste quarto irmão, o que disse Nabucodonosor, quando, além dos tres que não quizeram adorar a sua estatua, viu passcondo na fornalba como em um jardim, e entre as labaredos como entre flores, outro quarto que lhe pareceu similhante ao Filho de Deus : Et species quarti similis Filio Dei? (Daniel III – 92) Mas Nabucodonosor era gentio, e parecerá especie de gentilidade dizer tanto. O que só sarei é, que imitando os santos padres, os quaes fundados naquelle grande texto: Omnia in mensura, et numero, el pondere disposuisti, (Sap. XI — 21) dos numeros em que a sabedoria e providencia divina dispoz todas as coisas, colligem as intelligencias e mysterios

que nellas se encerram. Tomado pois o peso e a medida ao logar, e ao numero em que a mesma providencia collocou o novo infante na ordem successiva de seus irmãos, Quartus fraler ; vejamos do mesmo logar, e do mesmo numero o que se póde e se deve conjecturar com fundamento.

O que mais estimam os principes em si, e o que mais estima e celebra nelles o mundo, para cujo governo nasceram, é serem sabios na paz, e valerosos na guerra. E destas duas virtudes lão excellentes e verdadeiramente reaes, nos offerece a historia sagrada dois famosos exemplos no mesmo nascimento de filhos, e no mesmo numero de quartos. Salomão foi rei pacifico, e o mais sabio de todos os homens: e o mesmo Salomão, filho de David, e quarto filho. Judas, tronco du tribu real, foi elle, e o mesmo tribu, o mais valeroso e bellicoso de todos; e o mesmo Judas, filho de Rubem, e filho quarto. Mas porque estas eminencias, posto que tão altas (como as do monte Apenino), se não levantam da terra, de nenhum modo se podem igualar ao que eu conjecturo e espero do nosso quarto principe, e do muito mais que S. Francisco Xavier nos promelle nelle. Já ndo me fundo em exemplos das sagradas letras, senão em lei expressa do mesmo Deus.


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cumstancias de tempo a tempo, e de pessoa a pessoa, seja um prodigioso argumento, de que este menino sendo herdeiro do espirito de Xavier, como do seu habito, será em maior idade o Eliseu, que dê glorioso fim e complemento aquella grande empreza, intentada e não conseguida pelo seu amado Elias : In Eliseu complelus est spiritus ejus ?

Ainda não está posta a coroa a esta famosa figura, que quasi se pode chamar prophetica. Affirma Santo Epiphanio, que no dia em que nasceu Eliseu, um dos bezerros de oiro que fabricou Jeroboão, mugiu lamentavelmente, e foi o mugido tão forte, como se fosse um trovão, que se ouviu em toda Jerusalem. Para intelligencia deste prodigio, devem suppor os que o não sabem, que Jeroboão, criado de Roboão, rei dos doze tribus, se levantou com a maior parte delles, e com o titulo tambem de rei sez a sua corte em Sichem: e para que os novos subditos vindo a Jerusalem, onde estava o templo do verdadeiro Deus, se não unissem outra vez a seu legitimo senhor, sundiu dois bezerros de oiro como o do deserto, os quaes por seu mandado todos adoravam. E ùm destes bezerros é o que mugiu no nascimento de Eliseu, como adivinhando, e doendo-se lastimosamente de que aquelle menino, então nascido, havia de ser o destruidor de toda a idolatria : Qua voce significabatur illa die natum esse infantem, qui vitulos aureos, cæleraque idola everleret. Eu lhe chamei menino, e a declaração do bruto oraculo (que é do santo) lhe deu mais propriamente o nome de infante : Natum infantem. Mas se os idolos de oiro, e os bezerros eram dois, porque mugiu um só ? Porque ao outro já a espada de Elias lhe tinha cortado a cabeça, e as vozes do seu zelo o tinham emmudecido: e o segundo, que elle ainda não pudéra vencer, ficava para triumpho de Eliseu. Póde haver caso mais proprio da nossa conjectura ? Chamemos a Xavier Elias, e ao infante nascido (a quem ainda não sabemos o nome) demos-lhe o de Eliseu, e está declarado o mysterio de ser um só bezerro o que mugiu. O outro, ou a outra ometade da idolatria da Asia, já Xavier a tinha derribado, emmudecido, e convertido á confissão da verdadeira fé. A da China, que é o outro bezerro já meio rendido, como é de tantos milhões de gente,


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de justiça, Christo, se vestiu da nuvem branca de nossa humanidade, tanto que tomou carne o Filho de Deus nas entranhas purissimas da Virgem Maria, como elle era a intelligencia soberana, que movia aquelle ceu animado, no mesmo ponto, diz o evangelista S. Lucas, que se partiu a Senhora para as montanhas de Judea : Exurgens Maria abiit in montana ; e acrescenta, cum festinatione, com passos mui apressados, porque nem a delicadeza da Donzella se lhe fizeram asperas as montanhas, nem á grandeza da Mãe de Deus lhe pareceram desauctorisadas as pressas. Que errado

que anda o mundo, e mais o nosso, em julgar e introduzir

que os passos vagarosos sejam os mais auctorisados ! Se por vagares se perde o mundo todo, como pode consistir a auctoridade delle nos mesmos meios de sua perdição ? Na fabrica deste universo que vemos, creou Deus o sol e a lua ao quarto dia, e não ao primeiro, diz S. Severiano, porque como ainda então não havia creaturas que influir, nem hemisferio que allumiar, estiveram-se os planetas ociosos e parados, em grave descredito de seus resplandores ; que a quem Deus fez para sol, não o fez para estar quieto. Foram formadas aquellas duas tochas do ceu, para com alternado imperio governarem o dia e a noite: Luminare majus ut præesset diei, luminare minus, ut præesset nocti. E como nasceram para todos, ondam sem descançar em perpetua roda ; que é gloriosa pensão do bem universal, correr e nunca estar parado. Por isso Christo hoje, assim como o sol material, tanto que recebeu a investidura dos raios, no mesmo instante partiu de carreira, e começou a fazer velocissimamente seu curso; assim o divino Sol de justiça tanto que se vestiu de nossa humanidade nas entranhas da Virgem Mãe, no mesmo ponto arrebatou aquella celestial esphera, e a levou ás montanhas com tanta pressa, com tão arrebatado curso, cum festinatione, que para o explicar Malachias na terra, houve de fingir um monstro do ceu: Orielur vobis Sol justitiæ et sanitas in pennis ejus. Sol com azas ! Quem negará que é uma resplandecente monstruosidade? E acrescenta com muita propriedade o propheta, que levará o Sol nas azas a saude, porque a dar saude, e não a outro fim parte hoje o Redemptor com tanta pressa.


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conservar o nosso, ou como o poderemos restaurar depois de perdido, senão fazendo justiça ? O contrario seria resistir a Deus e porfiar contra a mesma fé.

Sem justiça se começou esta guerra, sem justiça se continuou, e por falta de justiça chegou ao miseravel estado em que a vemos. Houve roubos, houve homicidios, houve desobediencias, houve outros delictos, muitos e enormes, que não sei se chegaram a tocar na religião; mas nunca houve castigo, nunca houve um rigor que fizesse exemplo. Muitos bandos se lançaram muito justos, muitas ordens se deram muito acertadas, mas, como disse Aristoteles, as leis não são boas, porque bem se mandam, senão porque bem se guardam. Que importa que fossem justos os bandos se não se guardavam mais, que se se mandára o que se probibia ? Que importa que fossem acertadas as ordens, se nunca soi castigado quem as quebrou, e pode ser que nem reprehendido ? Baste por todo encarecimento nesta materia, que em onze annos de guerra continua e infeliz, onde houve tantas rotas, tantas retiradas, tantas praças perdidas, nunca vimos um capitão, nem ainda um soldado, que com a vida o pagasse.

Ó aprendamos, aprendamos se quer de nossos inimigos, que nesta ultima fortuna tão grande que tiveram, quando com um poder tão desigual nos derrotaram a maior armada que passou a linha a ; a dois capitães sabemos, que degollaram no Recise, e a outros inhabilitaram com supplicios menos honrosos, só porque andaram remissos em acudir a sua obrigação. Pois se o inimigo quando ganha dá mortes de barato, se quando consegue o intento, se quando se vê victorioso sabe cortar cabeças ; nós quc sempre perdemos, e nem sempre por falta de poder, porque não atalharemos a novas perdas com castigo exemplar de quem for a causa ? Porque ha de ser consequencia na guerra do Brazil, se me renderem passarei a Hespanha e despachar-me-hei ? Ha resolução mais indigna de hespanhoes ? Ha razão mais indigna de catholicos ?

Toda esta falta de castigo, toda esta remissão de culpas nasceu de uma razão de estado, que cá se praticou quasi sempre : que se não hão de matar os homens em tempo que os have


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não houvera Hollanda, nem França, nem Turquia ; todo o mundo fòra nosso.

Não pretendo dizer com isto que não merecem muito os soldados desta guerra, porque antes tenho para mim, como é opinião de todos, que não ha soldados no mundo, nem que mais valentes sejam, nem que mois sirvam, nem que mais trabalhem, nem que mais mereçam. Já outra vez tive este pensamento, e agora me torno a confirmar mais nelle, que para se despacharem os

soldados do Brazil, principalmente os que andam em campanha, · não teem necessidade de mais certidão, que tomar o capitulo onze

da segunda Epistola de S. Paulo aos Corinthios, firmada e jurada por seus generaes, que bem o poderão fazer sem nenhum escrupulo. Faz alli o apostolo uma ladainha mui comprida de seus serviços e trabalhos, e diz assim: In laboribus plurimis, in carceribus abundantius, in plagis supra modum, in mortibus frequenler, etc. Demol-o por lido, e vamos applicando. In laboribus plurimis ; que soldados padecem no mundo maiores trabalhos, que os do Brazil ? In carceribus abundanlius ; tambem muitas vezes são prisioneiros, e nas prisdes nenhuns mais cruelmente tractados que elles. In plagis supra modum ; quantas sejam as feridas que recebem, e quão contínuas, bem o dizem esses hospitaes, bem o dizem essas campanhas, e tambem os peitos vivos o podem dizer, que apenas se achará algum, que não ande feito um crivo. In mortibus frequenler ; frequentemente mortos, porque não ha guerra no mundo, onde se morra tão frequentemente, como na do Brazil, de dia e de noite, no inverno e no verão, na trincheira e na campanha, nas nossas terras e nas do inimigo; e agora nesta jornada ultima e milagros), onde se não deu quartel, o mesmo foi ser ferido, que morto, deixando os amigos aos amigos, e os irmãos aos irmãos por mais não poderem, ficando os miseraveis feridos nesses matos, nessas estradas, sem cura, sem remedio, sem companhia, para serem mortos a sangue frio, e cruelmente despedaçados dos allanges bollandezes, pelo rei, pela patria, pela honra, pela religião, pela fé. O valerosos soldados, que


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nuvem ingrata, nuvem injusta, se na Bahia tomaste essa agua, se na Bahia te encheste, porque não choves tambem na Bahia ? Se a tiraste de nós, porque a não despendes comnosco ? Se a roubaste a nossos mares, porque a não restitues a nossos campos ? Taes como isto são muitas vezes os ministros que veem ao Brazil, e é fortuna geral das partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens, passam as calmas da linha, onde diz que tambem reservem as consciencias, e em chegando, verbi gratia, a esta Bahia, não fazem mais que chupar, acquirir, ajuntar, encher-se (por meios occultos, mas sabidos), e ao cabo de tres ou quatro annos, em vez de fertilisarem a nossa terra com a agua que era nossa, abrem as azas ao vento, e vão chover a Lisboa, esperdiçar a Madrid. Por isso nada lhe luz ao Brazil, por mais que dê, nada The monta, e nada lhe aproveita, por mais que faça, por mais que se dessaça. E o '

mal mais para sentir de todos é, que a agua que por lá chovem e esperdiçam as nuvens, não é tirada da abundancia do mar, como n'outro tempo, senão das lagrimas do miseravel, e dos suores do pobre, que não sei como atura já tanto a constancia e fidelidade destés vassallos. Tenho reparado muito, que em nenhum tormento da paixão desceu anjo do ceu a confortar à Christo senão quando suou no Horto. Pois porque mais nos suores do Horto, que nos açoites da columna, nos tormentos da cruz, ou n'outro daquelles trances rigorosissimos ? Os porquês de Deus são só a elle manifestos. Mas o que elle nos revelou daquelle caso, é qué suou, e que suou 'pela saude, pela vida, e pela glorificação dos homens. E que bajam de viver outros á custa do meu suor! Que haja de suar eu para que outros vivam ! Qae haja de suar eu para que outros triumphem ! É um ponto tão rigoroso, considerado humanamente, como Christo então o considerava, é um ponto tão rigoroso, é um trance tão apertado, que até o coração de um Homem-Deus parece que ha mister que venha um anjo do ceu a o confortar, que não ha forças na natureza, nem cabedal para tanto. Muitos 'trances destes tens padecido, desgråçado Brazil, muitos te desfizeram para se fazerem, muitos edificam palacios com os pedaços de tuas ruinas, muitos comem o 'seu pão, ou o pão não seu, com o suor do teu rosto : elles ri


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dois discipulos de sua escola, em que dizia assim': Tu'es qui renlurus es, an alium expectamus ? Sois vós, Senhor, o que haveis de vir restaurar-nos, ou havemos de esperar ainda por outro ? Não poderam perguntar mais a proposito, se nós dictaramos a pergunta. Nenhuma coisa lhes respondeu Christo de palavra : manda buscar pela terra os cegos, os surdos, os mancos, os leprosos, em fim, quantos enfermos se puderam achar, e depois de os 'curar a todos, virou-se então para os embaixadores, e disse: Renuntiate Joanni quæ audistis, el vidistis. Ide, dizei a João o que ouvistes e vistes. Pois, Senhor, com licença vossa, esta resposta parece que não diz com a pergunta. Perguntam-vos se sois o Messius esperado, perguntam-vos se sois vós o que haveis de restaurar o mundo, e por resposta pondes-vos a curar enfermos ? Sim, com muita razão, diz S. Cyrillo: Ut congrua ratione summenles fidem ipsius, ad eum revertantur, qui misit eos. Poz-se Christo a curar enfermos diante dos embaixadores do Baptista, para que

desta acção que lhe viam fazer, cressem e inserissem por boa razão, que elle era o Restaurador do mundo, por quem perguntavam. Este Senhor tracta de curar enfermos : Cæci vident, claudi ambulant, leprosi mundantur ? Logo elle é o que ha de restaurar o mundo: Tu es qui venturus es ; porque não ha conjectura mais verdadeira, nem consequencia mais formal de ser Restaurador, que ter grande cuidado dos enfermos, e tractar destas obras de misericordia.

E senão diga-nos o nosso evangelho, qual foi a primeira acção que fez no mundo o Redemptor e Restaurador delle ? A primeira acção que Christo fez em pondo o pé em terra, foi partir-se para as montanbas de Judéa, a curar, como dissemos, um menino enfermo. Não é phrase minha, senão do cardeal Toledo, que fecha e confirma todo este discurso : Miræ Christi, et Matris visitatio allulit Joanni peccati medicinam. Esta visita de Christo, e sua Mãe Santissima, foi como visita de Medico soberano, que curou a enfermidade de S. João, e lhe trouxe a medicina do peccado. Tão proprio é de quem ha de restaurar mundos, consagrar a primeira acção á cura e ao remedio dos enfermos. Mas como não são menos de Deus os fins que os prin


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prega todo, e emprega tudo em acrescentar filhos e mais filhos á egreja, como podia Deus faltar em lhe dar filhos?

Da sé do rei, fide purum, passemos á piedade da rainha, pie* tate dilectum. É admiravel prerogativa neste singular composto de corpo e alma tanta piedade e santidade, junta com tanta secundidade. Sára foi santa, mas esteril Sára: Isabel foi santa, mas esteril Isabel : Anna da lei antiga, sapta, mas esteril Anna : e a Anna precursora da lei da graça, mais que todas santa, mas igualmente esteril. Em todos estes exemplos, porém, como a esterilidade estava junta com a santidade, não podia a mesma santidade deixar de fazer a esterilidade fecunda. Assim foi em todas. Sára primeiro esteril, mas, como era santa, depois tão fecunda, que deu a Abrahão Isac, e nelle a maior descendencia : Isabel primeiro esteril, mas depois, como era santa, tão fecunda, que deu a Zacharias o maior dos nascidos : Anna, a da lei antiga, esteril, mas como santa, tão fecunda que deu a Elcana Samuel, e tantos outros irmãos : Anna, finalmente, nas vesporas da lei da graça, santissima, e igualmente esteril, mas quanto mais santa que todas, assim excedeu tanto a todas em fecundidade, que deu a Deus não menos que aquella Mãe, de quem o mesmo Deus se fez filho. Sendo pois o rei tão singular no zelo da fé, e a rainha na devação e piedade, já Deus em premio e paga destes reaes e divinos obsequios, the devia e tinha promettido, não um só filho, senão a successão de muitos: Ecce hæreditas Domini, filii; merces, fructus ventris.

A esta proposta do thema, mais larga do que eu quizera, segue-se fallar comnosco, e ponderar o que nestas mercês se encerra, para darmos a Deus as devidas graças. E porque nós não podemos dar graças sem Deus nos dar a sua, peçamol-a por intercessão daquella Senhora, que é mãe do mesmo Deus, e da mesma graça. Ave Maria,

II. Ecce hæreditas Domini, filii ; merces, fructus ventris. Psalm. 126.

Platão, e antes delle Homero, ou consideraram, ou fingiram, que no mundo racional havia, ou devia haver tres graças. Elles


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palacio, que chamam o Forte. Tendo Hespanha tanta parte dos seus dominios no mar Mediterraneo, tanta no mar Septentrional, e tantas e tão vastas em todo o mar Oceano, havia de ter a côrte onde as ondas Ibe batessem nos muros : e dependendo todo o manejo da monarchia da navegação de frotas e armadas, e dos ventos que se mudam por instantes ; que politica póde haver mais albeia da razão, que tel-a cem legoas pela terra dentro, onde os navios só se vêem pintados, e o mar só na agua, pouca e doce, que o inverno empresta ao Manzanares ? Mas assim haviam de preceder todas estas violencias da razão, e da natureza, para que mais maravilhosamente se lograssem os fructos da graça. Vejamol-o, não com outros nomes, senão os proprios de ambas.

Communicou Deus ao propheta Samuel, que entre os filhos de Jessé tinha escolhido um rei, que muilo o havia de servir; e não lhe revelando qual era, mandou que o fosse ungir. Para esta unção encheu o propheta uma redoma do oleo sagrado, conforme a cerimonia e rito da lei antiga, e na casa de Jessé fez vir diante de si um por um os filhos, segundo a ordem das suas idades. Veio em primeiro logar Eliab, mancebo bizarro : inclinou-lhe o propheta sobre a cabeça a redoma, mas o oleo não correu. Aqui havemos de ouvir agora o commento de S. Basilio de Seleucia, que é singular : Cornu invergens propheta rejectaneum, ut ungeret cogebat, sed oleum fluere recusabat, ne cum errante prophela faceret, et fluxa natura sursum detinebatur graliæ legibus obsequula. Quer dizer, que inclinando Samuel a redoma, o oleo sendo liquido e pezado, não correu para baixo, contra o movimento da natureza, porque a graça o detinha, e suspendia para cima.. E a causa desta suspensão cra por não ser Eliab o rei escolhido por Deus, nem ser decente que o oleo sagrado concorresse com o erro do propheta, que não sabia, nem acertava qual fosse. Excluido com este milagre o primogenito, veio o segundo filho Abinadab, e tambem o oleo não quiz correr sobre a cabeça deste: veio o terceiro chamado Samma, e nelle e nos demais continuou o mesmo prodigio. Chegou, finalmente David, que era o ultimo filho, e á primeira in

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tugal, já restaurado, o defendiam gloriosamente com maior e mais certo desengano das armas offensivas.

Á vista deste exemplo de irmandade me arrependo muito do que pouco ha disse, que Portugal se sustenta hoje sobre tres ancoras, sendo certo que são quatro, e a mais segura no ceu, enchendo este perfeito numero o priocipe primogenito, que o mesmo ceu nos deu e arrebatou tão brevemente. Grande prognostico de perpetuidade não só para a esperança, senão para a fé! Fun-. dou Deus neste mundo duas republicas: a primeira em uma só nação, que foi a synagoga ; a segunda em todas as nações, que é a egreja ; e o fundamento sobre que ossentou ambas, foi a irmandade. A synagoga sobre Moysés e Arão, irmãos; a egreja sobre Pedro e André, irmãos; e sobre João e Jacob, tambem irmãos. E porque razão a synagoga em uma irmandade, e a egreja em duas ? A synagoga em dois irmãos, e a egreja em quatro ? Porque a synagoga havia de durar muito, a egreja sempre, e a perpetuidade deste sempre nos promette a firmeza de uma base sobre o numero quadrado, o qual se aperfeiçoou, e encheu no nascimento felicissimo do ultimo infante, que celebramos.

Já eu aqui me despedira da segunda graça; mas sei que anda na bocca das gentes, e tambem na estampa dos livros, que quando reinar um rei de certo nome, lhe ha de succeder na coroa um infante de Portugal. Portugal é tão pouco ambicioso, e está tão cheio de si, que se contenta com o seu. Fiquem estes contos para as fadas, que os cantem ao nosso infante quando lhe embalarem o berço e animarem o somno. A verdade maravilhosa é (para que não sejamos ingratos a Deus), que ha poucos annos tinhamos a successão por um fio, por falta de um principe, e agora os podemos repartir, e dar reis a muitos reinos. Eu, porém, o que só quizera entretanto, é que os nossos deram nelles ás duas magestades de suas augustissimas irmãs, não só afilhados, mas filhos. Na morte dos innocentes de Belem allega o evangelista S. Mattheus o texto do propheta, em que Rachel chorava os. seus filhos: Rachæel plorans filios suos : (Math. II — 18) sendo certo que os meninos de Belem não eram filhos de Rachel, senão de Lia sua irmã. Mas por isso mesmo lhes chama filhos


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monia dos corações, com que o agradecimento saindo fóra de si pelas portas de todos os sentidos com todos se encontrava e manifestava em todos.

Mas isto aonde e quando? A circumstancia do logar e do tempo acredita muito este novo modo de gratificar. Deu o anjo a nova do nascimento do Salvador aos pastores ; e elles que fizeram ? Foram a Belem, viram o que tinham ouvido, e então tornando para o seu gado, vinham cantando louvores, e dando graças a Deus: Reversi sunt pastores glorificantes, et laudantes Deum. (Luc. II - 20) Se nós puderamos tambem ir a Belem, quero dizer, á nossa côrte, e ser testimunhas da sua alegria, não lhe daria vantagem a nossa, como nem ao que ella obrou nos pastores. Mas nota nelles o evangelista duas propriedades, que em nós são grandes differenças. A primeira, que elles estavam na mesma religião: Pastores erant in regionem eadem. (Ibid. - 8) A segunda, que receberam a nova do nascimento no mesmo dia : Quia natus est vobis hodie. (Ibid. — 11) Porém que nós, estando n'outra região tão distante, e recebendo a nova tanto tempo depois, nem por isso glorifiquemos, e louvemos menos a Deus ? Ninguem diga que a terra do Brazil é ingrata. O agradecimento é filho do amor, e o amor ordinariamente o tempo o esfria, e a distancia o apaga : porém o nosso agradecimento, como filho de amor mais nobre, qual deve ser o dos reis e da patria ; nem o tempo, com tantos mares em meio, bastou a lhe esfriar o contentamento, nem as distancias, tão remontadas, para não ver e festejar as causas delle, quanto merecem.

Assim, sem sair da segunda graça, nem entrar na terceira, a quem pertence o agradecer, só com o agrado e estimação da mercê recebida temos já pago e respondido aos eccos só da boa nova, com o melhor e mais sincero tributo do agradecimento. E para que este passe finalmente a terceira graça, resta só que as nossas graças, com humilde e fiel reconhecimento ao primeiro e sobrenatural principio d'onde nasceram, se refiram todas a Deus. Este é aquelle perseito circulo, que as tres graças, como diziamos, fazem, dando-se as mãos entre si : querendo significar, que todas nascem da primeira, e todas tornam a ella. Nascem

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sorte que nas escripturas e nas nuvens deixou Deus dois perpetuos monumentos, um do castigo da ingratidão, outro do premio do agradecimento: nas escripturas o diluvio, como sepultura de todos os filhos de Adão, e por epitophio nella : Delebo hominem, quem creari ;(Gen. VI — 7) nas nuvens a conservação e seguro de todos os filhos de Noé, como arco triumphal do agradecimento, e nelle por inscripção : Nequaquam ultra maledicam terræ propler homines. (Ibid. VIII - 21) Não houve jámais, nem póde haver tal triumpho, como o daquella inscripção em um arco levantado entre o ceu e a terra, porque nelle triumphou e está sempre triumphando o agradecimento: de quem? Não só da omnipotencia, senão tambem do alvedrio divino. Da omnipotencia ; porque não pode Deus fazer o contrario, e do alvedrio; porque nem o púde querer, ainda que tenha grandes razões para isso.

Em summa, que os thesouros da beneficencia divina teem duas chaves, uma de oiro, que os abre; outra de ferro, que os fecha. A de oiro, que os abre, é o agradecimento, que os alcança, augmenta e conserva ; a de ferro, que os fecha, é a ingratidão, que depois de recebidos, os corrompe, destroe e perde. Assim perdeu Adão, por ingrato, e affogou no diluvio a geração de todos seus descendentes : e assim conservou Noé, por agradecido, a sua, e a conserva, e ha de conservar para sempre. Não quizera agora fazer reflexão sobre nós ; mas é obrigação de todo este discurso. Lembremo-nos do agradecimento do segundo pae do mundo, e não nos esqueçamos da ingratidão do primeiro. Estas merces, de que damos as graças á divina misericordia, já sabemos como as bavemos de conservar. Mas temamos tambem como se podem perder. Faz horror á imaginação, e treme de o pronunciar a lingua. No primeiro principe que Deus nos concedeu, e lão brevemente levou para si, nos antecipou o exemplo do que elle não permitta, e póde succeder a todos os que nos teem dado e póde dar, dinda qua sejam muitos mais. Justo Lypsio com advertencia singular entre todos os reinos e.reis do mundo, pồe diante dos olhos a todos, como tremendo espelho de desengano, o reino de Portugal. e o mais feliz de todos os seus reis el-rci D. Manuel. Resere os seus tres casamentos, e o grande numero de filhos e


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