Quem foram os mencheviques e os bolcheviques e quais semelhanças e diferenças existiam entre eles qual a relação de cada um dos dois grupos com a revolução russa?

Introdução

Marx foi um intelectual do século XIX e sua vida e obra devem ser entendidas dentro desse contexto. No entanto, grande parte do século XX foi dominado pela atração ou repulsa que a revolução bolchevique causou, evocando a doutrina de Marx como norte. Evento que exerceu grande impacto sobre todo o século XX, a Revolução Bolchevique pretendeu traduzir para a ação histórica as ideias que Marx desenvolvera ao longo do século XIX.

A leitura e interpretação que Lênin realizou de Marx exerceram uma influência determinante sobre os rumos da construção do socialismo na Rússia após a tomada a tomada de poder pelos bolcheviques a ponto de, após a morte de Lênin, a expressão marxismo-leninismo ter se tornado uma espécie de dogma oficial da antiga União Soviética, cuja existência situou-se entre os anos de 1922 e 1991.

Sua influência foi dominante por décadas. Nos anos 1980, quando a União Soviética passava por importantes mudanças sociais, Gorbatchev “acreditava piamente que o único caminho para o progresso passava pelo retorno aos ‘princípios’ leninistas. A ideia de que o próprio projeto leninista estivesse equivocado permaneceu alheia ao líder soviético até bem tarde [...].” (JUDT, 2008, p. 598-599). A interpretação que Lênin fez de Marx e sua própria concepção de Estado e de socialismo moldaram o destino da União Soviética e, por extensão, dos países-satélites que a ela permaneceram vinculados até o fim.

No presente artigo, pretendemos fazer uma discussão da concepção de Estado dos dois autores, abordar as peculiaridades do contexto em que produziram sua obra e como a doutrina que veio a ser denominada de marxismo-leninismo ganhou corpo e forma histórica durante a turbulência revolucionária que se estendeu da tomada de poder pelos bolcheviques em Petrogrado, em 07 de novembro de 1917, até a morte de Lênin, em 21 de janeiro de 1924.

Pretendemos abordar o pensamento sobre o Estado em dois autores cujas ideias exerceram grande influência no século XX, e, principalmente, dois autores cujos escritos ecoavam o legado da Revolução Francesa. A redação desse artigo foi motivada pela afirmação de Hannah Arendt (2011, p. 101) de que “Lênin foi o último herdeiro da Revolução Francesa”. Como Marx, Lênin “acreditava no Iluminismo, no Progresso, na ciência e na Revolução.” (SERVICE, 2006, p. 32). Nesse sentido, objetivamos cotejar seu pensamento acerca da temática do Estado e compreender como o marxismo-leninismo buscou traduzir parte da tradição revolucionária francesa e do pensamento revolucionário marxista para a realidade histórico-social da Rússia do início do século XX.

Para o historiador inglês e biógrafo de Lênin Robert Service (2006), ao se colocar como legítimo intérprete das doutrinas de Marx, o líder bolchevique deixou, ao morrer, uma doutrina política pronta para ser posta em prática, mas que trazia muito mais elementos de sua personalidade e de suas leituras pessoais de Marx do que ele próprio poderia supor.

Este artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, abordamos como o ideal de liberdade dominou parte do debate político do século XIX, na esteira da Revolução Francesa e da Declaração Universal do Direitos do Homem e do Cidadão. Essa contextualização é o pano de fundo para abordamos como Marx desenvolve uma concepção de Estado livre e homem livre na década de 1840 e suas críticas à noção de direitos do indivíduo.

No segundo tópico, abordamos o amadurecimento da concepção de Estado em Marx. As análises que desenvolveu de eventos de sua época o levaram à rejeição da concentração de poder e à elaboração de uma perspectiva de liberdade pautada na autonomia das instituições e das atividades sociais em relação ao Estado. No terceiro, buscamos entender como Lênin traduz o pensamento de Marx para um contexto marcado pelo desenvolvimento do socialismo gradualista e evolucionário na Segunda Internacional, pela Primeira Guerra Mundial e pelas peculiaridades da Rússia frente às sociedades economicamente mais avançadas da Europa ocidental. No último tópico, discutimos como os dois autores pensaram a questão dos direitos e liberdades civis, contextualizando a obra e o pensamento de ambos.

Seguindo a abordagem de Hannah Arendt sobre o tema, discutimos como a perspectiva do Estado em Lênin se distancia em alguns pontos de Marx, mas não do século XIX. Os principais autores com quem dialogamos para a construção dessa análise são, além dos supracitados Robert Service e Hannah Arendt, Lyn Hunt e Richard Pipes. Desse último, discutimos como a visão de Estado de Lênin converge com a herança patrimonial russa e determina seu desprezo por autonomia individual e pelas leis, algo comum em sua Rússia natal, onde a exploração feudal da terra fora uma realidade até por volta de seu nascimento.

O século XIX e a perspectiva da liberdade

A Revolução Francesa trouxe ao mundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), e, com ela, a noção de cidadania e direitos do indivíduo, que se contrapunham à sociedade de ordens do Antigo Regime, aos privilégios de nascimento e religião, no caso do clero, e colocava em seu lugar o ideal de igualdade perante a lei, autonomia individual e um conjunto de disposições sobre o certo e o errado nas relações entre os indivíduos.

A primeira metade do século XIX foi marcada pelas transformações resultantes do avanço da industrialização e dos valores burgueses de liberdade. Esses valores, no entanto, alijaram amplas parcelas da população das conquistas dos grupos sociais mais abastados. Isso resultou em movimentos sociais de revolta e descontentamento com essa ordem, sobretudo na Inglaterra, com o movimento cartista, e na França, especialmente nas revoluções de 1830 e nas revoluções de fevereiro e junho de 1848.

Após a Restauração (1815) e as revoluções liberais de 1830 e 1848, a burguesia, até então classe revolucionária que ergueu as bandeiras de liberdade e igualdade, chegou a uma posição de poder e influência que tornaram incompatíveis a continuidade do projeto revolucionário iniciado no final do século XVIII, na França.

Durante o século XIX, a liberdade era um tema explorado particularmente pelo liberalismo. Essa era a doutrina que inspirava parlamentos e governos na primeira metade do século. Seu princípio era a neutralidade do Estado no sentido de permitir o funcionamento da economia de mercado e intervir apenas quando fosse necessário restabelecer o equilíbrio entre os atores econômicos. (RÉMOND, 2009, p. 206).

Nesse contexto, é importante não confundir liberalismo com democracia. Embora a existência de uma Constituição e a limitação do poder por ela sejam características do liberalismo do século XIX, ele também era definido por um sistema bicameral e o voto censitário. Essa última característica tornava as sociedades liberais fortemente restritivas, uma vez que a maior parte da população não participava do processo eleitoral ou das discussões políticas, e isso as diferenciava das sociedades democráticas. (RÉMOND, 2009, p. 157).

A emergência da ordem social liberal, ao passo que se assentava na igualdade de direitos, também consagrava em seu bojo disparidades em termos de condições sociais, das fortunas e a desigualdade até mesmo em termos de repartição da cultura. Nesse contexto, o liberalismo encarna sobretudo o governo de uma elite e para ela permanece voltado. Como consequência disso: “Toda uma população indigente perdeu subitamente a proteção que lhe era garantida pela rede de laços pessoais e passa a viver numa sociedade anónima na qual as relações são jurídicas, impessoais e materializadas pelo dinheiro. Compra, venda, remuneração, salário: fora disso não há salvação.” (RÉMOND, 2009, p. 161).

Nas décadas de 1830 e 1840, as revoluções provocaram mudanças importantes: abolição da servidão, da mão-morta eclesiástica, igualdade civil perante a lei, acesso a funções públicas e administrativas, estabelece separação de poderes com o objetivo de proteger o indivíduo do absolutismo e promove a eliminação de interdições antes impostas à burguesia em alguns lugares, como a compra de terras. Mas é para a burguesia que o liberalismo existe de fato. Como observa René Rémond (2009, p. 150), o liberalismo é “força subversiva de oposição ao antigo regime”, mas também se mostra uma força conservadora quando a burguesia evita entregar ao povo o poder que tirou da monarquia.

É nesse pano de fundo histórico que Marx tece as primeiras críticas ao Estado burguês ainda na década de 18402. Em um ensaio sobre a questão judaica, de 1843, ele dissertou sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1789, e expressou sua compreensão de que, após a Revolução Francesa, a burguesia não cumprira o ideal de liberdade porque não resolvera o problema da questão social. Nesse ensaio, Marx inicia com comentários sobre um texto de Bruno Bauer acerca da emancipação dos judeus na Alemanha e discorre amplamente sobre as relações entre Estado e religião.

A partir disso, ele disserta sobre a distinção entre Estado livre e homem livre. Compreendeu a importância da Revolução Francesa ao eliminar as diferenças estabelecidas por nascimento, profissão e posição social e afirmou que, embora a emancipação política seja um importante progresso, “não constitui a forma final de emancipação humana.” (MARX, 2002, p. 23). Para desdobrar esse pensamento, analisou os direitos do homem, com citações da Declaração Universal dos Direitos do Homem e de constituições de alguns Estados norte-americanos.

Marx entendia que “os chamados direitos do homem [...] constituem apenas os direitos de um membro da sociedade civil, ou seja, do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade.” (MARX, 2002, p. 31). Para ele, esses direitos tomam o homem como uma espécie de “mônada3 auto-suficiente”, “limitado a si próprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal.” (Idem, p. 33). A emancipação política, segundo Marx, reduziu o homem a um indivíduo independente e egoísta como membro da sociedade civil, e a uma pessoa moral, como cidadão.

Além disso, ele entendia que a aplicação prática dos direitos do homem estava relacionada ao direito de propriedade, que “só garantia o direito de buscar o interesse próprio sem considerar o dos outros.” (HUNT, 2009, p. 200). Marx conclui o ensaio afirmando que a emancipação humana somente será completa quando o homem se tornar um ser genérico, isto é, como um ser social, consciente da essência humana que tem em comum com os outros homens, quando não mais separará as forças sociais das forças políticas.

Hannah Arendt (2011) observou que os estudos históricos de Marx o levaram a concentrar-se nos acontecimentos revolucionários mais do que no objetivo dos homens das revoluções na instauração da liberdade. Marx então teria se convencido, segundo ela, “de que a Revolução Francesa havia falhado em instaurar a liberdade porque havia falhado em resolver a questão social. Disso ele concluiu que liberdade e pobreza eram incompatíveis.” (ARENDT, 2011, p. 95). Por conseguinte, “o objetivo da revolução não era mais a liberdade e sim a abundância”, e “politicamente, esse desenvolvimento o levou a uma rendição efetiva da liberdade à necessidade.” (Idem, p. 98-99).

Rendição da liberdade à necessidade. Essa observação de Hannah Arendt é uma chave para entendermos as peculiaridades do pensamento de Marx para a questão dos direitos humanos e como isso influenciou a leitura de Lênin da obra marxiana. Esse tema será explorado na última parte desse artigo. A seguir, abordaremos como os eventos que ele observou nas décadas seguintes moldaram sua visão do Estado.

Marx: Estado sem concentração de poder

O desenvolvimento do pensamento marxiano do Estado está intimamente relacionado às análises e embates teóricos que Marx travou em decorrência dos eventos que observava no século XIX, em diferentes sociedades e contextos: o crescimento do proletariado industrial na Grã-Bretanha, o golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte na França, a Comuna de Paris e seus desdobramentos, a formulação do programa do Partido Social-Democrata da Alemanha (1875), as características do Estado em sociedades como Alemanha e Estados Unidos.

Como um intelectual e intérprete do capitalismo industrial, Marx estava ciente da existência de diferentes temporalidades entre classes e Estados no mundo de sua época. Isso fica claro em sua análise acerca da possibilidade de os camponeses constituírem uma classe revolucionária. Em “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, publicado em jornal em 1852 e em livro em 1869, ele comentou que os camponeses estabelecem relações multiformes entre si e comunidades isoladas uns dos outros. Sua pobreza e condições de trabalho não permitem divisão de trabalho. Na França de meados do século XIX, contexto analisado por Marx nessa obra, a pequena propriedade era predominante no país e cada família era quase autossuficiente.

Por conseguinte, sua visão sobre o campesinato é que “são incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome, quer por meio de um Parlamento, que por meio de uma convenção. Não podem representar-se, têm de ser representados”. (MARX, 2010, p. 116). Antecipando uma problemática que estaria presente em sociedades predominantemente agrárias onde um partido comunista chegou ao poder no século XX, Marx observou que o representante dos camponeses tem de figurar como seu senhor, “como autoridade entre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva”. (Idem, p. 116).

No Manifesto Comunista, Marx e Engels teorizaram que o objetivo da ditadura do proletariado seria “centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, ou seja, do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível a massa das forças produtivas.” (MARX & ENGELS, 2002, p. 66). Algumas décadas mais tarde, em 1875, no ensaio “Crítica do Programa de Gotha”, Marx (2012, p. 43), lança o seguinte questionamento: “que transformação sofrerá o Estado na sociedade comunista?”. Ele reconhecia a dificuldade de resolver o problema e enfatizou, como já fizera anteriormente no Manifesto, que a ditadura do proletariado se caracterizaria por ser um período de transformação de uma sociedade (capitalista) em outra (comunista).

Paralelamente, continuava a expressar desprezo pela democracia, evocada no Programa de Gotha, do Partido Social-democrata da Alemanha, que ele chamava de “velha cantilena democrática, conhecida de todos: ‘sufrágio universal, legislação direta, direito do povo, milícia popular etc. [...] Não passam de reivindicações que, quando não são exageros fantasiosos da imaginação, já estão realizadas.” (MARX, 2012, p. 43, grifo do autor). Ele se refere aqui particularmente à Suíça e aos Estados Unidos, que, no contexto de meados da década de 1870, já seriam o “Estado futuro”.

Embora Marx pensasse o governo do proletariado como uma ditadura, sua concepção de Estado não se aproximava de algo como uma supremacia do Estado sobre as relações sociais. Isso fica claro quando ele considerava, ainda na Crítica do Programa de Gotha, ser inadmissível que a educação popular ficasse a cargo do Estado e afirmou que a escola deve ser subtraída da influência do governo e da Igreja. Ao falar isso, tinha em mente dois tipos distintos de Estado de sua época: o Império Alemão, uma autocracia que em meados dos anos 1870 era formado em sua maioria por camponeses, e os Estados Unidos, cuja forma política demarcava uma legislação educacional mas não um atrelamento do ensino ao Estado. Marx destacou essa segunda forma como positiva e criticou, no programa de Gotha, o que chamou de “credulidade servil da seita lassalliana no Estado.” (MARX, 2012, p. 46).

Alguns anos antes da obra sobre o programa de Gotha, ele fez uma análise da Comuna de Paris em “A Guerra Civil na França”, publicado em 1871, em Londres, e em 1871 e 1872 em outros países da Europa e nos Estados Unidos. Na obra, ele teceu duras críticas a Adolphe Thiers, presidente da Terceira República francesa, proclamada em 1870, após a derrota da França na guerra franco-prussiana e em substituição ao império de Luís Bonaparte.

Entre março e maio de 1871, parisienses que desejavam uma sociedade mais justa fundaram um governo progressista no coração de Paris, a Comuna. Numa cidade profundamente desigual, onde um quarto da população era considerada indigente (MERRIMAN, 2015, p. 13), a Comuna objetivava um governo de caráter socialista. Ao final, a repressão comandada por Adolphe Thiers debelou a revolta e deixou milhares de mortos, em sua maioria executados a sangue frio e sem que lhes fosse dado ao menos direito a um julgamento.

Além de condenar asperamente o massacre perpetrado pelas tropas comandadas por Thiers, Marx também analisa o caráter do poder centralizado do Estado francês, com problematizações que remontam das revoluções na França entre 1789 e 1848, passando pela ascensão de Luís Bonaparte até o imperialismo. Elogiou a formação da Comuna e sua organização, a escolha dos conselheiros municipais por sufrágio universal, o fato de a polícia não continuar a ser instrumento do governo central e de as funções públicas não serem mais propriedade privada de “testas-de-ferro do governo central”. (MARX, 2008, p. 403). Também elogiou que a educação fora liberta de interferências da Igreja e do Estado.

Para ele, o fato de a Comuna ter se tornado um governo do povo para o povo foi uma de suas grandes realizações sociais. Marx entendia a Comuna como a antítese do império e uma forma positiva de República, e destacou o primeiro decreto da Comuna, que dissolveu o exército permanente e em seu lugar armou o próprio povo. Ele também postulou que o regime comunal de Paris daria lugar, nos centros secundários, ao autogoverno dos produtores em lugar de um governo centralizado. Em razão disso, restaria a um governo central poucas funções que seriam executadas por agentes comunais “estritamente responsáveis”. Com isso, continua Marx, os órgãos estritamente repressivos do velho poder governamental seriam amputados e o sufrágio universal serviria o povo, e, portanto, seria totalmente estranho à Comuna substituir o sufrágio universal pela “investidura hierárquica.” (MARX, 2008, p. 404).

O culto à personalidade de um líder, característica marcante dos regimes totalitários do século XX, também é algo que não encontra eco no pensamento de Marx. Como Marx imaginava a Revolução como obra coletiva do proletariado, a figura de um líder que agrega poderes sobre a coletividade lhe era completamente estranha. Não existe em sua obra nada que remeta ao culto à personalidade. Ao contrário, Marx sempre se mostrou avesso a qualquer forma de adoração a um líder. O livro “O 18 Brumário de Luís Bonaparte é um exemplo. Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão, protagonizou um golpe de Estado em 2 de dezembro de 1851 e tornou-se imperador da França. Foi eleito presidente três anos antes, em 1848.

Na obra, Marx analisa como Luís Bonaparte foi concentrando poderes para explorá-los para seus próprios interesses. Aos poucos, minou a autoridade da República e da Assembleia Constituinte. Seu desejo de grandeza, mimetizando o tio, foi alvo de forte ridicularização de Marx na obra, que o chamou, entre outras coisas, de “bufão” e “príncipe lumpen-proletário”.

Para Jonathan Sperber, a “guinada genocida4” levada a cabo na URSS e posteriormente em outros lugares, para tirar seus países do subdesenvolvimento e transformá-los em nações industrializadas

[...] fazem lembrar nada mais do que as descrições apresentadas por Marx em seus escritos sobre a brutal modernização da Índia colonial pelos britânicos ou dos relatos encontrados em O Capital, acerca da acumulação capitalista primordial. A história posterior desses regimes revelou um despotismo burocrático, que guardava muitas semelhanças com os reinados da Prússia e do czar, que Marx tanto desprezara. (SPERBER, 2014, p. 536).

A partir dessas análises, fica claro o quanto o pensamento de Marx sobre o Estado fugia a qualquer estatolatria ou centralismo administrativo que concentrasse poderes, forças armadas e legislasse sobre educação e, pior ainda, exercesse um poder repressor sobre as massas.

Lênin: o caminho para a construção do socialismo real

Diferentemente de Marx, Lênin teve a oportunidade de exercer o poder e colocar em prática suas ideias. Mas antes que os bolcheviques tomassem o poder, em 07 de novembro de 1917, sua concepção do Estado e do papel do proletariado na Revolução se distanciara significativamente de Marx.

Marx jamais especificou como se construiria a futura sociedade comunista. Há referências vagas em sua obra sobre isso. Ele imaginava que a ditadura do proletariado criaria as condições para a superação da propriedade privada e da sociedade sem classes. Mas, como afirmou Archie Brown (2010, p. 40), “nem no Manifesto Comunista nem em nenhum outro lugar ele abordou a questão das instituições políticas e legais que deveriam ser formadas depois da revolução. Essas coisas, aparentemente, se resolveriam por si mesmas”. Não abordar a questão das instituições abriu caminho para muitas arbitrariedades cometidas em seu nome depois de 1917.

A construção da nova sociedade foi um desafio que os bolcheviques tiveram que enfrentar sozinhos tão logo se viram na posse do poder. Em seu livro “Que fazer?”, publicado em 1902, dezenove anos após a morte de Marx, Lênin apontou que a classe operária sozinha não tinha condições de realizar uma revolução. Era preciso desenvolver sua consciência política, mas entendia que essa não era uma tarefa fácil. Essa consciência, segundo ele, não poderia ser levada ao operariado do exterior, era preciso formá-la no interior da luta econômica. Para isso, seria necessária a formação de um partido que cuidasse do que ele chamou de educação revolucionária do proletariado, e que articulasse, contra o governo, a ofensiva em nome de todo o povo.

Lênin entendia que “o movimento operário espontâneo não pode resultar, por ele mesmo, senão no trade-unionismo (e inevitavelmente resulta), e a política trade-unionista da classe operária não é mais do que a política burguesa da classe operária.” (LÊNIN, 2015, p. 153). Ele queria a formação de um partido revolucionário composto por profissionais dedicados integralmente à causa. Essa organização, segundo ele, eliminaria “por completo toda distinção entre operários e intelectuais.” (Idem, p. 171).

Para ele, a continuidade de um movimento revolucionário sólido só pode ser garantida com a formação de uma organização estável de dirigentes. Essa organização também se tornaria uma barreira que impediria que as camadas mais atrasadas das massas que integram a luta revolucionária fossem cooptadas por demagogos. Além disso, a necessidade de profissionalização dessa camada de dirigentes era necessária numa autocracia como Rússia, uma vez que sua preparação, segundo Lênin, na arte de lutar contra a polícia política a torna mais difícil de ser capturada por essa polícia. (LÊNIN, 2015, p. 184-185).

Os trabalhadores precisam de revolucionários profissionais que lhes deem uma compreensão teórica, que os convençam de que seus verdadeiros interesses só podem ser atendidos destruindo o capitalismo. O que é necessário é a abolição da sua condição de trabalhadores contratados, e não o objetivo sindical de obter um melhor acordo com seus empregadores. (BROWN, 2011, p. 55).

Mas é em “O Estado e a Revolução”, escrito no calor dos eventos que agitavam a Rússia em 1917, que seu pensamento político é expresso de forma mais madura. A concepção de Estado de Lênin está relacionada à era do imperialismo e aos debates da Segunda Internacional. Em relação ao primeiro, no prefácio à primeira edição, ele diz que “A guerra imperialista acelerou e avivou ao mais alto grau o processo de transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado”. (LÊNIN, 2010, p. 19).

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) infundiu em Lênin a convicção de que o capitalismo se transmutara em um sistema de subjugação universal dos trabalhadores por uns poucos países avançados. Para ele, as noções de livre concorrência e democracia pertenciam ao passado e eram discursos enganadores por meio dos quais operários e camponeses eram ludibriados pela imprensa. Essa foi uma ideia defendida por ele em uma obra publicada antes, em 1916, intitulada “Imperialismo, fase superior do capitalismo”. (LÊNIN, 2008).

Para Lênin, a guerra mundial manifestava o caráter mais agressivo do monopólio de concentração de poder das potências imperialistas. Nesse passo, o desenvolvimento de sua visão do Estado une a observação do desenvolvimento do capitalismo monopolista e sua leitura de Marx de que “O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes”. (LÊNIN, 2010, p. 27). Esses dois elementos compunham o cerne de sua rejeição ao parlamentarismo e à democracia, ambos compreendidos como instrumentos de dominação de classes da burguesia. Essa também era a base de sua rejeição e oposição à socialdemocracia5.

Foi a partir desses elementos que Lênin rejeitou as conclusões de algumas vertentes e teóricos socialistas de sua época, como os socialistas fabianos ingleses, Eduard Bernstein e Karl Kautsky, bem como de teóricos da Segunda Internacional que acreditavam na importância da atuação parlamentar, como o fundador do Partido Trabalhista Britânico, Keir Hardie. Juntamente com os socialistas fabianos, Hardie acreditava numa evolução gradual e pacífica.

O contexto britânico era bem diferente do russo naquele momento. Sociedade mais avançada do ponto de vista econômico e tecnológico, a Grã-Bretanha contava com uma sólida monarquia parlamentar e instituições estáveis. O sindicalismo foi aceito e reconhecido na década de 1870 e cresceu substancialmente no final do século XIX. Em 1914, um sistema previdenciário embrionário se formava, como resultado de uma legislação liberal introduzida em 1906, que, dois anos depois, instituiu pensões por velhice. (HOBSBAWM, 2011, p.160). Mesmo que as classes trabalhadoras ainda vivessem em condições incertas até a velhice, a esquerda política britânica optou pelo socialismo evolucionário, reformista, parlamentar.

Entre os teóricos dessa vertente, Eduard Bernstein é um dos que se destacaram. Influenciado pela filosofia gradualista dos fabianos ingleses, argumentava que se podia prescindir de usar o termo “ditadura do proletariado” porque o trabalho parlamentar de representantes da socialdemocracia influenciava diretamente a legislação e essas atividades eram incompatíveis com a noção de ditadura. (BROWN, 2011, p. 59-60).

Em “O Estado e a Revolução”, Lênin chama todos eles de oportunistas. Na Rússia de Lênin, onde a dinastia Romanov, que governou o país por cerca de três séculos e fora derrubada pela Revolução Menchevique, destroçada pela guerra, majoritariamente camponesa, sem qualquer tradição parlamentar, sua convicção da necessidade de destruição da máquina do Estado pela revolução era reforçada pela história política que o cercava e os eventos à sua volta.

Em 1917, a interpretação social de Lênin que fundamentava sua visão do Estado ainda estava ligada às divisões de classes e interesses dos últimos dois quartos do século XIX. Isso reforça sua convicção da inutilidade da ação parlamentar e de que apenas a violência tem legitimidade para a construção do comunismo e, portanto, para determinar o fim da violência contra os homens em geral. (LÊNIN, 2010, p. 100).

Dois momentos que representaram um divisor de águas entre o projeto de poder da liderança bolchevique e uma postura dialógica com a sociedade e os trabalhadores veio com o fechamento da Assembleia Constituinte, em janeiro de 1918, e o ataque à rebelião dos marinheiros de Kronstadt, em 1921. Em relação a este último evento, a repressão evidenciou uma cisão clara entre o partido e os trabalhadores, mesmo entre aqueles que haviam apoiado a Revolução, como os marinheiros. No cerne dessa reação estava a convicção de Lênin de que valores civis, como liberdade de discussão e de crítica, não eram relevantes para a construção do novo Estado socialista. Na interpretação de Robert Service, isso pode ser inferido em “O Estado e a Revolução”:

Os direitos de cidadania, individualmente considerados, não o preocupavam, queria que sua ditadura julgasse tudo por critérios de “luta de classe”. [...] O Estado e a Revolução foi descrito como desanimador devido a sua incapacidade de reconhecer os benefícios dos valores liberal-democráticos de governo. Até aí, isso é verdade. Mas a análise pode ir além: temos de reconhecer ainda que o livro não contém meramente a falta de proposição de liberdade civil universal, mas é de fato uma campanha clara e deliberada contra essas liberdades. (SERVICE, 2006, p. 346).

Aliado a isso está o conceito de Lênin de centralismo democrático. Segundo este princípio, as discussões sobre as questões políticas podiam ocorrer livremente na sociedade, de forma democrática. Mas as decisões deveriam ser chanceladas pelo partido, ou por delegados e comissões nomeados pelo partido.

Fazia-se uma distinção entre o centralismo democrático e o centralismo burocrático. Ao contrário do primeiro, este teria um caráter arbitrário no sentido de não levar em consideração as opiniões dos comitês do partido em seus vários níveis. Contudo, “na realidade política, o centralismo democrático era o centralismo burocrático. Tornou-se o codinome de um partido rigidamente hierárquico, severamente disciplinado, no qual os direitos de discussão e debate eram rigorosamente circunscritos”. (BROWN, 2010, p. 136).

Marx imaginou a ditadura do proletariado como um governo composto pelo proletariado, não por um partido separado deste. Lênin percebeu que o proletariado, ao menos dentro das condições específicas da Rússia, não poderia desenvolver a consciência necessária para levar a cabo uma revolução e tentou contornar isso. O marxismo-leninismo, como ficou conhecida essa doutrina, se tornou o dogma oficial da União Soviética e de virtualmente todos os estados que viveram sob governos comunistas no século XX.

Lênin buscou traduzir o comunismo para a realidade histórico-social da Rússia e, ao fazê-lo, imprimiu em sua visão de Estado, de ditadura e de partido a herança autocrática do czarismo (como abordaremos no final deste tópico), e, como observou Robert Service, traços de sua própria personalidade. Por outro lado, tentou contornar a lacuna que Marx deixou ao não pensar na hipótese (cada vez mais evidente durante seus últimos anos e que ele recusou a aceitar) de que o proletariado não faria uma revolução. Nesse passo, Lênin abriu o caminho para o totalitarismo que marcou a história soviética após a guerra civil (1918-1921).

O Estado e os direitos do indivíduo

Vimos como Marx pensava a questão dos direitos humanos em termos coletivos, não individuais, e que sua abordagem sobre o tema esteve relacionada ao distanciamento que existia entre liberalismo e democracia na primeira metade do século XIX, contexto em que a noção de liberdade e exercício da cidadania era fortemente restritiva e elitista.

Acerca desse tema, Hannah Arendt observou dois aspectos importantes de sua doutrina: primeiro, ao deixar implícito que não podemos afirmar categoricamente que o pensamento dele é voltado para a liberdade e que seu lugar na história da liberdade humana “sempre será ambíguo” (ARENDT, 2011a, p. 97), uma vez que urgia libertar o homem da escassez pela revolução mais do que da opressão de seus semelhantes. Com isso, de acordo com a autora, Marx estabelece um vínculo entre violência e necessidade.

Isso nos leva ao segundo aspecto: ao focar sua análise na questão da necessidade, Marx levou efetivamente a uma rendição da liberdade a ela, como Robespierre fizera antes dele e como Lênin viria a fazer depois. Para Arendt, Lênin não conseguiu evitar essa rendição, isto é, ao estabelecer o Partido Bolchevique como a única força motriz do desenvolvimento econômico e da vida política soviética, ele alinhou o crescimento econômico à ideologia e com isso tolheu “as potencialidades de novas instituições para a liberdade” (ARENDT, 2011, p. 100), como abordamos no tópico anterior. De acordo com ela:

Lênin foi o último herdeiro da Revolução Francesa; ele não tinha nenhum conceito teórico de liberdade, mas, posto diante dela na realidade concreta, entendeu o que estava em jogo e, quando sacrificou as novas instituições da liberdade, os sovietes, ao partido que julgou que libertaria os pobres, sua motivação e seu raciocínio estavam de acordo com os trágicos fracassos da tradição revolucionária francesa. (ARENDT, 2011, p. 101).

Entre esses “trágicos fracassos da tradição revolucionária francesa” estava também a Comuna de Paris. A repressão brutal do governo de Thiers aos participantes da Comuna em 1870 instigou em Lênin um impulso implacável para neutralizar os adversários da Revolução6, reais ou imaginários. A partir de um entendimento das adversidades que os bolcheviques enfrentaram nos primeiros anos, somado à preocupação com os reveses da tradição francesa, como acima mencionado por Hannah Arendt, podemos compreender com mais acuidade a guinada autoritária que o regime assumiu sobretudo após a guerra civil.

As consequências práticas da aplicação de suas ideias são amplamente conhecidas. Lênin ordenou que falsos julgamentos fossem encenados para que servissem como “castigos exemplares”. Intelectuais que não fossem bolcheviques foram deportados e padres da Igreja Ortodoxa foram fuzilados. Campos de trabalhos forçados foram construídos, gás venenoso foi usado por aviões de bombardeio para eliminar focos de resistência no campo. Os tribunais e a Cheka (polícia política) ampliaram o uso do terror e da tortura como instrumentos de intimidação nos julgamentos - lembremos que Marx elogiou a Comuna de Paris por não ter mantido a polícia como instrumento do governo central. Não se comoveu nem tomou qualquer atitude quando foi informado que a crise e os surtos de fome estavam levando à difusão de casos de canibalismo. Por outro lado, continuava reafirmando a importância de ampliar o terror e a repressão. As críticas ao governo minguavam à medida que diversos veículos de imprensa foram fechados. Mesmo fora da imprensa, insatisfações com as posturas ditatoriais do governo eram frequentes. Frente a críticas e manifestações de oposição, Lênin chamava a atenção para o fato de que não era necessário combater apenas a burguesia, mas também era preciso intimidar as massas. Naqueles anos turbulentos, manter o regime implicava aumentar o autoritarismo. (SERVICE, 2006).

A concepção do Estado de Lênin determinou toda a história soviética após sua morte e mescla, como mencionamos anteriormente, sua interpretação mais ortodoxa de Marx com a tradição política autocrática da Rússia. Na obra “História Concisa da Revolução Russa”, Richard Pipes (2013) elencou algumas razões para o comunismo não ter dado certo naquele país: um dos pontos foi o papel predominante da intelligentsia no processo revolucionário, em um país com uma classe operária numericamente insignificante. Outro ponto foi a destruição das instituições existentes por parte de Lênin que pavimentou o caminho para o que posteriormente passou a ser chamado de totalitarismo.

Uma terceira razão está na visão particular que Lênin tinha da política: ele a via como um mecanismo para a guerra, para aniquilação dos inimigos. Segundo Pipes, a politização da guerra marcou toda a história soviética porque foi continuada e aperfeiçoada por Stálin. De acordo com ele, “essa inovação deu a Lênin vantagens significativas sobre seus oponentes, para os quais a guerra era a antítese da política ou a política feita por outros meios.” (PIPES, 2013, p. 404). Com efeito, ele entendia a ditadura do proletariado como uma “guerra mais severa e implacável da nova classe contra um inimigo mais poderoso, a burguesia [...] e a vitória sobre a burguesia torna-se impossível uma guerra prolongada, tenaz, desesperada, mortal; uma guerra que exige [...] inflexibilidade e uma vontade única.” (LÊNIN, 1981, p. 13).

Em Lênin, a politização da guerra tem uma finalidade pedagógica, de instrução das massas e inculcação da disciplina partidária, como expresso na seguinte passagem: “A ditadura do proletariado é uma luta cruenta e incruenta, violenta e pacífica, militar e econômica, pedagógica e administrativa, contra as forças e as tradições da antiga sociedade. [...] Sem partido férreo e temperado na luta [...] é impossível levar a cabo com êxito essa luta.” (LÊNIN, 1981, p. 41-42).

O quarto motivo elencado por Pipes está na obsessão pela violência que marcou a visão de muitos intelectuais entre o final do século XIX e início do século XX. Pipes observa que a violência implacável era, para Lênin, não apenas a melhor forma de lidar com problemas, mas a única. Sua abordagem converge com o que mencionamos acima de que para ele, aumentar o autoritarismo era a melhor forma de intimidar e aquietar as massas.

Por fim, ele comenta a respeito da herança autoritária e patrimonial da autocracia russa que sobreviveu ao regime que os bolcheviques derrubaram. Em relação ao patrimonialismo russo, o autor destaca quatro características essenciais: primeiro, a autocracia, no sentido de um governo pessoal ilimitado, com ausência de constituição e até mesmo a quase inexistência de propriedade privada; segundo, ausência de direitos coletivos e individuais; terceiro, controle do Estado sobre a informação. Esses elementos davam ao monarca poder absoluto para legislar e agir. A partir disso, Pipes explica que Lênin agia como se o país fosse seu domínio privado e o Partido atuava acima da lei. Substituindo a antiga nobreza hereditária, a nomenklatura do partido acumulou privilégios e direitos acima do povo ou dos funcionários públicos comuns. Em quarto lugar, a censura. Embora a censura na Rússia tenha sido abolida em 1906, os bolcheviques a reviveram e subjugaram toda a produção intelectual e artística ao crivo do Partido.

Em relação ao marxismo como base para o bolchevismo, o autor tece duas observações importantes: primeiro, que a teoria de Marx tem origem ocidental, enquanto as práticas dos bolcheviques são nativas, “pois em nenhum lugar do Ocidente o marxismo levou aos excessos totalitários do leninismo-stalinismo.” (PIPES, 2013, p. 406). Em segundo lugar, o autor também observa que os elementos autoritários da doutrina marxista tiveram ascendência sobre o bolchevismo e se amoldaram à herança patrimonial russa.

Desde a Idade Média, o governante era o sujeito, e a “terra”, o objeto. Não foi difícil fundir essa tradição e o conceito marxista de “ditadura do proletariado”, permitindo ao partido dirigente o controle exclusivo sobre os habitantes e recursos do país. A noção que Marx tinha dessa “ditadura” era vaga o suficiente para ser preenchida com o conteúdo mais à mão, que na Rússia era o legado histórico do patrimonialismo. Foi o enxerto da ideologia marxista no galho robusto da herança patrimonial russa que produziu o totalitarismo. Este não pode ser explicado somente com base na doutrina marxista ou na história russa: é fruto de sua união. (PIPES, 2013, p. 407).

Comentamos acima a abordagem de Marx sobre a Comuna de Paris em “Guerra Civil na França”. Na obra, em um comentário sobre o Estado francês, que parece traduzir o que era o Estado russo até 1905, Marx se reportou aos órgãos de sustentação daquele Estado - exército, polícia, burocracia, clero - como “entulho medieval.” (MARX, 2008, p. 399).

Na introdução que escreveu para a obra em 1891, Engels enfatizou que a obra de Marx conclamava para a destruição do poder do Estado até ali existente e sua substituição por um novo, verdadeiramente democrático. A seguir, reportando-se ao império alemão, Engels condenou o que chamou de “veneração supersticiosa do Estado” oriunda, ele afirma, do pensamento de Hegel, que leva a sociedade a imaginar que seus interesses e assuntos só podem ser tratados pelo Estado e por suas autoridades. Engels concluiu que o Estado é um instrumento de dominação de classe e que o proletariado, uma vez vitorioso, herdaria, mas de cujos piores aspectos deveria se livrar e cortar, “até que uma geração crescida em novas e livres condições sociais se torne capaz de se desfazer de todo o lixo do Estado.” (ENGELS in: MARX, 2008, p. 354).

Marx buscou elaborar uma doutrina da emancipação humana, mas os elementos autoritários que ela continha germinaram em solo fértil de autocracia e estéril em tradições de autonomia individual e coletiva, bem como de respeito às leis. Sem os ingredientes que serviriam como freios a um poder absoluto, a noção de ditadura de Marx foi absorvida por um desejo insaciável de poder e controle por parte das novas classes dirigentes da Rússia depois de outubro/novembro de 1917. Como pontuou Pipes, foi da união do marxismo com a herança patrimonial russa que totalitarismo nasceu naquele país. Olhando em retrospecto, Lênin foi o teórico e o agente político que pôs em marcha essa síntese.

Considerações finais

Revolução, liberdade, democracia, direitos humanos, justiça social. Todas essas cinco noções estão presentes na história contemporânea e se relacionam com a herança e o legado da Revolução Francesa. Reunir todos esses elementos em uma mesma doutrina social pareceu tão difícil quanto distante a intelectuais do século XIX.

Afinal, em um mundo onde a democracia demorou a ser pensada como a extensão de direitos civis a todas as pessoas, as ideias de direitos e justiça permaneciam como uma prerrogativa de uma elite privilegiada. As mudanças trazidas pelo parlamentarismo, especialmente na Grã-Bretanha, já no final daquele século, foram sutis e lentas, mas importantes o suficiente para atrair intelectuais da esquerda política para a democracia e o terreno da transformação gradual da sociedade por meio da ação parlamentar.

Mesmo que pessoas próximas a ele tenham aderido a essas mudanças, Marx permaneceu até o fim de sua vida convicto de que apenas uma revolução social seguida de uma ditadura do proletariado poderia efetivamente mudar o estado de coisas naquela sociedade. Marx não era um teórico da democracia, mas da Revolução, e isso o manteve focado no ideal de criação de uma nova sociedade, um ideal onde não caberia simultaneamente, pelo menos na fase de transição, aqueles cinco elementos, e por isso teve de render a liberdade à necessidade, como abordamos neste artigo, e com isso, teorizar a solução para o problema da escassez.

Nos países de tradição parlamentar onde o marxismo proliferou, ele transmutou em luta por direitos, com o ideal da Revolução ficando em segundo plano ou abandonado. Na Rússia, ao contrário, onde qualquer tradição nesse sentido não vicejou, o ideal da Revolução foi elevado por Lênin a um princípio máximo e inegociável, imprescindível na luta pelo fim da dominação de classes. Sua formulação de uma teoria política em que o partido seria a linha de frente da organização dos trabalhadores e das instâncias decisórias da sociedade definiu o horizonte de atuação dos governantes que vieram depois dele, de Stálin a Gorbatchev.

Salvaguardadas as diferenças de personalidade, contexto e governabilidade dos líderes que vieram depois, a noção de Partido-Estado de Lênin permaneceu intocável. Uma noção que se traduz, especificamente, pelo substantivo “controle”: “controle da economia, controle do conhecimento, controle do movimento, controle do movimento, da opinião e das pessoas.” (JUDT, 2008, p. 594). Mais do que o marxismo, o leninismo delimitou a linha-mestra pela qual o comunismo ficou conhecido no século XX, nomeando não apenas a ditadura, mas o seu ocaso no final do século.

Quem eram os bolcheviques e os mencheviques quais as diferenças entre eles?

Os mencheviques não desejavam uma revolução violenta, mas queriam que a transição fosse política e pacífica. Os bolcheviques já desejavam a revolução comunista a qualquer custo. Em russo, “bolchevique” quer dizer maioria; e “menchevique”, minoria.

Quem são os bolcheviques e mencheviques?

Os Bolcheviques e Mencheviques foram os primeiros partidos políticos a introduzirem o socialismo em um país no mundo. Foi inédito para a Rússia colocar em prática as ideias de Karl Marx. Essas correntes operaram durante a Revolução Russa que durou entre 1917 e 1928.

Quem eram os bolcheviques e os mencheviques E o que eles defendiam?

Os mencheviques defendiam uma revolução moderada rumo ao socialismo, para depois implementar o comunismo. A intenção deste grupo era fazer uma transição do império czarista para a democracia, o que desenvolveria o capitalismo e depois permitiria a implantação do comunismo, baseando-se no pensamento de Karl Marx.

Quem são os bolcheviques?

Quem eram os bolcheviques e o que defendiam. Os bolcheviques (maioria, em russo) defendiam a revolução armada, visando instaurar o comunismo imediatamente. Eram liderados por Lênin. Os bolcheviques eram o grupo majoritário do partido comunista da Rússia.