Quais são as medidas usadas pelo governo no Plano Cruzado para derrubar a inflação?

SEMINÁRIO

Efeitos do plano de estabilização econômica do governo sobre o ensino e a prática da administração. Primeira sessão

Yoshiaki NakanoI; Luiz Carlos Bresser PereiraII

IProfessor titular no Departamento de Planejamento e Análise Econômica da EAESP/FGV. Secretário adjunto da Secretaria de Estado do Governo do Estado de São Paulo

IIProfessor na EAESP/FG V e secretario de Estado do Governo do Estado de São Paulo

Composição da mesa

Presidente: Maria Cecília Spina Forjaz
Professora e chefe do Núcleo de Pesquisas e Publicações da EAESP/FGV Expositor: YoSkiaki Nakano
Professor na EAESP/FGV e secretário adjunto do Governo do Estado de São Paulo Debatedor: Luiz Carlos Bresser Pereira
Professor na EAESP/FGV e secretário de Estado do Governo do Estado de São Paulo

O objetivo deste trabalho é explicar do modo mais didático possível: 1. o que é o Plano Cruzado e quais os seus fundamentos teóricos; 2. como funciona e em que condições pode dar resultados positivos, isto é, derrubar a inflação; 3. tentar fazer uma rápida avaliação dos dois primeiros meses decorridos desde sua implantação.

A idéia de "choque heterodoxo", como foi chamado, uma forma alternativa de combater a inflação em relação às terapias tradicionais que existam, tanto as monetaristas como as keynesianas, é relativamente recente. Embora houvesse grandes divergências entre keynesianos, monetaristas e outros quanto à maneira pela qual a inflação deveria ser tratada, permanecia a uni-los um preceito fundamental, de acordo com o qual a inflação deveria ser tratada, permanecia a uni-los um preceito fundamental, de acordo com o qual a inflação deveria ser controlada de modo gradualista. A base deste preceito era a idéia de que qualquer tipo de política de controle sobre a inflação teria um custo relativamente elevado, porque implicava recessão. O que há de realmente novo no choque heterodoxo é que, através dele, procura-se interromper a inflação de uma hora para outra, com custos sociais mínimos.

Falou-se muito em inflação zero. Alguns membros do Governo colocaram como meta derrubar a inflação de um patamar de mais de 300% e trazêla para zero. Acredito que algumas pessoas do Governo ainda tenham esse objetivo. Eu acho difícil que se concretize, mas o importante é que se interrompeu a inflação abruptamente, através de um choque com medidas administrativas como congelamento de preços, salários, câmbio e assim por diante.

A prescrição do choque heterodoxo, desenvolvida nos últimos anos, resultou de uma evolução do pensamento econômico, em função de mudanças nas características do processo inflacionário mais recente. Por trás dela está a teoria da inflação inercial.

O que diz esta teoria? De acordo com os textos antigos, a inflação pode ser causada por excesso de demanda, por problemas de elevação de custos, ou, ainda, por problemas de natureza estrutural, que provocam estrangulamentos setoriais, que se acabam propagando pelo resto do sistema, gerando uma elevação generalizada de preços. Então pode-se até fazer a classificação tradicional: inflação de demanda, inflação de custos ou a chamada inflação estrutural. A teoria da inflação inercial não nega a existência destes tipos de inflação, mas afirma que no capitalismo moderno a inflação ganha novo componente: um componente chamado inercial.

Este componente surge porque nesta etapa do capitalismo a inflação passou a ser um problema crônico, com taxas baixas nos países desenvolvidos e extremamente altas nos subdesenvolvidos. A inflação é um processo de elevação de preços que acaba gerando transferência de renda entre diferentes segmentos da sociedade. Na medida em que a inflação torna-se um fenômeno crônico, cada segmento da sociedade tenta desenvolver instrumentos para defender sua renda real. Passa-se a ter um processo generalizado de indexação, formal ou informal. Os trabalhadores começam a lutar nas negociações para que tenham uma cláusula de correção monetária e possam corrigir seus salários pela inflação passada. Tentam reajustá-los pelo pico. As empresas começam a repassar automaticamente qualquer elevação de custo direto aos preços. O setor financeiro passa a desenvolver mecanismos para indexar também todos os ativos financeiros. O câmbio é indexado, e assim por diante. Quando se tem este fenômeno generalizado de indexação, em que todos procuram recompor a sua renda real de acordo com a inflação passada, isto é, quando todos os preços ficam amarrados uns nos outros, o que acaba acontecendo?

Uma vez iniciado o processo inflacionário, ele ganha autonomia, e tende a se perpetuar, independentemente da causa inicial que o tenha gerado: excesso de demanda, elevação de custos ou um estrangulamento setorial. Eis o componente inercial da inflação moderna.

Cabe observar que a inflação inercial já ocorreu em alguns momentos específicos do passado também. Nas experiências de hiperinflação, especialmente em sua fase final, quando as taxas atingem níveis extremamente elevados, verifica-se o mesmo fenômeno. Quase todos os casos de hiperinflação tiveram origem na inflação de guerra. O diagnóstico é o clássico de excesso de demanda ocasionado pelo déficit público diante da destruição de indústrias, que acabaram gerando o processo inflacionário. Mas na fase final percebe-se claramente que ela ganha movimento próprio, autonomia em relação às causas originais, pois acaba criando também uma economia totalmente indexada, ainda que informalmente. E isto é fácil de se entender, pois com uma taxa de inflação que ultrapassa a casa dos 30 mil % ao mês, para qualquer economia poder funcionar, a indexação torna-se necessária. E não só a indexação, como os preços têm que ser reajustados de forma sincronizada e a defasagem entre os reajustes tem que diminuir.

Em qualquer dos casos, no momento em que se tem um componente da inflação que é autônomo, independente de demanda, custos ou estrangulamentos setoriais, aqueles remédios tradicionais de combate à inflação através da restrição de demanda deixam de funcionar. Tanto as políticas monetaristas como keynesianas tornam-se exercícios inoperantes.

Para os monetaristas o problema da inflação resume-se no excesso de expansão monetária, isto é, se a oferta de moedas cresce mais que a taxa de crescimento da economia, a longo prazo, ocorre uma elevação generalizada de preços. A solução estaria em um controle rígido da oferta monetária, de modo a manter o seu crescimento ao nível do crescimento da economia, com o que se bloquearia a elevação dos preços.

Os keynesianos, de outro lado, fazem uma análise diferente. Eles afirmam que a inflação é um problema de excesso de demanda agregada. Curiosamente, a inflação de demanda keynesiana, na verdade, não é tanto de demanda, mas, ocorre antes via elevação de custos. Ao estudarem empiricamente como ocorrem os fenômenos inflacionários, os keynesianos chegam à conclusão de que não é o excesso de demanda no mercado de bens que provoca a elevação de preços. Antes de ocorrer este fenômeno de esgotamento da capacidade ociosa e de elevação de preços no mercado de bens, verifica-se no mercado de trabalho uma elevação de salários. O que eles acabam descobrindo é que, à medida que a economia expande-se e a capacidade ociosa diminui, o nível de emprego eleva-se e os salários começam a subir: o poder de barganha dos trabalhadores aumenta e as próprias empresas começam a disputar trabalhadores. (A forma de se recrutar mão-de-obra numa situação em que a economia está-se expandindo rapidamente é "roubar" funcionários de outra empresa, oferecendo salário pouco maior). Existe alta correlação entre redução ao nível de desemprego e elevação da taxa de salários.

No mercado de bens, como são fixados os preços? Na economia moderna predominam os oligopólios, com poder de administrar os seus preços. Como o custo básico é de salários, as empresas oligopolistas automaticamente repassam os seus aumentos aos preços finais com o objetivo de proteger sua taxa de lucro.

Em resumo, no diagnóstico keynesiano, quando a demanda aumenta, o desemprego cai e os salários sobem; e a elevação de salários implica a elevação de preços. A terapia prescrita é a seguinte: basta administrar a demanda agregada mantendo o nível de desemprego em certo nível, que não ocorrerá elevação de salários e os preços permanecerão estáveis. O nível de desemprego, isto é, o exército industrial de reserva necessário para se manter a estabilidade de preços, é relativamente alto. Segundo um trabalho clássico do economista inglês A.W. Philips, esta taxa é da ordem de 5,5% na Inglaterra. Nos EUA esta taxa é um pouco maior. O que os governos dos países capitalistas no período pós-guerra enfrentavam era uma espécie de troca: mantendo-se o desemprego no nível de 6 a 7%, haveria estabilidade de preços, só que este nível é excessivamente alto. Reduzindo-se o nível de desemprego a uma taxa um pouco menor, teríamos uma certa inflação. Ora, é melhor conviver com certa inflação e com um nível elevado de emprego, do que ter inflação zero e nível mais elevado de desemprego. Por isso, no período pós-guerra convivemos com pequena taxa de inflação, que era até benéfica para as economias mais dinâmicas, pois acabava sendo um mecanismo de ajuste. Isto prevaleceu desde o período pós-guerra até o início da década de 70.

Mas à medida que este fenômeno inflacionário tornou-se um problema crônico, todo mundo começou a querer se defender contra a inflação. E o mecanismo usado foi a indexação. Passamos a ter o fenômeno da inflação inercial. A política keynesiana revela-se inoperante. Não adianta comprimir a demanda, aumentar o desemprego, pois a inflação se auto-reproduz às taxas anterores e assistimos ao fenômeno que conhecemos como estagflação, que caracteriza a década de 70.

Chegamos assim a uma situação em que a política tradicionalmente adotada em todos os países, a política keynesiana, não funciona. Daí a busca de teorias alternativas. Nesse processo os monetaristas ressurgem e chegam ao poder nos EUA e Inglaterra em 1979. Ao lado dos monetaristas emergem teorias mais sofisticadas em termos de expectativas racionais e que não cabe se abordar agora. De qualquer forma, o monetarismo impõe enormes custos sociais, mas mostra-se também inoperante.

Passemos então à análise do choque heterodoxo, consubstanciado no Pacote Econômico de 28 de fevereiro de 1986. Antes disso, é importante lembrar que existiam no Brasil duas propostas alternativas para interromper o processo inflacionário de uma forma quase brusca. Uma era a do choque heterodoxo e a outra a moeda indexada, há uma pequena (ou talvez grande) diferença entre ambas.

A primeira alternativa (choque heterodoxo) vista quebrar o mecanismo da inércia inflacionária, rompendo o processo de realimentação da inflação. Para isto propunha a desindexação da economia e o congelamento geral dos preços, salários e câmbio. Sua característica básica é interromper a inflação com medidas administrativas.

Na segunda proposta, a interrupção da inflação e o processo de transição do cruzeiro para uma nova moeda é voluntária e não há congelamentos. Os trabalhadores poderiam optar por receber os salários em cruzeiros ou em ORTN. Quem resolvesse receber em ORTN teria que passar por um processo de conversão do salário para a média, após o que seria fixado em ORTN. O mesmo seria feito em relação aos demais preços. Na medida em que a inflação é inercial, por exemplo 10% ao mês, ela se perpetua a esta mesma taxa, porque todos reajustam os preços a 10% ao mês. A ORTN no seu valor nominal estaria sendo reajustada em 10%, mas ela representaria o poder aquisitivo real, constante. Se se começassem a fixar todos os preços em ORTN - em ORTN a inflação é zero - então, por aí, acabaríamos com a inflação.

Essa solução, na verdade, foi inspirada nas experiências de interrupção abrupta da hiperinflação, nas quais acontecia algo semelhante. De fato, quando a taxa de inflação atinge níveis extremamente elevados, 20.000%, 30.000%, 50.000%, ou mais, por mês, ninguém mais utiliza a moeda corrente como unidade de conta. Todo mundo precisa de outra unidade de poder de compra, uma unidade real. Generaliza-se a utilização da moeda estrangeira, títulos que tenham cláusula ouro ou outras mercadorias para expressar os preços. Expressa-se o preço de uma caneta em quilos de batata, em quilos de arroz, em dólar, ou num título que tenha a cláusula ouro. O mais utilizado acaba sendo a moeda estrangeira, o dólar, por exemplo. Em moeda corrente do País a taxa de inflação num mês é 30%, mas em dólar é zero. Na hora de vender uma mercadoria toma-se a taxa de câmbio, faz-se a conversão e recebe-se em moeda corrente do País; e corre-se para trocá-la por dólar ou por outra mercadoria. A solução foi extremamente simples, desde que preenchidas outras condições. Consistiu em congelar o câmbio. A taxa de conversão do dólar para o marco alemão, por exemplo, era mantida constante, com isso o preço da mercadoria em marco alemão também o era. De uma forma grosseira, foi mais ou menos isso o que aconteceu em todas as experiências em que se conseguiu interromper o processo de hiperinflação de uma hora para outra. A proposta da moeda indexada, claramente calcada nessas experiências, era fazer isso de uma forma voluntária, sem congelamento.

No Brasil contávamos com essas duas propostas alternativas. A adotada no nosso caso foi a do chamado "choque heterodoxo", com congelamento de preços, salários e câmbio. Quais são as características básicas do choque? Não se usam as políticas tradicionais de contenção da expansão monetária ou de controle da demanda agregada, ou de aumento de desemprego para controlar a inflação. O objetivo é manter a economia crescendo e, num choque, interromper a inflação. Desindexa-se a economia. Congelam-se os preços, os salários e o câmbio; o congelamento é geral. Introduz-se uma nova moeda, o cruzado, com uma tabela de conversão baseada em uma desvalorização de 0,45% ao dia do cruzeiro.

Como se faz o congelamento? O congelamento puro e simples no dia D não seria viável. Os salários são reajustados a cada seis meses. Alguns preços são reajustados a cada semana, outros a cada mês. Alguns preços são reajustados a cada semana outros a cada mês. Alguns contratos eram reajustados anualmente. Se os preços e os salários fossem congelados de uma hora para outra, surgiriam graves problemas de desequilíbrio entre os preços relativos, com enormes perdas para alguns e ganhos para outros. Então, o que o programa implantou, pelo menos, naquilo que poderia provocar maiores desajustes, foi atualizar os valores para a média real do último período de reajuste antes de congelá-los. Embora os agentes econômicos raciocinem em termos de correção pelo pico, na verdade não é possível reajustar a renda de todos os agentes pelo pico: é inconsistente. Cada um teria uma renda muito maior do que a média. Para congelar o salário no pico, todas-as demais rendas teriam que ser ajustadas pelo pico também, neste caso a renda seria maior do que o produto, o que é impossível, sem inflação. Então, o que o programa faz é reajustar a renda pela média. No caso do trabalhador, quando existe inflação, o salário no decorrer do semestre vai caindo, na data-base o reajuste recompõe o mesmo salário real da data do reajuste anterior. O que interessa é o salário real médio, porque no começo do período o salário real está elevado, mas n o final do período já está lá em baixo.

Então, no momento do congelamento os salários que estavam abaixo da média precisam ser elevados para a média; os salários que estavam acima da média precisam ser baixados para a média. Com os preços não foi feito isso, porque ficava muito mais difícil. Essa conversão para a média foi feita também com todos os contratos, pois contratos de risco que implicavam aplicações de crédito, contratos de recebimento futuro, sem cláusula de correção monetária, todos eles tinham embutida uma expectativa inflacionária. Se alguém fazia um empréstimo para financiar um automóvel, pagaria nos juros uma taxa de inflação esperada. Era necessário reduzir esta inflação embutida nos contratos futuros, caso contrário ocorreria uma tremenda transferência de renda dos devedores para os credores. Para evitar isso retiram-se, através da tabela de conversão de cruzeiros para cruzados, as expectativas de inflação nos contratos prefixados.

Vejamos agora em que condições o choque heterodoxo pode ter sucesso. A primeira delas é haver uma perfeita sincronização dos reajustes de preços ou que esta sincronização resulte de medidas administrativas prévias, no momento do congelamento, para não provocar redistribuição de renda. Este é um problema sério. Quando a defasagem dos ajustes é muito grande e diferenciada, quando se aplica o congelamento, desmonta-se toda a estrutura de preços relativos. Segunda condição importante é que os preços devem estar relativamente bem equilibrados. Se todo mundo estiver satisfeito com a distribuição de renda existente, se ninguém estiver tentando obter uma fatia maior da renda (se a inflação for puramente inercial, todo mundo está procurando manter sua renda real e ninguém está querendo aumentar sua renda real), fica fácil congelar os preços e as rendas. Em outras palavras, se não existirem preços represados, nem demandas salariais extremamente reprimidas, o congelamento poderá ser mais duradouro. A existência de preços reprimidos significa que a margem de lucro das empresas está baixa. E se isso for um fenômeno mais ou menos generalizado, aqueles que têm a margem de lucro reprimida vão tentar furar o congelamento e aí o controle ficará difícil.

Em suma, se se tiver os preços perfeitamente sincronizados, se as defasagens entre os ajustes forem muito pequenas e os preços relativos também estiverem equilibrados, ficará muito fácil fazer o congelamento e parar a inflação de uma vez. Como vimos, essas condições encontram-se nas experiências de hiperinflação, porque nesses casos preços e salários passam a ser reajustados diariamente e as taxas são tão elevadas que não há represamentos. Nesta situação, quando se faz o congelamento, consegue-se congelar a distribuição de renda, sem provocar grandes perdas ou ganhos.

Não foi este o nosso caso. Nós tínhamos reajuste semestral de salário, e, assim por diante. Então o que o Pacote tenta fazer é, através de um decreto, de uma medida administrativa, criar aquelas condições de sincronização e eliminar a defasagem. Em relação aos preços relativos, o Governo assumiu que os preços relativos estavam equilibrados. Quando os preços são convertidos para a média e aí congelados, é como se todos os preços estivessem sincronizados e a defasagem fosse eliminada. Se houver problemas sérios nessa área, se a aplicação do programa provocar grandes redistribuições de renda, não vamos conseguir trazer a inflação para zero, e depois do congelamento será preciso começar a fazer alguns ajustes setoriais para manter á economia operando. De outra forma, viola-se uma lei básica dentro do sistema capitalista, chamada a lei do valor. Neste caso, os agentes econômicos deixam de produzir e começa a haver problemas de desabastecimento.

A terceira condição do sucesso do programa é que se possa congelar o câmbio. Já mencionei a importância desta medida ao falar da hiperinflação. No nosso caso, há condições plenas para se congelar o câmbio: temos um enorme superávit comercial, a dívida externa está bem renegociada, as reservas estão elevadas e o Governo tem todas as condições para garantir estabilidade de câmbio.

A quarta condição fundamental é que o Governo tenha mecanismos institucionais para controlar.suas contas. Numa situação inflacionária, o déficit público acaba sendo, na maior parte das vezes, conseqüência da própria inflação. Como há sempre grande número de conservadores que atribuem ao déficit público e à emissão monetária a causa da inflação, esta idéia acaba encontrando acolhida na população. Nas experiências de hiperinflação ela correspondeu à realidade. Foram gastos de guerra, financiamentos dos déficits públicos através de emissão monetária que acabaram acelerando a inflação. E isso ficou na memória do povo que conviveu com a hiperinflação. Então, quando começa a aparecer o déficit público, quando o Governo não consegue controlar suas contas, o programa de estabilização pode perder credibilidade. Sob este ponto de vista psicológico é até interessante que o Governo tenha criado todas as condições para controlar o déficit público. Mas é importante também do ponto de vista material, pois se houver expansão excessiva dos gastos governamentais, em determinado momento ocorrerá inflação de demanda. A criação de condições de controle das contas públicas é um ingrediente encontrado em todas as experiências em que se conseguiu segurar a inflação de uma hora para outra. E no nosso caso estavam sendo criadas essas condições. Imaginava-se que a reforma tributária feita em dezembro de 1985, a eliminação de alguns mecanismos que geravam a expansão monetária descontrolada, como a conta movimento do Banco do Brasil, a criação da Secretaria do Tesouro e algumas outras medidas, trariam condições para se controlar o déficit público. Na verdade, pelos números recentes, a conclusão a que se está chegando é que o efeito da reforma tributária para eliminar o déficit público é ainda incerto. O Governo vinha perdendo receita à medida que a inflação se acelerava. Por isso estava antecipando a arrecadação de impostos, reduzindo a defasagem entre o fato gerador e a arrecadação. Quando a inflação vira zero, isto se constitui uma vantagem. A conclusão a que se está chegando é que o problema com o déficit público continua, mas é perfeitamente controlável e coerente com inflação próxima a zero, desde que não ultrapasse 2 a 3% do PIB.

A última condição importante a frisar é que o Governo tem que ter credibilidade. Quando ele se propõe a derrubar a inflação com uma medida de choque, com o congelamento geral de preços, salários, câmbio, etc, precisa ser capaz de convencer a sociedade, de que aquele programa é sério, que vai ser levado adiante e que os objetivos vão ser alcançados, senão o programa não dará certo. É preciso induzir a sociedade a agir de acordo com as regras fixadas. No nosso caso, o Governo tinha uma credibilidade bastante alta, se comparada com a dos governos anterores, tanto é que, logo em seguida ao Pacote, houve adesão total da população ao programa.

Analisando todas essas condições mencionadas, pode-se concluir que grande parte delas estava presente. O problema do setor externo estava controlado. O problema do déficit do setor público, bem encaminhado. Acho que novas medidas serão necessárias, mas as contas do setor público não estão fora do controle. Em relação ao problema de sincronização dos preços e eliminação da defasagem dos preços relativos, a experiência, ou, pelo menos, o resultado dos três meses iniciais mostra que, no geral, não houve grandes problemas e o indicador disso é que nós não estamos enfrentando nenhum percalço mais grave de abastecimento. O que vale observar é que como os preços relativos não estavam perfeitamente equilibrados, não vamos conseguir chegar a uma inflação zero. Nós vamos ter que ter uma inflação positiva nos próximos meses, porque o Governo vai ter que caminhar de um congelamento geral para um controle e começar a acertar os preços de uma série de setores que estão desajustados, e isso vai causar uma certa taxa de inflação.

Para finalizar, ressalto que este programa está sendo implantado sem recessão, e tudo indica que vamos continuar sem recessão. Havia grande temor de que o congelamento geral de preços, salários, etc. pudesse gerar recessão, principalmente porque o congelamento de preços seria inconsistente com as regras do sistema capitalista. Para surpresa nossa, tudo indica não só que os investimentos continuam ocorrendo, mas que houve retomada de investimentos. A Folha de São Paulo fez uma pesquisa publicada no dia 11 de maio de 1986, segundo a qual as empresas estão investindo e o Pacote não inverteu essa tendência; pelo contrário, até estão sendo feitos maiores investimentos. Pode-se suspeitar que, se entrevistados, os empréstimos não queiram dizer que cortaram seus investimentos por causa do Pacote, para não parecerem antipáticos. Mas existe uma série de outros indicadores que mostram que os investimentos realmente continuam firmes e houve até uma retomada. Na área dos bancos de investimento, dos bancos de desenvolvimento e dos bancos comerciais que operam com o crédito a longo prazo houve uma retomada nos empréstimos, depois de uma paralisação no mês de março. Tudo indica que a maioria dos empresários está acreditando no Pacote e está fazendo investimento. Nãõ vamos ter recessão. No entanto, os problemas a serem enfrentados pelo programa são inúmeros e tenho certeza de que nas nossas condições, esse programa não é programa para trazer a inflação a zero. Acho que conseguiremos fazê-la cair para um nível baixo, abaixo de 20%, num período de 12 meses. Mas, tenho certeza de que a taxa de inflação não vai a zero e acho que isso não seria nem necessário, nem adequado. Uma taxa relativamente baixa de inflação, na verdade, é necessária numa economia altamente dinâmica como a nossa.

Uma forma provocativa de começar este texto seria afirmar o seguinte: parece haver uma crença generalizada de que o fator decisivo do êxito do Plano Cruzado foi o apoio da população. E alguns ainda acrescentam que foi o apoio da população e da Rede Globo. Não concordo com isto. Claro que os "fiscais do Sarney", que o apoio que o Governo obteve foram importantes. Mas essa participação popular não foi tão essencial quanto se diz. Muito mais importante, a meu ver, foi a coerência do Plano com a realidade econômica. Se não houvesse essa coerência, se o Plano fosse meramente voluntarista - uma simples vontade do presidente ou dos ministros da área econômica de acabar com a inflação - por mais que houvesse o apoio da população, ele não seria bem-sucedido. Mas, na hora em que este Plano corresponde realmente à realidade do sistema econômico, à realidade do mercado, à estrutura das relações econômicas vigentes na sociedade, aí então podemos entender por que ele foi bem-sucedido.

Antes de mais nada, vamos deixar claro que o Plano está sendo extremamente bem-sucedido. Teremos muitos problemas daqui para a frente; muita gente discute se ele vai ser sucesso ou não. É preciso dizer que o Plano já foi um sucesso. Se fôssemos seguir a receita dos economistas ortodoxos e do FMI, estaríamos durante cinco anos submetendo a economia brasileira à recessão para acabar com a inflação. Nós acabamos com a inflação em um dia. Claro, ela poderá voltar, e não sei para que taxa. Os empresários imaginam que ela volte para uma taxa de aproximadamente 20% ao ano, segundo pesquisa do jornal Folha de São Paulo, mas, se isto acontecer, o sucesso já terá sido enorme.

A razão básica deste sucesso é que uma série de economistas foi capaz de formular a teoria da inflação inercial ou autônoma. Nós, Yoshiaki Nakano e eu, chamamo-la inicialmente de teoria da inflação autônoma, mas, afinal, o nome inercial passou a ser o mais usado. A idéia era a mesma. Esta teoria foi desenvolvida fundamentalmente no Brasil nos últimos três ou quatro anos. Os primeiros trabalhos que começaram a analisar teoria da inflação inercial datam de 1981/82. O primeiro texto que eu conheço completo data do início de 1984, mas foi escrito bem antes, em 1982/83. A primeira proposta de choque heterodoxo foi publicada em julho de 1984. No segundo semestre de 84 houve todo um conjunto de propostas de choque heterodoxo ou de moeda indexada, ambas baseadas diretamente na teoria da inflação inercial, porque tanto o choque heterodoxo, como a moeda indexada são propostas que decorrem quase que automaticamente, quase que necessariamente, da teoria da inflação inercial.

Nesta teoria é fundamental que façamos uma distinção muito clara entre os fatores aceleradores da inflação e os fatores mantenedores da inflação. Também é fundamental conhecer o que são os fatores sancionadores da inflação, que são um terceiro tipo de fator.

Normalmente, os modelos econômicos que tratam da inflação partem de uma inflação zero e, supondo que a inflação seja zero, vão saber as causas da inflação. Neste caso, trata-se de descobrir quais são os fatores aceleradores da inflação, que levaram a inflação que estava em zero a passar, no final do ano, para 10 ou 20%, por exemplo. Em todos os modelos, partia-se sempre do zero, porque não havia uma teoria econômica sobre os fatores mantenedores da inflação. Tanto a teoria monetarista de inflação como a teoria estruturalista da inflação, tanto a teoria keynesiana da inflação, como a teoria da inflação administrativa ou de custos, cada uma dessas quatro teorias tentava explicar por que a inflação se acelerava, porque a inflação que estava em zero passava para X.

Na teoria monetarista, a explicação remetia ao aumento da oferta da moeda; na teoria keynesiana, falava-se no excesso de demanda que depois se refletia no aumento do salário; na teoria estrutural, a causa era um excesso de demanda e insuficiência de oferta setorial, isto é, um ponto de estrangulamento na oferta; de acordo com a teoria administrativa ou de custos, a inflação decorreria da força dos oligopólios, capazes de aumentar suas margens de lucro, e do poder dos sindicatos, que logravam aumentar automaticamente seus salários. E havia ainda a teoria financeira da inflação, um subtipo de inflação administrativa, que dizia que a inflação tinha causa no setor financeiro, ao aumentar as taxas de juros. Todas estas eram explicações dos fatores aceleradores da inflação.

Evidentemente, era fundamental somar-se a isso uma explicação sobre os fatores mantenedores da inflação. Para isso se passou a lidar com um modelo que, em vez de começar com uma inflação zero, parte de um patamar de inflação de 5, 10 ou 20% ao mês (qualquer porcentagem serve). Imagine-se que esta economia tenha uma inflação crônica, persistente, e depois disso é que se pode pensar em quais fatores aceleram ou desaceleram esta inflação. Mas, já que parte de um certo nível, é preciso então explicá-lo porque a inflação tende a se manter, como se manteve no Brasil durante quase três anos, a uma taxa de 10% ao mês, que corresponde a uma taxa de aproximadamente 200% ao ano. É aí que aparece a inflação inercial, a inflação autônoma, a inflação que reproduz o passado no presente, automaticamente, autonomamente.

Por que a inflação passada tende a se reproduzir inercialmente no presente? Há duas alternativas de explicações.

A primeira delas está relacionada com a teoria monetarista. Os economistas monetaristas não são tão incompetentes como se diz. Milton Friedman, que é o pai dos economistas monetaristas, estudou com inteligência a inflação. Ainda que se prenda excessivamente à teoria de que a inflação é causada por excesso de oferta de moeda, desenvolveu ao mesmo tempo uma outra teoria, segundo a qual a inflação está amarrada às expectativas. Assim, houvesse a expectativa de que a inflação se manteria em uma determinada taxa, a inflação continuaria nesse determinado patamar, e a oferta de moedas se ajustaria a este nível de expectativas dos agentes econômicos. Então, já existe alguma coisa sobre inflação inercial na teoria monetarista de Milton Friedman.

A segunda, a teoria da inflação inercial, é uma teoria neo-estruturalista, e sendo estruturalista, é antimonetarista. Apresenta como alternativa à idéia das expectativas a idéia do conflito distributivo. Em outras palavras, a inflação não se mantém num determinado patamar, no nosso patamar de 10% ao mês, por exemplo, por causa das expectativas dos agentes econômicos, mas, fundamentalmente, em virtude do conflito permanente pela distribuição da renda que existe entre os agentes econômicos.

Ninguém pretende com isso afirmar que as expectativas não sejam importantes. Afinal, a economia é uma ciência social. Assim sendo, ela mexe com pessoas, com homens, e essas pessoas agem de acordo com expectativas, procuram maximizar seus lucros, seus salários, têm expectativas de como isso vá acontecer e procuram, em função da previsão do que pode acontecer, tratar de obter a maior quota possível para elas próprias: é mais ou menos o que se aprende no bê-a-bá de economia. Ninguém está negando isso; é mais ou menos óbvio que a expectativa é importante, mas é absurdo imaginar que a inflação seja um fenômeno meramente psicológico, um fenômeno de expectativas, ao invés de estar profundamente baseado num contexto distributivo, num conflito real, concreto, entre agentes econômicos que não querem perder nada e que, se possível, querem ganhar alguma coisa no processo. Talvez o exemplo mais claro desse fenômeno seja o de proposta de taxa de câmbio preanunciada, declinante, que foi usada pelos economistas monetaristas na Argentina, no Chile e, até certo ponto, em 1980, por Delfim Netto no Brasil. O que eles diziam? Diziam que a inflação é produto de expectativas; a expectativa é dada fundamentalmente pela taxa de câmbio. Vamos imaginar que haja um caso de inflação de aproximadamente 9% ao mês, como se deu na Argentina por volta de 1979, e que se estejam desvalorizando as taxas de câmbio. Para nós mudarmos as expectativas dos nossos agentes econômicos, tanto dos trabalhadores, como dos nossos empresários, a solução é preanunciar, avisar e até publicar, em decreto, que no primeiro mês a desvalorização da moeda local não vai ser de 9% mas sim de 8,8%, no outro mês vai ser de 8,6%, no outro de 8,4%, no outro de 8,2% e assim por diante. Então, pré-anuncia-se uma taxa declinante de desvalorização cambial, prevendo que a inflação vá acompanhar este pré-anúncio, isto é, que os preços vão baixar obedientemente. Isso foi feito na Argentina, no Chile e também no Brasil. A inflação efetivamente diminuiu, mas muito menos do que a taxa de câmbio.

Houve, portanto, uma valorização real muito grande do peso argentino, do chileno e do cruzeiro brasileiro, quando esta política monetarista foi adotada. No Brasil, em 1980, não houve uma tablilla, mas apenas uma prefixação única de 45% para a desvalorização nominal da taxa de câmbio, quando a inflação estava a 90%. O resultado foi a valorização do cruzeiro, que afetou brutalmente as importações, diminuiu as exportações e levou a uma crise cambial. A inflação não baixou.

A alternativa proposta pela teoria da inflação inercial é dizer que as expectativas não têm este poder, porque, na verdade, os agentes econômicos estão num conflito distributivo; eles sabem perfeitamente quais são os seus interesses, estão perfeitamente conscientes de qual foi a inflação passada, e não estão dispostos, apenas por causa de alguns sinais muito pouco confiáveis, a mudar sua expectativa de alto a baixo e obedecer religiosamente a um guia, a um tablilla, e, portanto, reduzir seus preços obedientemente. Isto não acontece; o que há é um conflito distributivo.

A idéia de conflito distributivo é extremamente importante para explicar a mecânica da inflação inercial. Vamos ilustrá-la com um exemplo simples: imaginemos que, ao invés de 130 milhões de brasileiros, existam apenas três brasileiros, eu, o indivíduo A e o indivíduo B, e que estejamos em um conflito distributivo, e que a inflação, em vez de estar em zero, no nosso modelo, já esteja em 10% ao mês. Então, se a inflação está em 10%, eu aumento meu preço em 10% no dia 1? do mês - nós compramos e vendemos um para o outro - o indivíduo A aumenta o seu preço no dia 10 do mês, o indivíduo B aumenta o seu preço em 10% no dia 20 do mês.

Aí, no mês seguinte, é novamente a minha vez de aumentar, e eu aumento meu preço outra vez em 10%, depois o indivíduo A, o B, e assim vai, inercialmente, automaticamente, autonomamente. Se qualquer um de nós três parar de aumentar, porque o Governo está dizendo que vai baixar a inflação, o que vai acontecer? Simplesmente este perde no conflito distributivo porque os outros continuam aumentando. Então ele não vai parar e nós vamos ficar eternamente nesse processo. Essa é a idéia básica da inflação inercial. É uma inflação através da qual os agentes econômicos aumentam seus preços defasada e alternadamente. Seria mais fácil acabar com a inflação se nós três aumentássemos todos os nossos preços no dia 1? do mês, em 10%, pois cada um olharia para o outro e perceberia que isso não resolve nada. Assim, não aumentaríamos mais. Da mesma maneira, se todos os brasileiros aumentassem seus preços no mesmo dia, seria fácil acabar com a inflação. Mas quando os preços aumentam em datas diferentes, as coisas ficam bem mais complicadas. O conflito distributivo fica muito mais claro quando existem estes aumentos alternados e defasados de preços. O fator mantenedor da inflação decorre desse conflito distributivo, que é resolvido através da indexação formal e informal da economia.

A indexação garante que a inflação passada se reproduza no presente. Neste sentido, a fórmula de correção salarial baseada em 100% do INPC reproduzia automaticamente a inflação passada no presente. Era totalmente impossível acabar com a inflação com aquela fórmula, pois ela forçava a inflação a se manter no mesmo patamar, tornava a inflação rigorosamente inercial.

A indexação pode ser formal, como era o caso da correção dos salários, dos ativos financeiros, ou informal, como era o caso dos preços das mercadorias e serviços. Os preços não estavam indexados formalmente, mas os empresários sabiam que a inflação era de 10% ao mês e tratavam de aumentar em 10% os seus preços, todo mês. Não precisavam nem examinar a evolução de seus custos, era muito mais fácil e simples. Isto é a inflação inercial.

É claro que junto à inflação inercial existem os fatores aceleradores, que podem ser de dois tipos: de demanda ou de oferta. No primeiro caso, pode haver um excesso de demanda na economia; então aquele mecanismo keynesiano de o excesso de demanda provocar aumento de salários vai ocorrer. Além de aumento de salários, pode e deve ocorrer aumento de margem de lucro das empresas. Neste caso, aumentos de salários acima da produtividade, bem como o aumento da margem de lucro das empresas, evidentemente, aceleram a inflação. Há outros fatores aceleradores da inflação, do lado da oferta. Eles ocorrerão sempre que houver poder de monopólio, seja por parte dos sindicatos, seja por parte das empresas, seja por parte do Estado. Se os sindicatos conseguem, quando não há excesso de demanda, aumentar o salário dos trabalhadores acima do aumento da produtividade, isto é imediatamente inflacionário. Se as empresas conseguem, em uma economia em recessão, aumentar suas margens de lucro para compensar sua perda de vendas - como Yoshiak Nakano (1984) já mostrou em artigo que escreveu há algum tempo

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    há o resultado é a aceleração da inflação. Se o Governo resolver fazer a chamada "inflação corretiva" - eliminando subsídios, liberando preços, corrigindo preços relativos - evidentemente provocará um choque de oferta e, portanto, uma aceleração da inflação. Entre as medidas de inflação corretiva, a de maior impacto inflacionário é a desvalorização cambial real, e a maxidesvalorização.

  • E pode haver combinações de fatores: em certos momentos, os fatores aceleradores são de demanda e em outros momentos são de oferta, dependendo da fase do ciclo econômico. O importante é lembrar que permanece nestes casos a inflação inercial e, ao mesmo tempo, os fatores aceleradores determinam que a inflação vá sempre aumentando.

    A inflação inercial aumenta por patamares; não aumenta explosivamente numa espiral rápida. No caso brasileiro, diferentemente do que ocorreu na experiência das hiperinflações - particularmente no caso da hiperinflação alemã, que chegou a 50 mil % ao ano contra os modestos 350 a 400% da inflação brasileira - nunca houve uma espiral inflacionária. A inflação cresceu sim, mas por patamares e lentamente. Em alguns momentos, mudou de patamar. No final de 1979 e começo de 1980, deu um salto: estava em torno de 50% e passou para aproximadamente 100%. Em 1983, deu outro salto, mudou novamente de patamar: estava no começo do ano em 100% e passou para 200%. Nos dois anos, o fator fundamental de aceleração da inflação foi a desvalorização cambial real (houve duas maxidesvalorizacões, uma em dezembro de 1979 e outra em fevereiro de 1983). Estava havendo mais recentemente uma nova aceleração inflacionária; mas, como as anteriores, não era explosiva; era uma aceleração que apenas mudava de patamar. Por quê? Porque esgotado o efeito acelerador do choque, passava a funcionar o efeito mantenedor da inflação, e inercialmente a inflação se mantinha. Todos os agentes econômicos se adaptavam a essa nova taxa de inflação e passavam a repassar automaticamente os aumentos de custo para preços num círculo vicioso e tranqüilo.

    A diferença entre a situação brasileira e a hiperinflação que ocorreu na Alemanha, na Áustria, na Hungria, na Polônia, após a I Guerra Mundial, e também na Hingria, após a II Guerra Mundial, está relacionada com a fuga de capitais, e a taxa real de câmbio. Naqueles países, o Governo era obrigado a emitir certa quantidade de moeda para manter um mínimo de liquidez do sistema econômico. As pessoas recebiam moedas de seu país e corriam para comprar dólares ou libras. Era a fuga de capitais. Ao demandarem-se divisas estrangeiras de forma crescente, ocorriam desvalorizações reais seguidas da moeda, do marco alemão, por exemplo. As nossas minidesvalorizações, por outro lado, eram nominais; só se desvalorizava a moeda em termos nominais, de acordo com a inflação. Se começasse a haver uma procura de dólares muito violenta, isso imediatamente faria com que a moeda se desvalorizasse combatê-la com recessão. Isso não apenas em termos nominais, mas também em termos reais. Foi o que ocorreu na Alemanha, Hungria, etc, provocando a espiral inflacionária. No Brasil, por causa da indexação formal da economia, isto não acontecia. Quando os agentes econômicos recebiam moeda brasileira não iam comprar dólares, a não ser secundariamente. Compravam ORTNs, títulos do Governo, faziam depósitos nas cadernetas de poupança, colocavam dinheiro no Open ou compravam CDBs; os negócios permaneciam em moeda local, em ativos financeiros defendidos contra a inflação, o que não existia na Alemanha.

    Cabe falar agora sobre o terceiro fator antes mencionado: o fator sancionador. Qual é o fator sancionador da inflação por excelência? Em um modelo de inflação inercial, a oferta de moeda é o fator sancionador da inflação, que sanciona ou valida uma inflação que já ocorreu. Por que isso? A idéia é muito simples. Todos sabem que a moeda pode ser comparada a um lubrificante da economia. Precisa-se de uma certa quantidade de moedas para realizar as transações; sem isso a economia começa a entrar em crise. Então, à medida que se tinha uma inflação de 10% ao mês, por exemplo, precisava-se aumentar, aproximadamente 10% ao mês, a quantidade nominal de moeda, para que a quantidade real de moeda continuasse igual, e, portanto, o nível do lubrificante da economia se mantivesse igual, e as transações pudessem ser realizadas. Se começasse a diminuir esta oferta de moedas, isso provocaria uma crise de liquidez, uma recessão muito forte. Ora, a economia quer se defender da recessão. Combater uma inflação inercial através desse tipo de procedimento não faz sentido. Só faz sentido combater a inflação através de recessão quando a causa da inflação é o excesso de demanda. Mas não era esse o nosso caso; nós tínhamos uma inflação inercial que, em grande parte do período, foi compatível com o excesso de oferta e não com o excesso de demanda. Não faz sentido pode ser extremamente ineficiente e, muitas vezes, até contraproducente, porque as empresas oligopolistas aumentam suas margens de lucros compensatoriamente. Se se insistir muito e se for muito violenta a restrição monetária e fiscal, talvez se acabe reduzindo um pouco a inflação. Mas imagino que com a inflação que tínhamos de 300 a 350% ao ano, demoraríamos cinco anos de recessão profunda para o final, talvez, baixarmos para uns 50% de inflação - uma loucura completa.

    A partir dessa teoria de inflação surgiu o Plano Cruzado, um plano de estabilização muito bem pensado e muito bem executado, ainda que tenha sido decidido na última hora. A idéia fundamental, implícita no congelamento de preços, salários, taxas de câmbio, é a de suspender o mercado por algum tempo. Realmente, quando se faz um choque heterodoxo, o que se está dizendo é que o mercado foi incapaz de controlar a inflação. Então, é preciso suspender durante algum tempo o mercado. Quebrar a memória inflacionária, quebrar a inércia inflacionária, e depois deixar o mercado voltar a funcionar. Há um engessamento do mercado durante algum tempo. A alternativa seria indexar a moeda, mas o sistema de congelamento geral de preços, salários, taxas de câmbio é muito mais lógico, mais simples, direto e compreensível.

    É interessante observar que durante certo tempo nós confundimos a necessidade de congelamento com a idéia de desindexação. Ora, não é necessário fazer as duas coisas. Basta o congelamento, mantendo-se a indexação. Foi o que afinal foi feito: não se acabou totalmente com a indexação; os salários continuam indexados, só que agora de acordo com uma escala móvel, híbrida; as cadernetas de poupança continuam indexadas. Teoricamente, poder-se-ia manter tudo indexado, porque o importante não é a indexação. Se a inflação descer para perto de zero, o fato de haver indexação não importa, indexa-se zero ou próximo de zero. E mantendo-se a indexação, dar-se-á maior confiabilidade ao todo.

    O que é absolutamente fundamental é que este choque seja, do ponto de vista distributivo, razoavelmente neutro, isto é, que ninguém seja muito favorecido, nem muito prejudicado pelo choque, que no dia D ninguém ganhe muito, nem perca muito. Se alguns ganharem ou perderem muito neste dia D, isto significa que os preços relativos estavam extremamente desequilibrados. Em conseqüência, tivemos sérios problemas, porque a própria teoria da inflação inercial diz que só se pode eliminá-la quando se encontra um momento no tempo que seja o ponto médio, e em que todas as rendas sejam transformadas em rendas médias. No caso brasileiro, como esse ponto médio não existia, foi preciso criá-lo artificialmente através das diversas fórmulas de conversão de contratos de cruzeiros em cruzados.

    Caberia também fazer algumas observações sobre a reforma monetária. Muitos pensam que se precisa de uma nova moeda, fundamentalmente por um efeito psicológico. Eu insisto que economia não é um fenômeno psicológico, embora as expectativas tenham certa relevância. O importante é que, criando-se uma nova moeda, podem-se estabelecer as regras de conversão de cruzeiro para cruzado, que são as regras para neutralizar a inflação no dia D. Por exemplo: a regra salarial foi extremamente simples e bem feita e transformou todos os salários em cruzados pelo salário médio real dos últimos seis meses. É muito mais fácil fazer isso transformando cruzeiros em cruzados. É fundamental que não haja ganhadores, nem perdedores, e a nova moeda é um grande instrumento para isso. É um instrumento para permitir essas conversões.

    Nesse processo, é preciso observar que, quanto menor a inflação, mais difícil é fazer com que o dia D seja neutro do ponto de vista distributivo. Quando existe uma inflação de 50 mil % ao mês ou de 30% ao dia - na Hungria a inflação era de 30% ao dia - as pessoas aumentam os seus preços a toda hora; de manhã é um preço, na hora do almoço é outro e à tarde é ainda outro. Então, em uma economia desse tipo, as defasagens nos aumentos de preços são mínimas. Escolhido um dia D para congelar tudo, o risco de haver desequilíbrios entre os preços relativos é mínimo. O caso brasileiro era diferente; nossa inflação era de "apenas" 360% ao ano; era "muito pequena" ainda. Em conseqüência, as defasagens entre os aumentos de preços eram muito grandes. Ficava, assim, muito mais difícil executar o choque heterodoxo, porque o perigo de haver desequilíbrio de preços relativos era bem maior.

    Algumas preocupações permanecem depois do choque. A maior delas é exatamente o fato de ser impossível que esse choque fosse totalmente neutro. Em relação aos salários, foi bastante neutro; mas nas relações interempresariais, ele não podia ser neutro. Algumas empresas haviam aumentado o seu preço no dia 26 de fevereiro, outras, dois meses antes. É claro que as empresas que aumentaram seus preços no dia 26 de fevereiro se saíram melhor, assim como aquelas que o fizeram no dia 1 ? de janeiro saíram muito prejudicadas em relação às primeiras. Então, temos um desequilíbrio distributivo importante. Além disso, há o problema dos "descontos financeiros". As empresas vendiam umas para as outras sem juros, a prazo, por determinado preço. É evidente que quando elas assim procediam, estava embutida nesse preço uma taxa de inflação. Ao acabar a inflação, seria razoável que se desse um desconto correspondente a essa taxa de inflação. O Governo resolveu não estabelecer nenhuma norma a respeito desse assunto. Os descontos terminaram sendo, em grande parte, insuficientes, de forma que vários setores, especialmente o varejista, foram bastante prejudicados. O setor atacadista também. Claro que isso exige uma série de complicados ajustamentos. Estes desequilíbrios são preocupantes. Estou de acordo com Yoshiaki Nakano de que não são insuperáveis, mas é evidente que há problemas distributivos importantes.

    Tivemos uma grande vantagem em relação à Argentina - que fez o choque antes de nós - porque estávamos com uma economia em expansão, o que permitiu que vários desses problemas pudessem ser resolvidos através do próprio processo de expansão da economia. Mas esses problemas relacionados com os desequilíbrios nos preços relativos não devem ser minimizados. O Governo, nessa matéria, não tem agido da forma mais correta. Ele acaba de criar um subsídio ao leite. Não devia ter feito isso. O Governo está pensando em baixar os impostos dos automóveis, porque é um setor que claramente está com seus preços atrasados. Ao invés de fazer o aumento do preço do automóvel, ou do leite, ao invés de procurar acertar os preços relativos e aceitar uma inflação ligeiramente superior a zero para fazer este acerto - o que seria perfeitamente razoável, desde que fosse feito de maneira bastante equilibrada e controlada -, o Governo está preferindo, num primeiro momento, dizer que nada muda neste País, como se o congelamento fosse eterno, e que nenhum preço, em hipótese alguma, pode ser aumentado. E depois, quando vê que não dá para agüentar isso, começa a criar subsídios. O esquema de subsídios, é claro, vai elevar o déficit público do Governo, que já está alto. E a situação vai-se tornar insustentável.

    O Governo vai ter que pensar, inclusive, em descongelamento; e antes de fazer o descongelamento é preciso que acerte, ajuste os preços relativos. Teoricamente, se ele quisesse que a inflação permanecesse zero, deveria aumentar os preços que estavam atrasados e diminuir os preços que estavam adiantados. É claro que diminuir os preços que estavam adiantados é muito difícil. Então, provavelmente ele teria que tomar aqueles preços fundamentais que estavam atrasados e, devagar, num prazo de no máximo seis meses, ajustá-los. Se o Governo ficar seis, sete, oito meses com os preços congelados e dando subsídios aqui e acolá, o que acontecerá, provavelmente, são dois problemas. De um lado, o seu déficit público vai aumentar fortemente; o que criará problemas de desequilíbrio no setor real e no setor financeiro.

    Um excesso de demanda faz com que os salários aumentem em termos reais ou que a margem de lucros aumente e aí teremos inflação. De outro lado, dado esse enrijecimento, o congelamento, que se mantém mais ou menos indefinido, em vez de diminuir as distorções dos preços relativos, passa a aumentar. Começa o suborno a nível de Governo ou a ineficiência pura e simplesmente, porque é impossível a ele controlar todos os preços. Com eficiência, ele pode controlar apenas alguns preços dos setores oligopolistas. E, afinal, ao invés de descongelar os preços através de uma política lenta, gradual e deliberada, como deve ser, o Governo os descongela de uma hora para outra, sob pressão, perdendo o controle do sistema. Aí, realmente, pode-se assistir a um aumento substancial da taxa de inflação. Ora, isto é algo com o que devemos tomar cuidado.

    Estas preocupações que manifesto não devem obscurecer um fato básico: o êxito do Plano Cruzado é indiscutível. É um enorme sucesso, e nada vai diminuí-lo. Não devemos, entretanto, perder o espírito crítico; temos que continuar a pensar, pois não resolvemos todos os problemas do Brasil com o Plano Cruzado. Continuaremos a ter gravíssimos problemas econômicos e sociais neste País, que teremos que resolver com a mesma competência com que resolvemos o problema da inflação.

    1 há o resultado é a aceleração da inflação. Se o Governo resolver fazer a chamada "inflação corretiva" - eliminando subsídios, liberando preços, corrigindo preços relativos - evidentemente provocará um choque de oferta e, portanto, uma aceleração da inflação. Entre as medidas de inflação corretiva, a de maior impacto inflacionário é a desvalorização cambial real, e a maxidesvalorização.

    O que o governo fez para controlar a inflação durante o Plano Cruzado?

    A solução encontrada pela equipe econômica formada por Sarney encontra-se noPlano Cruzado”, anunciado em fevereiro de 1986, cujas principais medidas eram: congelamento de preços; substituição da moeda corrente do país, do cruzeiro para o cruzado (daí o nome do plano); gatilho salarial, uma medida de aumento dos ...

    Quais foram as principais medidas de combate à inflação utilizadas no Plano Cruzado e no plano Collor?

    Congelamento de preços com avaliação pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPC). Criação do "gatilho salarial", um reajuste salarial sempre que o índice IPC passasse de 20%. Criação do seguro-desemprego. Fixação da taxa de câmbio em 13,80 cruzados por dólar.

    Quais foram as medidas tomadas no Plano Cruzado?

    As principais medidas tomadas pelo plano Cruzado foram: - A moeda corrente brasileira que era o Cruzeiro foi transformada em Cruzado, seguido de sua valorização (O cruzado valia 1000 vezes mais); - Congelamento dos preços em todo o varejo, os quais eram fiscalizados por cidadãos comuns (fiscais do Sarney);

    Qual foi a principal medida adota por todos os planos de estabilização da década de 80 Medida esta que sempre levou os planos ao fracasso?

    Congelamento de preços e outras medidas foram adotadas em uma tentativa fracassada de estabilidade econômica, que só viria anos mais tarde, em 1994.