Quais regiões do planeta mostra o maior debilidade de infraestrutura de cabos submarinos?

Por Florence Poznanski, diretora da ONG Internet Sem Fronteiras – Brasil

Dois anos após a primeira intervenção sobre o tema dos cabos submarinos no Brasil, Internet Sem Fronteiras – Brasil voltou para Cryptorave onde promoveu um debate correlacionando os cabos submarinos com  os bens comuns e a vigilância de massa em São Paulo, no dia 5 de maio.

O evento contou com a participação cerca de 70 pessoas e a intervenção de 4 especialistas do tema: Diego Vicentin (pesquisador do LABJOR/UNICAMP e membro da rede LAVITS), Ana Claudia Mielke (membro da coordenação executiva do Intervozes), Barbara Simão (pesquisadora no Instituto de Defesa do Consumidor – IDEC) e Florence Poznanski (diretora da ONG Internet Sem Fronteiras – Brasil). Os integrantes dessa atividade pretendem contribuir para dar visibilidade ao tema ainda pouco discutido com o intuito de sensibilizar a agenda pública.

Quais regiões do planeta mostra o maior debilidade de infraestrutura de cabos submarinos?

A infraestrutura é um objeto político

É preciso passar a problematizar as infraestruturas e torná-las visíveis para agir politicamente sobre suas funções em prol do interesse público. Na introdução do painel, Diego Vicentin ressaltou que uma infraestrutura é normalmente considerada como algo que é “tomado como dado” e que serve de base para uma série de práticas heterogêneas. Justamente por seu caráter basilar, uma infraestrutura geralmente passa despercebida pela pela maioria de seus usuários. Tal invisibilidade é utilizada como estratégia de poder pelas empresas e conglomerados transnacionais que gerenciam tais infraestruturas de maneira monopolista, como no caso dos cabos submarinos. Exercer controle sobre uma infraestrutura é o mesmo que, segundo Vicentin, fazer “política by design”, na medida em que se estabelece as condições de possibilidade de uma série de práticas cotidianas.

“É preciso dar visibilidade para os cabos para trazê-los para o espaço público e para agir politicamente sobre o modo que essas infraestruturas funcionam”, afirma. Por isso iniciativas como o Projeto Submarine Cable Map que mapeia cerca de 400 cabos no mundo tem o papel fundamental de dar mais transparência a essa infraestrutura.

Vicentin apresentou também duas iniciativas que, no campo das artes visuais, pretendem dar visibilidade e transparência aos cabos submarinos. Trevor Paglen capturou imagens dos cabos que, segundo as denúncias de Edward Snowden, foram interceptados pela Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) para fins de espionagem.  Essas imagens resultaram em exposição fotográfica e no filme documentário “Deep Web Dive” (2016). O segundo trabalho referenciado por Vicentin, o filme “A Tour of the AC-1 Transatlantic Submarine Cable”, de Lance Wakeling, foi lançado ainda em 2011 para denunciar o aparato de ocultação visual do cabo nas regiões litorâneas de ancoragem.

Um serviço público do backbone à última milha

Quais regiões do planeta mostra o maior debilidade de infraestrutura de cabos submarinos?
A reflexão sobre o papel político da infraestrutura, não se limita ao cabo no oceano. Da falta de distribuição dos cabos no mundo, concentrada em torno das relações estratégicas de poder entre Europa, Estados Unidos e Ásia do Sudeste, nasce a desigualdade do acesso e das tarifas de conexão.

Ana Claudia Mielke relatou um estudo do instituto Telegeography que mostra que o preço de um pacote de dados de 10Gb/s entre o Brasil e Buenos Aires é duas vezes mais caro que entre o Brasil e Miami. Ela também lembrou que só 54% da população brasileira esta conectada à Internet, mesmo via rede celular. “Precisamos pensar a cadeia de comunicação digital como um todo, do backbone que é a infraestrutura dorsal, ao backhaul que liga a espinha dorsal às redes periféricas e até a ultima milha que liga as redes periféricas ao cidadão”, frisa Mielke. Para isso é preciso descentralizar a repartição do acesso para reduzir a dependência com o backbone.

A experiência do ponto de troca de tráfego (IXP) operado pelo comitê gestor da Internet (CGI) permite aos pontos locais de acesso trocar dados entre eles sem depender diretamente das infraestruturas dorsais controladas pelas grandes empresas de telecomunicação. O espectro eletromagnético que hoje serve principalmente para radiodifusão também é um espaço em debate para que seja melhor aproveitado para a conexão internet sem fios. “Estão pensando maquinas inteligentes que possam aprender sozinhas a distribuir as ondas de conexão onde a demanda é maior” salienta Mielke.

Quais regiões do planeta mostra o maior debilidade de infraestrutura de cabos submarinos?
Mas, apesar disso, a falta de políticas públicas e de regulação travam o desenvolvimento da Internet no país e está sendo denunciada pela campanha “Internet é um direito seu” que foi lançada recentemente pelo Intervozes, IDEC e Internet Sem Fronteiras – Brasil, entre outras entidades da sociedade civil. As empresas privadas de telecomunicação não têm metas claras e não são fiscalizadas para universalização do acesso e se limitam a ofertar serviços nas regiões lucrativas. A privatização da faixa destinada à comercialização no satélite geoestacionário de defesa que está sendo distribuída principalmente para municípios da base aliada do governo pelo novo programa “Internet para todos” é mais um aspecto preocupante da perda de soberania do Brasil. Outra ameaça é o PLC 79 que muda a lei geral de telecomunicações (LGT) e dispensa as empresas de ofertar o serviço de internet em regime público dando uma simples autorização de operar a infraestrutura sem contrapartida nem concessão.

Uma vulnerabilidade que necessita maior controle público

Além de ter suas capacidades mal aproveitadas pelos consórcios de telecomunicação que conectam backbone e backhaul o que reduz a universalização do acesso, os cabos também são alvos de vários ataques. Barbara Simão lembra que desde a rede de cabos telegráficos, as empresas privadas encabeçaram essa gestão e os Estados nunca conseguiram ter uma atuação estratégica. A primeira convenção sobre os cabos e os telégrafos em 1884 tratou principalmente da proteção física dos cabos e não de sua importância geopolítica. Depois, em 1958, a Convenção das Nações Unidas em Genebra sobre o direito do mar não compensou todas as lacunas de legislação internacional que existem sobre os cabos e até hoje não há uma organização específica que gerencia isso.

Porém, cabos são constantemente alvos de ataques. Cerca de 300 por ano, mesmo que pela maioria não intencional (pesca ou ancoragem). Florence Poznanski ressalta o caso do Camarões onde o cabo foi literalmente cortado durante mais de três meses, desconectando totalmente a região e causando danos econômicos avaliados a milhões de dólares por dia. Além disso, os cabos não são consideradas como alvos civis para serem protegidos em caso de conflito por exemplo.

Por fim, os cabos são sujeitos a espionagens cibernéticos. Edward Snowden revelou o programa Quantuminsert da NSA (Nacional Security Agency) que interceptou os dados que navegam nos cabos de maneira totalmente invisível a partir do hackeamento dos computadores dos funcionários das operadoras de telecomunicações. Para Simão, essa alta vulnerabilidade justifica ainda mais que a governança desses cabos seja pautada na opinião pública e que processos de regulação transparentes possam ser implementados. Essa ausência de regulação tem um impacto direto sobre a concentração mundial que cria uma nefasta dependência do Sul na conexão com o Norte.

Um modelo inovador de governança do cabo EllaLink

O Brasil possui atualmente 8 cabos submarinos, em sua maioria conectados com os Estados Unidos. 7 novos cabos são em construção para serem operacionalizados em 2019 o que aumentará a potência de acesso à banda larga do Brasil de 526 Tb/s. Entre esses, o cabo EllaLink é um dos dois cabos que não passa pelos Estados Unidos e conectará Fortaleza e Santos diretamente a Portugal. Simão e Poznanski apresentaram o caráter inovador de sua governança que precisa ser melhor divulgado e conhecido para que seja efetivado de fato.

De acordo com os dados levantados pela Internet Sem Fronteiras, o EllaLink terá um modelo dual de governança dividido entre uma parte destinada a comercialização que será operado pelas empresas de telecomunicação e outra destinada à usos sem fins lucrativos onde há amplo investimento por parte das redes acadêmicas europeias (GEANT) e latino-americanas (RedClara). Florence Poznanski explica que, ao planejar em 2002 um programa pluri-decenal de troca de dados em volta ao observatório de astronomia do Paranal no Chile, essas redes avaliaram que a construção de um cabo submarino seria mais apropriada de que depender de acordos comerciais com as empresas de telecomunicações que praticam tarifas muito elevadas.

Essas entidades sem fins lucrativos beneficiam de um direito de uso irrevocável durante 30 anos, a duração de vida do cabo. Tal direito não é exclusivamente limitado aos órgãos acadêmicos o que abre um interessantíssimo debate sobre a garantia do direito universal e fundamental de acesso à Internet que precisa urgentemente ser aprofundado.

“No final do século 19 um dos primeiros tratados de livre comércio na Europa foi para acabar com a propriedade privada dos rios e as taxas de alfândega para considerar os rios como bens comuns de livre circulação para todos”, lembra Poznanski, “hoje as infraestruturas de comunicação são os novos rios do conhecimento e precisamos urgentemente reconsiderar a maneira com a qual são gerenciadas trazendo elas para esfera pública”.

Tags: America Latina, Amérique Latine, Brazil, Digital Rights