Como a população dos usa votam

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Trump ameaça cruzar a linha vermelha do processo democrático

Não é uma eleição, são 50. É o que costumam dizer os cientistas políticos ao explicar o processo de escolha dos presidentes norte-americanos, que além disso coincide com a renovação de parte do Congresso e às vezes com consultas locais, tudo no mesmo dia. O sistema federal permite que cada um dos Estados do país, mais o Distrito de Columbia, estabeleçam suas próprias regras, que afetam desde os prazos e a maneira como os cidadãos podem votar até a possibilidade de interromper a apuração em um determinado momento.

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A este cenário marcado pela complexidade se somou neste ano uma pandemia que transformou o voto pelos correio em protagonista e provocou uma demora na apuração em alguns eleitorados cruciais. A ausência de um resultado final em Estados decisivos dias depois do fechamento das urnas deixa o resto do mundo tentando entender como funciona este processo, em que não ganha o candidato que tiver mais votos, e sim aquele que reunir o apoio majoritário no Colégio Eleitoral. A principal incógnita é por que desta vez está sendo tão devagar.

Neste ano, a pandemia mudou as regras do sistema eleitoral em vários Estados. Para incentivar a participação e dar segurança aos cidadãos, a maioria dos territórios flexibilizou os requisitos para emitir o voto por correio, sem necessidade de apresentar uma justificativa. Isto se traduziu em que quase 64 milhões de eleitores enviaram sua cédula por correio ou a depositaram na caixa de uma seção eleitoral. Somados a quem compareceu presencialmente a seções abertas antecipadamente, são mais de 100 milhões de norte-americanos votando antes da data oficial, uma cifra nunca vista na história deste país. Quase 60 milhões o fizeram de forma presencial.

Mas para encarar essa enxurrada de votos tampouco há regras unificadas. Os Estados adotaram medidas diferentes para lidar com eles. A Carolina do Norte, por exemplo, começou a apurar os votos antecipados semanas atrás. Já na Pensilvânia, um dos Estados que concentram os olhares nos últimos dias, a lei estadual determina que os votos antecipados só podem começar a ser apurados no dia da eleição, e por isso na tarde de quarta-feira ainda havia quase um milhão de cédulas por apurar. O voto por correio faz a apuração demorar mais porque ele precisa passar por vários passos antes do escrutínio: um funcionário eleitoral precisa abrir o envelope, e há uma revisão exaustiva para garantir sua validade. Também há Estados, como a Geórgia e o Arizona, onde o cidadão que tiver o voto postal rejeitado pode comparecer à sua zona eleitoral e fazer uma correção durante os primeiros dias da apuração.

Margem estreita

Com o país terrivelmente polarizado e o presidente falando em fraude, os centros eleitorais dos Estados que ainda não concluíram a apuração tiveram especial cuidado no processo para evitar situações irregulares, o que, somado à maré de cédulas recebidas por esta via, terminou por retardar todo o processo. Esses votos precisam passar por vários passos antes de serem incluídos no escrutínio, incluída a revisão dos funcionários eleitorais para que garantam sua validade.

Porém, a lentidão não pode ser atribuída apenas à maciça participação antecipada. Durante grande parte das eleições do século XIX, eram necessários dias, ou mesmo semanas, para que o ganhador fosse conhecido. E nem é preciso ir tão longe. Nas eleições presidenciais de 2000, o ganhador só foi anunciado em 12 de dezembro, mais de um mês depois da data da votação. Naquele ano, a diferença entre o republicano George W. Bush e o democrata Al Gore na Flórida era tão estreita que a disputa acabou em uma intensa batalha judicial, que acabou dando a vitória ao primeiro.

Outro fator particular dos Estados Unidos é que não existe a figura de uma instituição responsável por anunciar resultados, como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no Brasil. A população não fica atenta aos anúncios da Casa Branca sobre a participação e a apuração, e sim ao que têm a dizer os secretários de cada Estado. Depois de anunciar o vencedor, a lei federal exige que os governadores preparem “assim que possível” os certificados oficiais para informar sobre o voto popular no Estado. Os documentos com os resultados em cada território são enviados ao presidente do Senado e ao Arquivo Nacional até 23 de dezembro. O escrutínio oficial também é apresentado ao novo Congresso eleito —uma parte é renovada a cada dois anos—, que se reunirá em uma sessão conjunta em 6 de janeiro de 2021 e anunciará os resultados.

Durante décadas, discutiu-se sobre alterar o sistema para eleger o presidente por voto direto em âmbito nacional. Em uma pesquisa do Gallup publicada em setembro, 61% dos norte-americanos se mostraram a favor de eliminar o Colégio Eleitoral. Entretanto, a proposta divide: 89% dos democratas apoiam a ideia, contra 23% dos republicanos. A enorme disparidade se explica porque estes últimos se beneficiam da influência eleitoral exercida por Estados rurais menos povoados, que costumam favorecer os conservadores.

Quando os norte-americanos dão seu voto, marcando um candidato presidencial e seu vice, na verdade estão elegendo os representantes estaduais designados pelos partidos políticos. São os chamados delegados, que depois votam no presidente, sendo todos eles ligados ao candidato mais votado no Estado. Esta regra do winner takes all (o vencedor leva tudo) se aplica em todo o país, exceto no Maine e Nebraska. Cada representante é um voto eleitoral. Para chegar à Casa Branca, são necessários 270 dos 538 votos em jogo.

Como norma geral, o peso de cada Estado tem relação com o tamanho de sua população. A Califórnia, por exemplo, onde vivem 40 milhões de pessoas, tem 55 votos eleitorais, enquanto Nevada, com três milhões de habitantes, leva 6 votos. Mas com este sistema pode acontecer de um candidato ganhar no voto popular e perder no Colégio Eleitoral, como ocorreu com Hillary Clinton em 2016 contra Donald Trump, e em outras pode obter menos de 50% do voto popular, mas ficar com a presidência, como John F. Kennedy em 1960. O número de votos eleitorais de cada Estado não muda se mais ou menos pessoas votarem.

Com a regra de que cada Estado tem pelo menos três votos eleitorais, muitos criticam a representação excessiva de Estados quase despovoados. Wyoming, por exemplo, que mal supera meio milhão de habitantes, tem três votos eleitorais. Com isso, seus eleitores têm uma influência maior nas eleições que os de zonas densamente povoadas, como a Flórida e Nova York, ambos com 29 votos eleitorais.

Umas das eleições mais acirradas nos últimos anos nos EUA também bateu um recorde histórico, segundo o US Elections Project, com 160 milhões de votantes. Se o número se confirmar, terão votado 67% dos norte-americanos aptos a fazê-lo. O percentual pode parecer baixo se comparados, por exemplo, com os do Brasil, onde quase 80% dos 147 milhões de eleitores votaram em 2018. Mas é preciso lembrar que nos Estados Unidos, diferentemente do Brasil, o voto não é obrigatório.

Desde o início do século passado, o comparecimento às urnas jamais chegou a 70% do eleitorado. Estima-se que, neste ano, 239,2 milhões dos 328,1 milhões de norte-americanos estejam aptos a votar (são cidadãos e maiores de idade).

Na eleição passada, uma das que mais atraíram eleitores nas últimas décadas, 59,2% foram às urnas escolher entre Donald Trump e Hillary Clinton. Com Barack Obama e John McCain, em 2008, foram 57,1,%.

Na fatídica eleição de George W. Bush em 2000, que precisou da Suprema Corte, apenas metade dos norte-americanos votou (ainda assim, índice maior do que a baixa história, em 1996, quando 49% participaram da disputa entre o democrata Bill Clinton, o republicano Bob Dole e o independente Roos Perot). Os percentuais tendem a ser ainda mais baixos quando um dos candidatos é um presidente que tenta a reeleição.

Na contracorrente, a disputa entre Donald Trump e Joe Biden pode vir a ser a que mais atraiu eleitores desde que William McKinley e William Jennings Byran se enfrentaram em 1900 (McKinley seria assassinado no ano seguinte e substituído pelo vice, Theodore Roosevelt).

Naquele ano, votaram 73,7% dos eleitores, mas o grupo excluía mulheres, cujo direito ao sufrágio só seria conquistado quase 19 anos depois - ou seja, se olhada a proporção dos votantes na população total, a de hoje é muito maior. Há dois motivos para essa hiper participação em 2020.

O primeiro é a crescente polarização da sociedade americana. O medo e a raiva do outro, do adversário, foi novamente um dos combustíveis da campanha, alimentado pela circulação de informações falsas e pela sensação de que a política política de turno, cada vez mais, tende a excluir aqueles que não se alinham a ela.

O segundo é a possibilidade de votar pelo correio ou de forma presencial antecipadamente, alargada e incentivada por causa da pandemia do novo coronavírus, a fim de evitar aglomerações em sessões eleitorais em um país onde mais de 230 mil já morreram em decorrência da Covid-19.

A maioria dos eleitores, aliás, preferiu essa modalidade: segundo o US Elections Project, foram 100,3 milhões de votos antecipados. Nos EUA, o dia da eleição, sempre na primeira terça-feira de novembro, não é feriado. Os empregadores não têm obrigação de dispensar seus funcionários, e nem todos compensam o dia de trabalho.

Por isso, votar nos EUA muitas vezes é uma questão de cálculo financeiro, uma conta entre a diferença que o cidadão acha que o voto dele fará e o custo de se perder um dia de trabalho ou se locomover até uma sessão eleitoral nem sempre próxima, especialmente em locais menos populosos. Esta, aliás, é uma das contas que os grupos políticos fazem quando tentam desestimular o potencial eleitorado do oponente de ir até as urnas. Removida a amarra de se estar na sessão eleitoral em um determinado dia útil, muito mais pessoas decidiram participar do processo.