Alguém pode deixar de cumprir a lei alegando que não a conhece?

A presunção do conhecimento obrigatório da lei foi uma construção legislativa com base no princípio da segurança jurídica, princípio esse esculpido na Constituição Federal e com guarida no Estado Democrático de Direito.

“Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando o seu desconhecimento.”[i]

Interpretando à risca o artigo 3º da Lei de Introdução ao Codigo Civil extrai-se que, depois de publicada, a lei passa a ser obrigatória para toda a coletividade, e ninguém poderá furtar-se de seu cumprimento mesmo sob a alegação de erro ou ignorância, ou seja, mesmo sob a alegação de desconhecimento da lei.

Essa presunção absoluta de que todos conhecem a lei é algo que colide com a realidade social brasileira, senão vejamos. A presunção legal é um método tradicional romano[ii], quase necessário ao sistema positivista, que serve ao legislador como uma maneira de enfrentar com celeridade as indeterminadas e repetidas questões do direito, impondo, através do juizo de probabilidade ou dedução um determinado fato como verdadeiro, considerando a generalização de como um evento se desenvolve. A presunção legal  pode ser absoluta (juris tantum) ou relativa (juris et de jure).

A presunção do conhecimento obrigatório da lei foi uma construção legislativa com base no princípio da segurança jurídica, princípio esse esculpido na Constituição Federal e com guarida no Estado Democrático de Direito. O grande obstáculo, todavia, é a imposição dessa regra a uma sociedade pluralista, com baixo nível de instrução junto a complexidade da linguagem jurídica adotada. Ademais, mesmo aos acadêmicos do direito, não há, nem mesmo entre os doutrinadores mais aperfeiçoados, quem seja capaz de conhecer por inteiro o extenso universo das leis municipais, estaduais, federais ou dos tratados internacionais ou convenvções, sem falar nas cotidianas normas infralegais emitidas pela Administração Publica, como portaria, pareceres normativos, resoluções, entre outras.

Ao contrário da grande parcela de leis penas editadas, as normas civis ou da Administração Pública em geral não se popularizam de igual modo, pois não estão inseridas no consciente coletivo como aquelas, até por não se utilizar dos padrões que facilitam a dissiminação como interesse temático, a simplificação linguística e a durabilidade da norma.

A realidade se torna ainda mais crítica, quando observamos que nem mesmo essa intensa produção legislativa é capaz de resolver todas as situações sociais, haja vista a sua indeterminalidade, o que sem sombra de dúvidas está levando, a cada dia mais, a adoção de normas gerais abertas e da utilização preferencial de princípios jurídicos às leis.

Os avanços científicos, a revolução cultural e a valorização humanista a que passou o século XX está inteiramente ligado a decadência do modelo positivismo puro e a adoção de normas abertas, pautadas no desenvolvimento dos valores fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana. Contudo, essa utilização direcionada das novas leis editadas não deve ser utilizada pelos operadores do direito como argumento de ocasião, o que tem levado a reinar certa insegurança e descrédito face o novo modelo jurídico.

Por outro lado, diante dessa transição, a tendência é que ocorra uma diminuição na produção exagerada da leis. Mas até lá permanece a pergunta: pode a imposição do conhecimento da lei ser tida como relativa? Muitos dirão que não, por que se assim for vista poderia levar a estimulação das transgressões, além de gerar certa instabilidade social.

A publicação excessiva das normas e sua complexidade de linguagem[iii] colidem com o principio da obrigatoriedade das leis.  O formalismo jurídico levado ao extremo bloqueia a comunicação com a população e torna-se antidemocrático, não permitindo que a mensagem chegue com clareza e, muita das vezes quando chega é substituida (revogada) por outra antes mesmo da sedimentação social. Exemplo classíco é o caso da legislação formal e material do imposto de renda, que a todo ano causa incerteza e sofre mudanças, gerando incerteza no seu recolhimento adequado.

É de bom alvitre lembrar que muitos invocam o erro de direito como meio de escusa a obrigatoriadade da lei, defendem, desse modo, que não se trata de ignorância ao conhecimento da lei, mas dos efeitos legais da sua inobservância, observada a boa-fé. O que não livra das consequências de sua inobservância, pois é meio exclusivo de anulação de algum ato negocial realizado em decorrencia do desconhecimento legal.

Do mesmo jeito que a segurança jurídica é importante para a democratização, antes de tudo devemos nos ater sobre a realidade social da população, que muita das vezes não tem acesso ao “mundo normativo” seja pessoalmente ou por intermédio de um especialista no direito. Ao tornar essa obrigatoriedade absoluta é visível a conclusão de violação de outro príncípio igualmente tutelado pela nossa Carta Política, como o da igualdade substancial (intrínsico ao valor da dignidade da pessoa humana).

Em suma, pode-se até deduzir que a construção do nosso Estado Democrático de Direito, a luz da Constituição Federal, tem como fundamentos a dignidade humana, a igualdade (substancial) e a solidariedade social. Igualdade que deve ser conjugada junto ao princípio da diversidade, uma vez que as pessoas não detêm idênticas condições sociais, econômicas ou psicológicas[iv], dando lugar a uma igualdade substâncial, em respeito as diferenças, que convenhamos, no caso do Brasil é patente.

Analisando o tema, salientou FACHIN[v] “tratar com desigualdade a iguais, ou desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante e não igualdade real”. Esse princípio não deve ser utilizado apenas para regular as relações pessoais, mas também pelo Estado visando construir uma sociedade mais livre, justa e solidária. Tanto o é, que realiza diversas políticas públicas de afirmação para tentar conter essa desigualdade social, como por exemplo, as cotas raciais.

Fica então a incerteza quanto a regra geral de obrigatoriedade do conhecimento da lei não-penal. Deve o Estado, manutedor de tantas políticas afirmativas que ratificam o seu conhecimento a cerca da desigualdade educacional e econômica nacional, continuar a impor sanções pela ignorancia de leis àqueles que se utilizando da boa-fé, sem domínio do linguajar jurídico, agem com a certeza de não estar fazendo algo proibido pela lei, quando de fato estão? A exceção de casos de gritante ilegalidade, não seria justo que agisse assim, pois o princípio fundamental do Estado Democrático de Direito é garantir o pleno desenvolvimento do ser humano e tutela-lo em suas mais essenciais manifestações, e para conseguir isso, em primeiro lugar, é preciso encarar a reali

Referências

[i] Art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.

[ii] GUSMÂO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

[iii] DOTTI, René Ariel. A linguagem acessível para a boa informação. O oportuno guia da A Juris para descomplicar. Direito e Justiça.

[iv] MORAES, Maria Celina Bodin, Os Princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2000.

[v] FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro, Renovar, 2000.



A Constituição da República de 1988 estabeleceu princípios que devem nortear a conduta e a atuação dos ocupantes de cargos e funções públicas, incluindo-se os conselheiros (as) dos conselhos municipais de políticas públicas.


Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...].


Vamos compreender melhor como esses princípios podem ser garantidos na prática da administração e dos serviços públicos.


Legalidade – o princípio da legalidade impõe ao agente público o dever de agir em estrito cumprimento as disposições da lei. Logo, aos cidadãos, na esfera particular, é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe, enquanto ao agente público só é permitido agir dentro daquilo que a lei determina. Sobre esse princípio é destacar que no Brasil, ninguém pode, com relação à lei, alegar desconhecimento. De acordo com o art. 3º, da Introdução ao Código Civil: “Ninguém se escusa de cumprir a Lei alegando que não há conhece”.

Um conselheiro precisa conhecer bem as leis da área em que atua, sobretudo as de caráter nacional e do seu município. É importante também conhecer os atos emanados (indicações, pareceres, resoluções) do conselho congênere ao que pertence no âmbito nacional.

Impessoalidade – a impessoalidade na Administração Pública é um princípio extraído das contribuições de um importante pensador das Ciências Sociais, chamado Max Weber. Para Max Weber a impessoalidade é uma forma, ou um modo particular de ser da burocracia pública. Dentro do aparelho do Estado, não pode existir acepção de pessoas, não pode ocorrer diferenciação de grupos (CURY,2005). A impessoalidade significa que no âmbito da Administração Pública não pode ocorrer nenhum tipo de privilégios.

Cabe lembrar que a impessoalidade na Administração Pública não significa tratar as pessoas de forma fria, distante, ou sem cordialidade. A pessoalidade e a impessoalidade, no trato da vida privada, tem um sentido e no trato da coisa pública apresenta outro sentido. Na vida privada valoriza-se a pessoalidade enquanto a Administração Pública, no seu funcionamento, exige a impessoalidade que significa tratar a todos com igualdade.

O princípio da impessoalidade é, muitas vezes, quebrado por perseguições políticas, pelo tráfico de influência ou pelo clientelismo e assistencialismo político (SIRAQUE, 2009).

Moralidade – esse princípio adentra no resguardo dos bens públicos e no combate à corrupção financeira ou moral. A observância ao princípio da moralidade se torna mais sensível nos órgãos que lidam com o dinheiro público e que podem praticar atos (imorais) que tenham a ver com tráfico de influência ou malversação de dinheiro público. A moralidade se aplica também a atos que signifiquem, por exemplo, assédio de qualquer natureza para obtenção de vantagens ou a prática de colocar o bem público a serviço do interesse individual (CURY, 2005).

Publicidade – quando delegamos uma atribuição ou responsabilidade a outro, para a realização de uma determinada função, como no caso da democracia representativa, essa delegação geralmente implica em uma assimetria de informações. Quando, por exemplo, delegamos a responsabilidade pelo conserto de um veículo a um mecânico que possui os conhecimentos especializados para tal função, este passa a ter conhecimentos privilegiados de que não dispomos, pelo desconhecimento do trabalho. Assim, pode agir de forma a se beneficiar dessa situação. Para evitar essa assimetria de informações, uma das marcas da Administração Pública deve ser a transparência. É dar publicidade dos atos praticados. O princípio da publicidade demonstra que não pode existir segredo na Administração Pública, a não ser em relação às informações que coloquem em risco à segurança do Estado e da sociedade. Nesse caso específico, é necessário que exista uma lei definindo as informações sigilosas e, mesmo assim, por prazo determinado (SIRAQUE, 2009).


Alguém pode deixar de cumprir a lei alegando que não a conhece?
Alguém pode deixar de cumprir a lei alegando que não a conhece?