Quem foi John Cage e quais foram as suas contribuições para o surgimento da música aleatória?

A música da mudança em cinco fragmentos, por Gabriela Garcia

Quem foi John Cage e quais foram as suas contribuições para o surgimento da música aleatória?

Sinto que estamos indo a lugar nenhum, e isso é um prazer.

John Cage

John Cage (1912–1992) foi uma figura proeminente no campo da música experimental norte-americana, a personagem de maior destaque da chamada Escola de Nova Iorque e seu mais prolífico escritor. Marco de mudança nas concepções estéticas, sua influência sobre gerações seguintes é inegável, não somente pela sua obra musical, mas também por seus escritos e, o mais encantador, pela sua personalidade.

Nesta série da Zumbido, além deste texto introdutório serão apresentados mais quatro textos falando de questões referentes a Cage: sua relação com a Escola de Nova Iorque, com a Música Experimental e a Avant-Garde, com o Zen Budismo, e finalmente sua discutida relação com o silêncio, que levariam aos sons não intencionais, à indeterminação e ao uso do acaso. Esses textos nasceram da tradução de uma seleção de textos de autoria do próprio Cage.

De gênio a charlatão, passando por enfant terrible, John Cage foi uma figura notória e arcou com muitos rótulos. Ainda assim, foi principalmente um compositor. Estudou áreas diversas e fez incursões pela micologia, pelo xadrez, pelas artes visuais e pela escrita — para benefício dos que querem compreender sua obra. Nos escritos, assim como na música, Cage de fato faz o que prega: explora a linguagem, faz poesia, cria palavras, usa o acaso e até rompe com a sintaxe. Ele dizia: “agora eu escrevo às vezes com sintaxe e às vezes sem”. Mas no Brasil, à exceção de De Segunda a Um Ano, traduzido por Rogério Duprat e revisado por Augusto de Campos, praticamente não há traduções.

Polêmico, às vezes até mesmo acusado de impostor, sobre Cage chegou-se mesmo a perguntar se o que ele fazia é de fato música, mas além de levar em conta sua formação como compositor (estudou com Cowell, Weiss e Schoenberg) e suas obras de um primeiro período anterior ao uso do acaso, reconhecidas e inclusive aplaudidas, também temos que considerar que seus métodos de composição e suas experiências não são infundados — há um embasamento para suas experimentações. Quando Cage começa a usar o acaso, as coisas se complicam do ponto de vista da análise e da crítica, e alguns críticos chegam a não mais considerá-lo músico. Se é que isto ainda precisa ser dito, não é esse o caso.

Alguns estudiosos dividem a obra de Cage em fases. Charles Hamm separa as obras, genericamente, em cromáticas; para dança, percussão e piano preparado; com influência do Zen e uso do I Ching e acaso; e de tape (fita magnética), teatro e indeterminação. Paul Griffiths divide os capítulos em estudos cromáticos, sistemas rítmicos (equivalentes ao que o outro autor classifica como período de percussão), e a partir daí em silêncio, “além da composição” — aproximadamente a partir de Music of Changes — e “além da música (e de volta)” — a partir de Variations I, de 1958.

Seria mais fácil e conveniente poder dizer que tudo aconteceu de forma linear, cronológica, com poucas superposições; que o Zen veio antes do silêncio, por exemplo. Porém, como nos períodos da História da Música, não é assim que as coisas acontecem na obra e no pensamento de Cage: uma ideia não é tanto causa de outra quanto na verdade concomitante, superposta ou complementar a ela. Se podemos marcar seus primeiros contatos com a filosofia oriental já em 1938, pelas suas próprias palavras não podemos atribuir somente a isso tudo o que veio depois; se em 1948 Cage já cogitava uma peça silenciosa, ela não se concretizou até 1952; se vemos o acaso como a porta para a inclusão de todos os sons, não podemos esquecer que em 1936 ele já se entusiasmara com o potencial vibratório de cada objeto, com os ruídos. Nesta série de textos, começo então pelo contexto da Escola de Nova Iorque e das distinções entre a Música Experimental e a avant-garde, passando então para a filosofia oriental, não por vê-la como causa, mas porque cronologicamente é um bom ponto de partida, e porque o Zen parece impregnar ou estar refletido em boa parte de peças e escritos.

Quem foi John Cage e quais foram as suas contribuições para o surgimento da música aleatória?

Em 1945 assistira a palestras de Daisetz Suzuki na Universidade de Columbia, aprofundando um interesse que já tinha pelo Zen Budismo. Entre 1946 e 1947, Cage dedicou-se a um estudo geral sobre o pensamento oriental, e depois passou três anos de ainda maior aperfeiçoamento, fazendo cursos com Suzuki, até 1951.

Depois de ter tentado sistemas matemáticos, foi no Zen Budismo que Cage encontrou respostas para suas inquietações como compositor e como pessoa, aceitando a ideia de que o propósito da música é aquietar a mente, e que a responsabilidade do artista é imitar a natureza em seu modo de operação. Nos fundamentos do Zen encontramos conceitos semelhantes aos que Cage explorou em sua obra, como o humor, a atenção ao cotidiano, o desapego (de resultados, preferências, hábitos…), a superação das categorias intelectuais ou dualidades, a ênfase na experiência direta, a importância do silêncio.

Silêncio e som eram para Cage o material da música, um coexistente oposto e necessário do outro. Ambos compartilham um só parâmetro musical, a duração, e por isso, em dado momento, Cage decidiu basear suas peças em uma estrutura rítmica que abrangesse ambos, uma estrutura a ser preenchida por eles.

Mas Cage teve uma experiência na câmara anecoica de Harvard, uma sala à prova de som, desenhada para que os sons aí feitos sejam absorvidos e não reverberem. Lá, apesar disso, Cage ouviu dois sons: um grave e um agudo. O engenheiro encarregado explicou que o agudo era o sistema nervoso em operação, e o grave, o sangue em circulação. Essa experiência teve o impacto de um koan (uma questão inacessível para a razão) sobre Cage, que se não obteve o satori, a iluminação espiritual, pelo menos passou por uma radical mudança de visão, ao constatar que o silêncio é impossível: não existe essa coisa de espaço vazio ou tempo vazio — sempre há algo.

Quem foi John Cage e quais foram as suas contribuições para o surgimento da música aleatória?

Câmara Anecoica da Harvard | Foto: Thomas Howells

O contato com o Zen, com a câmara anecoica e com as telas brancas do artista plástico Robert Rauschenberg levou Cage a retomar uma ideia que ele tinha posto de lado, a peça silenciosa: não como uma prece, como tinha pensado primeiramente, e sim uma composição com um título que expressasse uma duração ditada pelo acaso em minutos e segundos, quatro minutos e 33 segundos, a peça 4’33”, uma estrutura totalmente preenchida por silêncio, que mostraria a todos que na verdade ele não existe e há somente sons. Com perdão do trocadilho, a peça teve a estrondosa repercussão que já sabemos.

Desde muito antes, Cage explorava os ruídos, se entendidos apenas como sons de vibrações irregulares, o que no cotidiano chamamos também “barulhos”. Nos concertos para conjunto de percussão usando garrafas, folhas de flandres ou uma lata de lixo, instrumentos bem “pouco acadêmicos”, ele já explorava uma gama maior de sons do que outros compositores. Mas o silêncio também abria as portas para os ruídos no sentido dos sons não intencionais, não pretendidos, que acontecem até sem que se queira.

E para além disso: abrir a porta a todos os sons (sem abandonar os musicais) não era suficiente para Cage. Também era necessário deixar os sons serem eles mesmos, apenas expressando suas características morfológicas, e não servindo a uma ordem, expressando teorias ou sentimentos humanos (mas reconhecendo em seus escritos que nem por isso somos incapazes de tê-los). Devemos abrir mão do controle: o compositor sem forçar os sons a nada, o ouvinte sem fazer projeções — ou pelo menos distinguindo o que é uma projeção própria.

Cage quer que ouçamos cada som, sem relacioná-lo com um referencial fora dele (como era a intenção, por exemplo, na música programática, aquela especialmente do século XIX, que quer evocar imagens, ideias, paisagens ou cenas, estados de ânimo) nem com os outros sons (em uma relação de hierarquia/subordinação, como é típico da música tonal) — nisso o silêncio também foi útil, ajudando, junto com a ruptura com a harmonia tradicional que já estava em voga, a isolar os sons musicais e assim dissolvendo a cola entre eles.

Quem foi John Cage e quais foram as suas contribuições para o surgimento da música aleatória?

Se havia uma abundância de sons e Cage queria deixar que eles fossem eles mesmos, o próximo passo para abrir mão do controle seria encontrar uma forma de “organizar” tudo isso, de compor sem controlar ou limitar. O meio ideal foi o acaso.

O acaso cumpre várias funções simultaneamente. Atende, primeiramente, aos desejos iniciais de Cage de imitar a natureza em sua forma de operação (ao menos da forma em que ele entendia a operação da natureza). Ao mesmo tempo, sons “escolhidos e ordenados” ao acaso não são realmente ordenados por nenhuma hierarquia, descartando, portanto, qualquer tipo de subordinação entre eles ou a referências externas. O acaso permite inclusive ampliar o repertório sonoro, no sentido de dar lugar a sonoridades por meio da combinação de parâmetros que nem o próprio Cage teria imaginado.

Finalmente, o acaso elimina também o que Cage queria eliminar em todos nós: os gostos e aversões, os hábitos e a memória, as preferências e os preconceitos. Ele esvazia — silencia — a mente de tudo isso (como se quer na meditação Zen), impedindo assim a exclusão de possibilidades, desde que aceitemos seus resultados — o que Cage estava certamente disposto a fazer. Ainda na linha do Zen, o acaso serve para ir além dos pares de opostos que usamos para pensar, tentando simplificar experiências complexas. Sobretudo, o uso do acaso está em perfeito acordo com a definição de Cage de música experimental: não sabemos quais serão os resultados. Sem saber quais resultados serão obtidos, a música é verdadeiramente experimental, e não somente uma música com elementos “novos”. E o acaso (no sentido amplo, incluindo indeterminação — a música com elementos decididos pelo intérprete no momento da performance) também garante a novidade.

Em suma, o acaso cumpre ao mesmo tempo o que para alguns era o objetivo primordial de Cage, ampliar o repertório sonoro abarcando todos os ruídos possíveis, e também o objetivo que outros consideram o mais importante: eliminar qualquer traço da personalidade do compositor. O objetivo ulterior era abraçar todos os sons deixando que eles fossem eles mesmos, que sejam o que são, que possam ir para onde quiserem e que nós os ouçamos apenas como eles são em si.

E apesar de tudo isso, os métodos de Cage não são uma forma de descaso, um grande vale-tudo, e requerem disciplina para serem executados. Mas para Cage, os sons são um aspecto da existência no qual não precisamos de julgamentos de valor. A introdução do acaso em sentido amplo, a abdicação do controle quanto aos resultados, essa falta de ênfase no julgamento desses resultados (que muitos chamaram de falta de discernimento) foram os elementos que abalaram o próprio conceito tradicional de obra musical — e Cage não parecia nem um pouco preocupado por colocar esse conceito em xeque. Ele diria que “música”, dependendo de como a definimos, é só uma palavra, e se ela é “sagrada e reservada para instrumentos dos séculos XVII e XVIII, podemos substituí-la por uma expressão com mais significado: organização do som”. Anos depois de referir-se à organização dos sons, na apresentação de Water Walk (1959), no programa de televisão I’ve got a Secret, Cage se apresentaria como compositor dizendo: “eu produzo sons”.

John Cage interpreta “Water Walk” em Janeiro de 1960 no popular programa de TV "I’ve Got A Secret."

Vale dizer que ele não tinha como objetivo destruir o conceito de música. Para ele mesmo, a proposta era na verdade inofensiva, mas Cage tinha plena consciência do impacto de sua proposta para o público em geral e para muitos críticos. O significado é parte de um texto ou de uma música na medida em que atua sobre a inteligência de uma forma previsível, e “previsível” é a palavra-chave aqui. Ao ser imprevisível, uma peça desse tipo de Cage teria que ser compreendida dentro de uma grande situação cultural, incluindo uma extensa história da cultura ocidental, e dificilmente poderia ser compreendida por si mesma. É por isso, por eliminar (ou diminuir) repetições e padrões, por não ser previsível, nos termos de Cage, pelo acaso e indeterminação, que sua música foi tão criticada e é tão inacessível se a explicação não vier junto. Mas em última instância, a explicação é que Cage não quer mandar uma mensagem e sim que simplesmente ouçamos com atenção.

Nas palavras de Cage: nova música, nova forma de ouvir, “apenas uma atenção à atividade dos sons”. Assim como no Zen, a experiência deveria ser direta, e não necessariamente intelectual. Se ouvir os sons é simplesmente ouvi-los, como quem aprecia a natureza, o julgamento de valor se torna obsoleto, sem sentido. Cage gostava de destacar que sua música não tinha propósitos — o que não quer dizer que ele mesmo não os tivesse. Ele tinha “o fim de não ter um fim”, a não intencionalidade deliberada. E Cage quer que ouçamos, seja a música da sala de concerto, seja a música do ambiente, com a mesma atenção dispensada no Zen a uma rocha ou uma flor. E precisamos ir além da sala de concerto e ouvir a música cotidiana, porque nas situações ditas musicais, as possiblidades sonoras são muito menores.

No abraçar do cotidiano por meio dos sons, Cage vai longe na diluição das fronteiras entre música, artes e vida. Mas ao contrário do esteticismo de transformar a vida em arte, ele leva a arte para a vida, incluindo as ações e os objetos mais banais.

Esta mudança no conceito de música (ou abalo, para quem preferir) é talvez a principal razão da importância de John Cage. Ele desempenhou um papel fundamental ao sair do que chamou o impasse de ter que escolher entre Stravinski e Schoenberg, ao tentar algo novo. Ele renovou a música. Mas um contraste tão radical com tudo que se entendia como obra musical, que causou tamanha comoção, não teria entrado na História da Música se tivesse sido um mero trote, uma brincadeira, em vez de algo trabalhosamente experimentado, solidamente embasado, cuidadosamente explicado.

Por mera brincadeira, Cage também não teria tido a influência que teve. As ideias de Cage tiveram grande repercussão na música. O que o próprio Cage considerava bom de sua própria influência é o fato de existirem mais possibilidades para as pessoas do que quando ele fora jovem. E ele não influenciou apenas músicos, mas também outros artistas. Além de seu papel na música e na mudança do conceito de obra, além da influência que exerceu sobre outros compositores e mesmo em outras artes, ele se destaca por ter escrito inúmeros textos explicando seu pensamento. É bem verdade que outros músicos também o fizeram, inclusive seus amigos compositores da Escola de Nova Iorque, mas nenhum deles foi tão prolífico quanto Cage, paciente em explicar sua visão ao mundo, generoso nas entrevistas.

O autor e crítico Richard Kostelanetz, em 1966, descrevia Cage como um homem que vivia sozinho, cuidava ele mesmo de sua casa, cozinhava sua própria comida e se envolvia nos assuntos da comunidade. Para referir-se a ele, Kostelanetz cunhou o termo “poliartista”. Muito há ainda a dizer sobre John Cage. Sua personalidade íntegra e generosa gerou muitas anedotas. Com todas suas ideias e interesses, com toda sua idiossincrasia, tantas vezes criticado pela sua ousadia, podemos mesmo assim dizer que Cage era sério: só não era solene.

Sons em si podem não ter um propósito, mas Cage tinha. Ele não queria impor nada, mas queria “viver e deixar viver. Permitir a cada pessoa, assim como a cada som, ser o centro da criação”. Ele queria abrir nossos olhos e ouvidos e — por que não dizer? — nossas mentes.

Gabriela Garcia é formada em Produção Editorial pela ECA- USP e em Música pelo Instituto de Artes da Unesp. Fez preparações e revisões de texto para a Edusp e Edunesp e traduções e versões de inglês e espanhol para outros projetos. Especializou-se em textos de música e artes (Mestrado em Estética Musical, com a dissertação "Silêncio, sons e acaso, uma pesquisa, seleção, tradução e comentário de textos de John Cage", também pela Unesp). Trabalhou por um ano para a Revista Concerto e em projetos para a Santa Marcelina Cultura/Emesp. Redigiu um dos textos do projeto do Selo Sesc para o CD Cage+ e fez as versões em inglês do respectivo site e encarte. Segue realizando trabalhos para editoras e particulares (sobretudo professores universitários e seus orientandos) e, especialmente, para a Edunesp e o Selo Sesc.

ilustrações por Rodrigo Visca — artista plástico e ilustrador, vive e trabalha na cidade de São Paulo, onde nasceu. Desde 2003 atua como artista visual e colaborador do Jornal Folha de São Paulo e possui trabalhos publicados nas principais revistas e veículos de comunicação do Brasil e exterior. Participa de ex­posições coletivas, individuais, feiras, projetos de arte, comunicação e educação. O comportamento humano contemporâneo atualmente é uma de suas principais fontes de referência para a produção de seu trabalho.

Quem foi John Cage e qual foi sua contribuição para a arte musical?

John Milton Cage Jr. Cage foi um pioneiro da música aleatória, da música eletroacústica, do uso de instrumentos não convencionais, bem como do uso não convencional de instrumentos convencionais, sendo considerado uma das figuras chave nas vanguardas artísticas do pós-guerra.

Quem foi John Cage e quais seus mais importantes?

Um dos mais controversos e influentes compositores do séc. XX, é considerado o pai do indeterminismo, corrente inspirada na filosofia budista Zen, que rejeita os princípios convencionais da criação musical, em favor de uma abordagem radical baseada na improvisação e na construção aleatória de sons.

Qual a importância de John Cage para a música?

Esta mudança no conceito de música (ou abalo, para quem preferir) é talvez a principal razão da importância de John Cage. Ele desempenhou um papel fundamental ao sair do que chamou o impasse de ter que escolher entre Stravinski e Schoenberg, ao tentar algo novo. Ele renovou a música.

O que é música aleatória e como surgiu?

A música aleatória é um método de composição que surgiu em 1950 e que utiliza o acaso como princípio construtivo. O termo é proveniente do latim alea (dado). Esta designação é ambígua, já que parece indicar que a obra é fruto dum simples jogo de dados, em que o azar decide tudo.