Por que alguns países são mais propensos a registrar com dições de trabalho análogo à escravidão?

O trabalho escravo rural contemporâneo no Brasil e a questão agrária

1Iniciamos este trabalho com uma informação gerada pela Organização Internacional do Trabalho - OIT (2011) em uma pesquisa realizada com trabalhadores libertados pelo Ministério do Trabalho e Emprego - MTE. Na pesquisa a OIT perguntou aos trabalhadores libertados “qual seria a solução para o problema deles (trabalhadores)”. Os resultados que apareceram foram: a) ter terra para plantar (46,1%); b) ter um comércio (26,9%); c) ter emprego rural registrado (13,5%); d) ter um emprego na cidade (15,5%). Somadas as indicações a) e c), 59,6% dos trabalhadores escravizados que são libertados almejam o trabalho na terra. Esta informação evidencia a origem desses trabalhadores, com raízes rurais, e principalmente a forma como trabalho escravo rural contemporâneo está ligado duplamente à questão agrária no Brasil. Duplamente porque, além do trabalho escravo em si ser um crime predominante no campo, também sua causa estrutural está ligada à questão agrária, ou seja, a pobreza dos trabalhadores de origem rural (sem terra ou desintegrados), como mostra o estudo da OIT, e o poder político econômico e mentalidade feudal dos fazendeiros que empregam a prática.

2Adicionalmente à ligação entre trabalho escravo e questão agrária atuais, esta relação também é histórica e está alicerçada na forma extremamente concentradora (de poder e terra) e altamente exploradora do trabalho no campo que configura a questão agrária brasileira. Além da escravidão oficial/legal adotada no Brasil até 1888, nas formas de exploração do trabalho seguintes continuaram a ser criados e utilizados instrumentos que possibilitassem a maior submissão do trabalhador possível. Há que ser considerada como forma de exploração da mão de obra que guarda semelhanças com o trabalho escravo contemporâneo, aquela utilizada com os imigrantes europeus e japoneses que vieram para o Brasil substituir a mão de obra escrava que esvaziou os cafezais e cuja falta impediria a continuação da produção e a expansão das fazendas de café – a fazenda, um dos principais produtos da frente pioneira. (MARTINS, 2010 [1979]).

3Em “O cativeiro da terra” Martins (2010 [1979]) demonstra as formas de tratamento dos imigrantes pelos fazendeiros e o modo como o trabalho era explorado. Inicialmente, o tratamento pouco diferenciava-se daquele dispensado aos escravos negros, inclusive a senzala era por vezes a primeira residência desses imigrantes. A caderneta de dívidas, que inclui o transporte do trabalhador até a fazenda e os seus consumos de manutenção – a dívida impagável - foi um elemento de submissão e aprisionamento do trabalhador comum neste período do colonato e também é na atual escravidão: um instrumento de aprisionamento do trabalhador que não age só, mas associado ao impedimento de deixar a fazenda (em ambos os casos) por conta da suposta dívida, sendo este assegurado pelos jagunços e outras coações. Como afirma Martins 2010 [1979]

[...] o parceiro era onerado com várias despesas, a principal das quais era o pagamento do transporte e gastos de viagem, dele e de toda a sua família, além da sua manutenção até os primeiros resultados do seu trabalho. Diversos procedimentos agravavam os débitos, como a manipulação das taxas cambiais, juros sobre adiantamentos, preços excessivos cobrados no armazém pelos bens de consumo do colono (em comparação com preços das cidades próximas), além de vários abusos e restrições. [...] Aos olhos de um dos colonos, tais fatos significavam que “o colono europeu só vale mais do que os negros africanos pelo fato de proporcionar lucros maiores e de custar menos dinheiro”. [...] tendo feito despesas na importação da mão de obra, o fazendeiro sentia-se impelido a desenvolver mecanismos de retenção dos trabalhadores em suas terras, como se fosse seu dono: os patrões [...] quase não dão dinheiro aos seus colonos, a fim de prendê-los ainda mais a si ou às fazendas”. Deste modo, o trabalhador não entrava no mercado de trabalho como proprietário da sua força de trabalho, como homem verdadeiramente livre. Quando não estava satisfeito com um patrão, querendo mudar de fazenda, só poderia fazê-lo procurando “para si próprio um novo comprador e proprietário”, isto é, alguém que saldasse seus débitos com o fazendeiro. (p.54).

4É possível observar no trecho acima também outra característica marcante da escravidão moderna, que é o valor do escravo para o fazendeiro. Se na escravidão oficial/legal o escravo representava investimento de capital e por isso perder um escravo (assassinar um escravo) significava perder muito dinheiro, na escravidão contemporânea o escravo é muito barato para o fazendeiro, de forma que é muito mais descartável. Isso quer dizer que assassinar um escravo no contexto atual significa para os que praticam este crime perder muito menos (ou quase não perder) em relação ao sistema oficial que vigorou até 1888. Há inclusive relatos da venda de escravos na prática criminosa da atualidade.

5Sobre o uso da dívida impagável na escravidão moderna na fronteira agropecuária, Figueira (2004) escreveu

Fugir implicava não apenas o medo de ser capturado, mas também a angústia que os acompanhava, porque o padrão moral lhes informava de uma obrigação em princípio inegociável: toda dívida devia ser paga. Não podiam se sentir bem consigo mesmos nem com os demais enquanto houvesse algum débito a ser quitado. Dever e não pagar – mesmo se a dívida pudesse ser considerada ilegal ou injusta – criava desconforto para pessoas como Tereso, um trabalhador de Mato Grosso. Mesmo reconhecendo que “empreiteiro rouba demais, rouba sangue de nós” (depoimentos, Recanto da Paz: 2000), ele era duro em relação aos que fugiam. Não se podia esquecer um dever econômico, insistia. Esquecer ou declinar da responsabilidade equivalia a um furto e a sanção moral para o furto era grave. Por isso, alguns que não queriam fugir, fizeram desesperadamente economia para obter saldo e permaneceram até o fim da empreita, explicou, em Barras, Raimundo Ferreira. O máximo que conseguiram foi a passagem de volta para a casa. (p.178).

6Apesar das diferenças conjunturais, históricas e sociológicas entre a escravidão oficial/legal, o colonato do café e a escravidão contemporânea, a comparação entre essas três formas de coação do trabalho evidencia o caráter extremamente exploratório do trabalho que configura a questão agrária no Brasil. Também essas três formas não esgotam as estratégias dos fazendeiros no campo brasileiro, havendo outras formas de exploração aparentemente menos drásticas, evidenciando o jogo desigual de forças entre proprietários rurais e trabalhadores. Por isso, o trabalho escravo contemporâneo não pode ser analisado apenas como mais um crime, ou uma prática isolada, mas é parte de um problema estrutural da questão agrária brasileira que persiste e do próprio capital, que demonstra constantemente como pode utilizar-se de relações não capitalistas de produção para se reproduzir.

7Vários autores têm estudado o trabalho escravo conceituando-o de diferentes formas, dentre os quais destacamos Neiva (1994), Esterci (1999), Martins (1999), Vilela e Cunha (1999), Figueira (2004), Girardi (2008), além de instituições governamentais (MTE) e não-governamentais (OIT, Anti-Slavery International – ASI, Comissão Pastoral da Terra - CPT) que apontam visões ora complementares, ora distintas. Para a ASI, algumas características distinguem a escravidão de outras formas de violação dos direitos humanos, sendo o trabalhador escravizado definido segundo quatro aspectos fundamentais:

i) quando ele é forçado a trabalhar - por meio de opressão física ou psicológica; ii) quando ele é possuído ou controlado por um “empregador”, geralmente através de abuso mental ou psicológico ou ameaças de abuso; iii) quando ele é desumanizado, tratado como um objeto ou comprado e vendido como uma “propriedade” e iv) quando ele é fisicamente coagido ou possuindo restrições no direito de ir e vir. (ASI, 2005, não pag., apud GIRARDI, 2008).

8A CPT utiliza como critério principal para a caracterização do trabalho escravo atual:

[...] a sujeição do trabalhador. Esta sujeição pode ser física como psicológica. Meios de atingir a sujeição: a dívida crescente e impagável. (1995, p.46). [...] elementos que caracterizem o cerceamento da liberdade, seja através de mecanismos de endividamento, seja pelo uso da força (proprietários ou funcionários armados, ocorrência de assassinatos, espancamentos, e práticas de intimidação) [...]. (2003, p.138).

9A OIT acompanha e monitora mundialmente as diversas formas de prática do trabalho escravo. No Brasil, desde alguns anos, a organização trabalha em parceria com o MTE, a Polícia Federal (PF), a CPT e outras instituições em defesa da justiça social no trabalho, monitorando e resgatando cidadãos que estão sujeitos às diversas formas de trabalho escravo. Para a OIT

a característica mais visível do trabalho escravo é a falta de liberdade. As quatro formas mais comuns de cercear essa liberdade são: servidão por dívida, retenção de documentos, dificuldade de acesso ao local e presença de guardas armados. Essas características são frequentemente acompanhadas de condições subumanas de vida e de trabalho e de absoluto desrespeito à dignidade de uma pessoa. (OIT, 2005, não pag.).

10Convém lembrar que o aparato legal brasileiro trata de “condições análogas à de escravo”, com base no qual os vários acordos de parcerias têm sido realizados e as penalidades foram definidas. A Lei n° 10.803, de 11 de dezembro de 2003, altera o artigo 149 do Decreto-lei n° 2848 de 07 de dezembro de 1940, e define que o trabalho escravo é “reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.

11As origens e as formas do cerceamento de liberdade dos trabalhadores são diversas, indo desde o isolamento geográfico até comportamentos ameaçadores dos empregadores. Elas envolvem, grosso modo, aspectos ligados ao local, transporte e alimentação. O trabalho ocorre em locais de difícil acesso, cujo custo de transporte normalmente é caro e debitado aos trabalhadores; a intermediação entre o trabalhador e o empregador é feita por pessoas inescrupulosas, conhecidas como “gato”; a alimentação, comprada em armazéns dos proprietários das fazendas a preços elevadíssimos, transforma-se em dívidas crescentes, as quais se acumulam com o pagamento da viagem e dos instrumentos de trabalho e proteção, que deveriam ser fornecidos pelo patrão. As atividades desenvolvidas pelos trabalhadores escravizados são árduas, geralmente associadas às condições degradantes, visto que geralmente os trabalhadores moram em barracos ou em alojamentos comunitários, cujas condições de higiene são as piores possíveis.

  • 1 Extração, construção civil, confecção, outro (pesca, transporte, distribuição), hotel/restaurante.

12É necessário salientar que, embora o trabalho escravo seja encontrado predominantemente nas zonas rurais atrelado às atividades agropecuárias (93% dos casos de libertação entre 2003 e 2012 e 70% dos casos em 2012, segundo PLASSAT/CPT (2013), este crime também é cometido nas áreas urbanas, e aí está relacionado principalmente às atividades de confecção e de construção civil. As inspeções deste tipo de trabalho e registro como trabalho escravo são ainda mais recentes e essas informações também estão presentes nas bases de dados analisadas. Segundo dados organizados pelo Frei Xavier Plassat, da CPT (PLASSAT/CPT, 2013), os casos de libertação em atividades não agrícolas1 no período 2003–2012 correspondeu a 6,9% do total, mas em 2012 representaram 30%. A construção civil foi responsável por 23% dos 30%. Assim sendo, embora o padrão de uso do trabalho escravo tenha apresentado mudanças recentes (que possivelmente reflete a conjuntura econômica do país), o predomínio é nas atividades agropecuárias na atualidade e ainda mais no histórico da prática no país.

Objetivos, metodologia e recortes da pesquisa

13Neste artigo apresentamos uma análise do trabalho escravo contemporâneo brasileiro a partir da investigação dos dados levantados pela CPT e pelo MTE, sendo o mapeamento exploratório desses dados e sua correlação com outros indicadores o principal instrumento metodológico utilizado. Os dados foram analisados e representados majoritariamente em escala municipal. A análise está dividida em duas partes: na primeira parte apresentamos os principais resultados alcançados na elaboração do Atlas do Trabalho Escravo no Brasil (THÉRY et al., 2012), trabalho no qual os dados da CPT e do MTE do período 1995-2006 foram analisados a partir do cruzamento com indicadores sociais, econômicos e de violência, de forma que foi possível definir as principais características internas e regionais do fenômeno; na segunda parte analisamos os dados do MTE no período 2007-2012 com a finalidade de avaliar as mudanças recentes do trabalho escravo no Brasil.

Avaliando o trabalho escravo contemporâneo

14Duas fontes de dados sobre o trabalho escravo constituem a principal forma de conhecimento e mensuração deste fenômeno no Brasil: a CPT e o MTE. A CPT foi impulsionadora do processo, pois desde a década de 1980 registra as denúncias de trabalho escravo, ignoradas pelo Estado até 1995, quando o MTE passou a inspecionar os casos denunciados. Em 1995 o MTE criou o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que é ligado ao Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GETRAF) e à Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), ambos do MTE. O Grupo Móvel, com o auxílio da Polícia Federal, realiza inspeções em locais onde há denúncia de trabalho escravo. Nesse caso, os trabalhadores são libertados, são aplicadas multas ao empregador e é efetuado o pagamento dos salários e encargos, o que permite ao trabalhador o recebimento do seguro desemprego. Em seguida os trabalhadores são assistidos e encaminhados aos seus locais de origem, sendo de responsabilidade do empregador os recursos destinados ao transporte.

15Entre 1986 e 2012 a CPT registrou denúncias sobre 165.808 trabalhadores escravizados, sendo 2.952 em 2012. Já o MTE libertou, entre 1995 e 2012, 44.425 trabalhadores, dos quais 2.750 apenas em 2012. Os dados do MTE são relativos ao número de trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel. O número real de trabalhadores escravizados é sem dúvida maior, visto que não é possível verificar todas as denúncias e, em alguns casos, as operações fracassam, pois ocorre o vazamento de informações, de forma que "de posse da ordem de serviço, muitas vezes os fiscais e policiais são surpreendidos por proprietários que, sabendo da vistoria, tiveram tempo para preparar o ambiente". (GUIMARÃES; BELLATO, 1999, p.72). O Gráfico 1 mostra a diferença entre o número de trabalhadores em denúncias à CPT e os libertados pelo MTE por ano, sendo os dados da CPT sempre superiores àqueles do MTE, principalmente porque nem todas as denúncias recebidas pela CPT são fiscalizadas. Segundo Figueira (2004), antes da criação do Grupo Móvel, em geral as denúncias não eram apuradas devido ao medo das equipes, à situação econômica, que não possibilitava as operações, e também às omissões e desinteresse dos fiscais, os quais mantinham relações de amizade com os acusados.

Gráfico 1 – Trabalhadores em denúncias feitas à CPT e trabalhadores libertados pelo MTE

Por que alguns países são mais propensos a registrar com dições de trabalho análogo à escravidão?

Dados : CPT e MTE

O território da escravidão

16Todos os mapas elaborados procuram expressar a distribuição e as dinâmicas do trabalho escravo no território brasileiro, normalmente articuladas com os movimentos das atividades econômicas presentes na frente pioneira da fronteira agropecuária, retratando um movimento de integração do norte e oeste do país à economia nacional.

17A primeira configuração da dinâmica do trabalho escravo já aparece quando são analisados aspectos (Prancha 1) como a origem geográfica dos trabalhadores (naturalidade), os lugares onde foram libertados, os locais citados nas denúncias e o local de sua residência após a libertação (domicílio, que é o endereço fornecido para receber o seguro-desemprego). A resposta à pergunta “onde nasceram os trabalhadores encontrados em condições de trabalho escravo?”, ou seja, “qual é a sua naturalidade?” permite verificar que são provenientes de todo o território nacional, exceção feita aos estados situados no extremo oeste do país. Aparecem três eixos, porém a concentração principal mostra os trabalhadores que nasceram nos estados do Maranhão, Piauí, extremo norte do Tocantins (região conhecida como “Bico do Papagaio”) e nordeste paraense. Um segundo eixo, também com elevados efetivos, está localizado em áreas do Polígono das Secas, principalmente na faixa nor-noroeste de Minas Gerais e centro e oeste da Bahia. Em um terceiro eixo, no centro de Goiás, oeste do Paraná e Santa Catarina e regiões litorâneas, ocorre uma distribuição regular, apresentando números relativamente baixos.

18O segundo dos quatro mapas expressa os locais de residência dos trabalhadores logo após a sua libertação, quando recebiam o seguro-desemprego outorgado às pessoas libertadas das condições de trabalho escravo. De acordo com esta fonte, os maiores números de trabalhadores residiam nos municípios localizados no itinerário da rodovia transamazônica e limítrofes entre o Pará e Tocantins, Pará e Maranhão e Maranhão e Piauí. Porém, outras concentrações são evidentes nos eixos das rodovias nos estados de Mato Grosso, Goiás e Tocantins e nas faixas nor-noroeste de Minas Gerais e oeste da Bahia.

19Outro aspecto espacial ressaltado pelo terceiro mapa da Prancha 1 é a localização dos municípios onde ocorreram libertações de trabalhadores. Entre 1995 e 2006 não ocorreram resgates somente em cinco estados: Roraima e Amapá, na Amazônia, e Pernambuco, Alagoas e Sergipe, no Nordeste. Em todos os outros 22 estados brasileiros, mesmo os mais ricos, o fenômeno está presente, embora o maior número de libertados tenha sido nos estados do Pará, seguido por Mato Grosso, depois pelo oeste da Bahia e centro sul de Goiás. Se no Pará o trabalho escravo é concentrado na porção leste do estado, em Mato Grosso e na Bahia há dispersão do crime por todo o território.

20Ao serem considerados os dados de denúncias registrados pela CPT, representados no quarto mapa, a configuração é um pouco diferente daquela do número de escravos no país. A maioria absoluta situa-se no estado do Pará, acompanhado proximamente pelo oeste da Bahia, Mato Grosso, leste de São Paulo e sudoeste de Minas Gerais. Apenas nos estados do Amazonas, Roraima, Ceará, Paraíba e Sergipe não ocorreram denúncias de trabalho escravo. A comparação dos dois últimos mapas permite visualizar a diferença entre as denúncias e os resgates no estado da Bahia: enquanto as denúncias estão concentradas no oeste, as libertações estão disseminadas por todo o estado. Minas Gerais é outro caso onde aparece uma grande diferença entre denuncias numerosas e poucos resgates. Mais uma vez pode-se concluir que a realidade do trabalho escravo no país é ainda mais ampla do que se tem registro.

21Quais as razões pelas quais há uma forte concentração em apenas uma sub-região paraense e maranhense? Por que os trabalhadores escravizados são encontrados longe dos locais onde nasceram? As razões econômicas dessas migrações podem ser resumidas na inexistência de trabalho em seus locais de origem, no tipo de trabalho oferecido, na exigência de um tipo específico de habilitação profissional? Qual é a diversidade de situações individuais que constituem os trabalhadores liberados? O diferencial das atividades econômicas realizadas em Mato Grosso em relação aos outros três estados poderia ser uma hipótese: o uso de mecanização na produção da soja exige maior qualificação do trabalhador e o desflorestamento já está em estágio avançado. No caso do estado do Pará, a forte produção do carvão vegetal leva a uma maior necessidade de trabalhadores braçais.

Prancha - Distribuição dos trabalhadores escravizados – 1995-2006

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MTE/SDTR,CPT

De onde saem e para onde vão os trabalhadores escravizados?

22O Mapa 1 mostra o deslocamento dos trabalhadores do seu estado de naturalidade até aquele onde foi libertado do trabalho escravo. O maior fluxo de migração é destacadamente do Maranhão em direção ao Pará, o segundo do Tocantins para o Pará e o terceiro do Maranhão para o Tocantins. A quarta categoria destes fluxos indica que as saídas do Paraná, Distrito Federal, Bahia, Alagoas, Maranhão destinam-se ao estado de Mato Grosso.

Mapa 1 – Fluxo dos trabalhadores escravos

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MT/Cadastro seguro desemprego/1995-2006

23Quando se considera uma área menor e se focaliza nos quatro principais estados onde o fenômeno do trabalho escravo ocorre (Pará, Mato Grosso, Maranhão e Tocantins), pode-se relacionar melhor a naturalidade e o local de libertação. Nesta mudança de escala, o processo de libertação dos trabalhadores escravos entre 1995 e 2006 esteve altamente concentrado nos estados do Pará e de Mato Grosso (Mapa 2). No entanto, os locais de origem são, sobretudo, o Maranhão e o Tocantins, e é extremamente baixa a representatividade dos trabalhadores nascidos nos estados de Mato Grosso e do Pará.

Mapa 2 – Pará, Maranhão, Tocantins e Mato Grosso – Local de liberação e naturalidade dos trabalhadores escravizados

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MTE/SDTR, IBGE, CPT

Em quais atividades econômicas encontra-se o trabalho escravo?

24Analisando os dados relativos às denúncias, as informações dos Cadernos de Conflitos no Campo da CPT desde o ano de 1986 e os registros de trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, a partir de 1995 até 2006, nota-se que o trabalho escravo ocorre, sobretudo, nas seguintes atividades econômicas: companhias siderúrgicas, carvoarias, mineradoras, madeireiras, usinas de álcool e açúcar, destilarias, empresas de colonização, garimpos, fazendas, empresas de reflorestamento/celulose, agropecuárias, empresas relacionadas à produção de estanho, empresas de citros, olarias, cultura de café, produtoras de sementes de capim e seringais. De fato, as atividades econômicas que se desenvolvem nas microrregiões de maior concentração de trabalho escravo são a produção de carvão (Santa Maria da Vitória, por exemplo), a pecuária (São Felix do Xingu), mineração (Parauapebas), exploração de madeira (Paragominas, Tomé Açu). Há, portanto, aparecimento do trabalho escravo mesmo em segmentos bastante capitalizados e tecnologizados.

25Na Prancha 2 mapeamos as principais atividades relacionadas ao trabalho escravo. Dentre as outras atividades também de importância, considerando-se a variação do número de bovinos entre 2000 e 2005 por microrregião (Prancha 2), o maior índice de aumento desenha um grande arco (que tem praticamente a mesma forma do “arco do desmatamento”) ao sul da região Norte. As cores quentes do mapa (do amarelo ao vermelho) são representativas do crescimento do processo enquanto as frias (azul claro e escuro) demonstram redução no ritmo de crescimento da atividade. Desta forma, o destaque para a aceleração do crescimento do número de bovinos apresenta uma coincidência espacial com a libertação de trabalhadores, especialmente no sudeste do Pará.

Prancha 2 - Bovinos, carvão, madeira, desmatamento

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INPE/PRODES

26Seguindo o mesmo procedimento para a elaboração do índice de variação da produção de carvão, os dados mostram uma concentração em quatro regiões: a maior delas é no oeste da Bahia, estado ao qual seguem Mato Grosso do Sul, Maranhão e Pará. É notório nas fiscalizações que as condições de trabalho na produção do carvão são extremamente precárias. A atividade muitas vezes é ilegal, o que facilita as condições de aliciamento de trabalhadores escravizados. Estudos sobre a questão da produção do carvão (MONTEIRO et al., 2005) destacam o incremento do desmatamento ligado à atividade de produção do carvão e enfatizam o dano ambiental causado pela exploração de madeiras (cupiúba, pau-rainha, jarana, matá-matá e outras).

27A maior parte do carvão vegetal produzido na região vai para as siderúrgicas e a maioria das carvoarias de Rondon do Pará utiliza resíduos da mata para produzir carvão. Das 68 carvoeiras visitadas pelos pesquisadores (MONTEIRO et al., 2005), apenas 12% são consideradas legais. Segundo os dados obtidos em campo e os disponibilizados pelo Ministério do Trabalho, as mesmas produzem aproximadamente 13.872 m³ de carvão por semana, o que equivale à remoção de 27.744 m³ de madeira. Ao considerar o detalhamento do estudo realizado por Monteiro et al. (2005) podemos levantar a premissa de que, sendo a atividade ilegal, em sua maioria, os trabalhadores que estão ocupados com a mesma estarão, certamente, muito longe de se encontrarem com todas as proteções do emprego formal.

28Um dos produtos mais simbólicos da ilegalidade da exploração de recursos naturais, especialmente na Amazônia, é a madeira. A maioria da madeira é produzida ilegalmente, ou seja, as áreas florestadas passíveis de exploração não possuem plano de manejo. Novamente a premissa anterior é cabível: se a atividade produtiva é ilegal, o que pensar dos trabalhadores que estão nela envolvidos? Tornar a atividade legal pode resultar em impactos menos agressivos ao equilíbrio da floresta e inviabilizar a prática do trabalho escravo.

29Além desses segmentos econômicos, o processo de desmatamento concentra grande parte da prática do trabalho escravo. A correlação entre desmatamento e trabalho escravo é muito mais forte, tanto pela óbvia coincidência territorial (ao comparar o mapa que o localiza com o dos trabalhadores resgatados) como pelo uso notório deste tipo de trabalho na fase inicial do desmatamento (broca da vegetação de sub-bosque, abertura de picadas etc.). Apesar do mapa do desmatamento se limitar à Amazônia legal, ele cobre as principais áreas de concentração de trabalho escravo, na Amazônia oriental e no norte do Centro-Oeste, e das atividades econômicas usuárias de trabalho braçal pouco qualificado, frequentemente associado ao trabalho escravo.

Trabalho escravo, violência e frentes pioneiras

30Violência e trabalho escravo são certamente patologias sociais que possuem uma correlação bem estreita. Um estudo elaborado pela Delegacia Regional do Trabalho do Pará (2006) relaciona um conjunto complexo de variáveis que contribuem fortemente para a ocorrência simultânea dos dois processos. A obra, lançada em abril de 2008 pela CPT, aponta 28 pessoas assassinadas em conflitos pela terra em 2007, número menor que em 2006, quando foram registrados 39 assassinatos. Para Oliveira (2001) a violência é a característica que marca a luta pela terra no Brasil. Se, entre os anos 1960 e 1970, o foco principal do processo era o Nordeste, a partir de 1972, o mesmo concentrou-se na Amazônia, atingindo tanto os posseiros quanto os indígenas. Os mortos em conflitos no campo, em todo o país, mostram uma continuidade temporal e espacial do processo. Especialmente no estado do Pará, episódios como o de Eldorado de Carajás em 1996, com a morte de camponeses sem-terra, estarão sempre na memória pública. Se associarmos o número de trabalhadores libertados com a taxa de homicídios (Mapa 3), a taxa mais elevada (entre 40 e 165 por cem mil pessoas) é encontrada no sudeste do Pará e no norte de Mato Grosso. A zona crítica prolonga-se em todo o norte de Mato Grosso, o nordeste do estado de Goiás, todo o estado de Pernambuco e centro-oeste do Roraima, mas desta vez sem corresponder a casos conhecidos de trabalho escravo.

Mapa 3 – Taxa de homicídio e trabalhadores resgatados por município

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MTE/SDTR, IBGE, CPT

Mapa 4 : Ano de instalão dos municípios e local de resgate dos trabalhadores por município

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MTE/SDTR, IBGE, CPT

31Outra variável significativa, a taxa de homicídios por arma de fogo, também apresenta uma configuração muito semelhante, porém com valores um pouco mais baixos que a primeira, o máximo atingindo 130 por cem mil pessoas. Novamente se sobressaem o sudeste e sul do Pará, o norte e centro-norte de Mato Grosso, todo o Mato Grosso do Sul, o leste de Goiás, o centro-sul de Roraima e o estado de Pernambuco.

32Quando introduzimos outra variável - o ano de instalação do município - na correlação com a violência e o trabalho escravo há a mesma configuração de forte concentração no leste do Pará. Os novos municípios criados entre 1997 e 2001 estão localizados no norte de Mato Grosso, Rondônia, Roraima e Pará. Esse processo é resultante não apenas do crescimento econômico de regiões da frente pioneira, mas especialmente da movimentação política de uma parcela dos habitantes, pioneiros que desejam adquirir a independência de “seu” município em relação a uma sede longínqua, cujos interesses - de acordo com eles - não coincidem mais com os seus. Pioneirismo, vontade de independência, coragem ao afrontar situações difíceis participam do mesmo complexo social, político e econômico, cuja face obscura é a presença permanente da violência e o trabalho escravo.

Relacionando os fatores ligados ao trabalhos escravo

  • 2 Todos os aspectos considerados na análise podem ser vistos em THÉRY, H. et al. Atlas do trabalho es (...)

33Até aqui buscamos elencar os vários aspectos do trabalho escravo. Como aparecem nos dados analisados e representados nos mapas anteriores, procuramos verificar as correlações diretas e mais evidentes2. A seguir realizamos uma investigação que busca ressaltar algumas das múltiplas relações entre fatores que se presumem explicativos do trabalho escravo. Tratamos, por meio de métodos estatísticos, um grande número de variáveis econômicas e sociais, o que nos permitiu evidenciar o contexto no qual se desenvolve o trabalho escravo. A técnica estatística de análise fatorial foi utilizada para este fim e os resultados indicam processos que são o fundamento do trabalho escravo, a respeito dos quais se poderia até falar em síndrome social, da qual essa forma de escravização humana é apenas o sintoma mais agudo.

  • 3 Foram selecionadas as seguintes variáveis: IDH, assassinatos em conflitos rurais, ocupações de terr (...)

34O primeiro passo foi reunir e testar uma série de 22 variáveis e indicadores sintéticos3. Essas variáveis foram reduzidas a uma mesma métrica e em seguida submetidas a uma análise fatorial juntamente com os dados de: a) número de trabalhadores libertados pelo MTE; b) número de trabalhadores em denúncias à CPT; c) residência dos trabalhadores libertados pelo MTE. O objetivo foi analisar a relação entre essas três variáveis que retratam o trabalho escravo e o conjunto das 22 outras variáveis selecionadas.

35A análise fatorial mostrou que há correlação entre trabalho escravo e as seguintes variáveis: assassinatos em conflitos rurais, ocupações de terra, taxa de óbitos por arma de fogo, taxa de homicídios, progressão do rebanho bovino, produção de soja, produção de carvão, produção de madeira, progressão da população e taxa de indigência. Verificada a relação, essas variáveis foram utilizadas, adicionalmente às variáveis já mapeadas, na construção de indicadores sobre o trabalho escravo, como demostramos a seguir.

Índices de risco de escravidão e vulnerabilidade ao aliciamento

36Como esta análise estatística e cartográfica do trabalho escravo poderia – numa modesta medida – contribuir para a luta contra este crime? Consideramos um caminho possível: elaborar um índice de risco de trabalho escravo a partir de dados acessíveis, independente das denúncias. As operações de resgate de trabalhadores em situação de escravidão, assim como os dados reunidos pela CPT, dependem das denúncias e não conseguem, portanto, localizar todas as situações deste tipo. Um índice de probabilidade permitiria detectar regiões onde é provável que o fenômeno exista, embora nenhuma operação ainda tenha sido efetuada nelas, ou mesmo até ajudar a orientar as investigações para lugares onde se pode supor que casos de trabalho escravo possam existir, embora nenhuma denúncia tenha sido recebida.

  • 4 O índice foi elaborado da seguinte maneira: primeiro foram agrupadas as variáveis econômicas, anali (...)

37Para elaborar o índice de probabilidade de escravidão4foram sintetizados os indicadores mapeados anteriormente e aqueles cuja análise fatorial apontou como relacionados ao trabalho escravo. O teste do valor deste índice seria que as regiões para as quais ele aponta sejam sempre ou quase sempre aquelas onde situações de trabalho escravo foram constatadas, com um mínimo de casos situados em regiões de índice mais baixo. O Mapa 5 representa este índice e corresponde a estas exigências: a maioria dos casos constatados está localizada sobre as áreas de cores mais quentes - aquelas onde o índice está no seu máximo - e muito pouco sobre as zonas claras que representam o índice baixo. As zonas de cores fortes - fora do litoral ou dos arredores de Brasília onde não foram constatados casos - são aquelas onde se pode supor que as condições sociais são diferentes e que nelas casos de trabalho escravo poderiam ser detectados, se investigações fossem feitas.

38No Pará, Mato Grosso, Maranhã e Tocantins a correlação escravidão/violência ocorre plenamente, pois todos os casos reconhecidos de trabalho escravo situam-se, com raras exceções, nas classes superiores do índice parcial composto a partir das variáveis que medem a violência (em tons alaranjados e vermelhos).

Mapa 5 – Índice de probilidade de escravidão

Por que alguns países são mais propensos a registrar com dições de trabalho análogo à escravidão?

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  • 5 O índice é composto pela média das variáveis que definimos, após testes, como marcadoras de regiões (...)

39Detectar casos de trabalho escravo sem esperar as denúncias é evidentemente um progresso, mas pode-se tentar avançar mais, pelos mesmos métodos, e dar mais um passo: identificar as regiões onde existe um risco sério de recrutamento de trabalhadores para atividades que os colocarão em situação de escravidão, criando um índice de vulnerabilidade ao aliciamento de escravos5.

40Em escala nacional, o mapa de vulnerabilidade ao aliciamento, mostra que é muito forte a coincidência entre as zonas de alto índice de vulnerabilidade e os lugares onde nasceram os trabalhadores resgatados de situações de escravidão, principalmente no Nordeste, de onde é proveniente a maior parte dos casos conhecidos.

41Duas exceções parecem contestar a validade do índice, o Sul-Sudeste e a Amazônia ocidental. Porém, estas exceções são apenas aparentes: no caso da Amazônia ocidental, os números de pessoas presentes são pequenos demais para interessar aos “gatos” e no caso do Sul-Sudeste, o lugar de nascimento foi apenas uma etapa numa longa história familiar de migrações, como mostram os mapas que comparam o lugar de nascimento dos trabalhadores libertados com aquele que eles escolheram após a sua libertação: muitos dos que nasceram no Sul-Sudeste – por exemplo, no Paraná, onde os pais foram atraídos pela cultura do café – são, na verdade, filhos de nordestinos que se encontravam na região para trabalhar ou procurar trabalho. Certas regiões alimentam, de fato, o fluxo de trabalhadores reduzidos à escravidão, por exemplo, o norte de Minas Gerais ou as regiões de agricultura familiar do oeste de Santa Catarina, mas indiscutivelmente o grande “reservatório”, a área mais procurada pelos “gatos”, é o Nordeste, e em especial o Maranhão, que neste caso é bem mais exposto que o Pará.

Mapa 6 – Índice de vulnerabilidade ao aliciamento

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Correlações entre os índices sintéticos e a ocorrência de trabalho escravo

42Após as análises dos fatores e a proposição dos dois índices (probabilidade de escravidão e vulnerabilidade ao aliciamento), consideramos que faltava detectar as zonas onde os índices calculados não correspondem aos casos detectados, o que permitiria eventualmente orientar para elas as ações de busca de trabalhadores escravizados. Foram realizadas regressões entre estes índices e também o cálculo do resíduo, positivo ou negativo, para cada município, procurando indicar onde há menos casos conhecidos de trabalhadores escravos do que se poderia esperar em função da média global.

Mapa 7 - Correlação entre o índice e a presença de trabalho escravo

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43No Mapa 7 as zonas vermelhas indicam regiões onde o número de casos está acima da média geral dos municípios com ocorrência de trabalho escravo, e as zonas azuis aquelas onde casos conhecidos de trabalhadores escravizados são menos numerosos do que se poderia esperar. Há duas hipóteses: a menos provável é que nessas regiões, por alguma razão desconhecida, os casos sejam de fato menos numerosos, a outra é que alguns deles não tenham sido detectados.

Análise recente do trabalho escravo

44 Como já explicado, os dados sobre a libertação dos trabalhadores são oriundos de denúncias ao MTE e à CPT, porém nem todas as denúncias são verificadas e, quando verificadas, há casos em que os fazendeiros e gatos conseguem despistar a fiscalização. Os dados elaborados por Plassat/CPT (2013) mostram que 69,3% das denúncias recebidas entre 2003 e 2012 foram fiscalizadas, restando 30% sem fiscalização, sendo estimado que somente nas denúncias oriundas da CPT (que representaram 46% do total de denúncias) e não fiscalizadas, permaneceram sob regime de escravidão 18.853 trabalhadores. O mesmo conjunto de dados de Plassat/CPT (2013) mostra que no período 2003-2012 as principais atividades rurais que exploraram o trabalho escravo foram Pecuária, (28,8%), cana-de-açúcar (26,4%), outras lavouras (19,5%), carvão (8,4%) e desmatamento (5,1%).

45O mapeamento comparativo temporalmente dos dados do trabalho escravo no Brasil mostra uma clara mudança a partir de 2007. O Mapa 8 representa comparativamente os dados dos trabalhadores resgatados entre 1995 e 2006 (período analisado até esta parte do artigo) e os trabalhadores libertados entre 2007 e 2012. Este mapeamento evidencia importantes alterações distribuição regional do trabalho escravo. É possível verificar três tipos de dinâmica regional/municipal: a) que diminuíram drasticamente ou até mesmo deixaram de apresentar registros de trabalho escravo, como é o caso de vários municípios de Mato Grosso, o sul de Rondônia e municípios do sudeste do Pará (porção sul do foco do fenômeno no estado); b) que mantiveram os registros, como também pode ser visto no sudeste do Pará, na porção central do foco do fenômeno no estado), e no oeste da Bahia; c) que passaram a ter registros de casos de trabalho escravo, como em todo o Sudeste, o estado de Goiás (principalmente na porção sul) Mato Grosso do Sul, com casos muito expressivos, região centro-norte de Mato Grosso, Acre, Rondônia e na zona da Mata de Sergipe, Alagoas e Pernambuco.

46O aumento da verificação de casos em municípios onde ainda não havia sido registrado trabalho escravo é provavelmente fruto de um aumento da fiscalização, com significativo aumento das operações desde 2007. Dentre os municípios onde foram libertados trabalhadores escravizados entre 1995 e 2012, 63,3% passaram a compor a lista somente a partir de 2007. Com base nessa constatação podemos reafirmar a conclusão recorrente neste trabalho e entre os que estudam o fenômeno do trabalho escravo contemporâneo no brasil: de que este crime é muito mais comum do que qualquer dado ou estimativa possa refletir, pois bastou que a fiscalização fosse ampliada para que novos casos passassem a ser registrados.

47O mapeamento desta evolução recente dos registros de trabalhadores libertados permite afirmar também que o crime não é regionalmente tão concentrados como os primeiros dados de denúncias e de libertações indicavam e como analisado na primeira parte deste trabalho. Embora ainda com forte concentração dos casos de escravização no leste do Pará e oeste do Maranhão, outras regiões por todo o país surgem com importante destaque, como o caso da agricultura “moderna” no Centro-Sul e nas capitais e suas proximidades.

48Continuando a reflexão sobre o aumento do número de municípios com casos de trabalho escravo e a desconcentração da área tradicional no Pará, Maranhão e Mato Grosso, pode-se aventar uma outra hipótese: de que o crescimento econômico do país e a grande demanda por mão de obra podem ter feito com que houvesse aumento das estratégias ilegais de exploração da mão de obra, o que poderia explicar o aumento do número casos nas culturas de alta tecnificação no Centro-Sul e principalmente no setor da construção civil. Desta forma, o aumento no número de casos não decorreria apenas do aumento da fiscalização, mas também do aumento da prática criminosa.

49Parece que a intensificação da fiscalização e punição (se é que pode assim ser considerada a multa paga pelos fazendeiros) em determinadas regiões faz com que haja diminuição dos casos locais, mas pode da mesma forma colaborar para o avanço da prática para outras regiões mais isoladas, principalmente na fronteira agropecuária.

Mapa 8 : Trabalhadores libertados – 1995-2012 (Comparação)

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50Sobre a relação entre o local de libertação e a residência dos trabalhadores escravizados no período 2007-2012 (Mapa 9), é possível verificar três tipos de regiões/municípios: a) com predomínio da prática de escravização, mas não sendo escravizados trabalhadores do mesmo municípios ou regiões próximas, caso este verificado principalmente no estado de São Paulo, metade sudoeste de Minas Gerais, Mato Grosso, oeste da Bahia e Sul de Goiás – regiões de agricultura “moderna”; b) com trabalhadores libertados e residentes na mesma região, como pode ser visto no sul de Mato Grosso do Sul, nas capitais do Rio de Janeiro, São Paulo, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Ceará e no leste do Pará e extremo oeste do Maranhã, nesses dois últimos casos, pela existência dos peões do trecho, que mesmo quando libertados permanecem nas regiões por resistirem à volta para seus locais de origem; c) com predominância de trabalhadores residentes, mas não de casos de libertação, sendo essas regiões muito pobres e caracterizadas pelo fornecimento da mão de obra escrava, como pode ser observado em quase a totalidade do Maranhão, interior do Nordeste e norte de Minas Gerais.

Mapa 9 : Trabalhadores libertados e residência – 2007-2012

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51Como destacado na primeira parte deste trabalho, a origem socioterritorial dos trabalhadores escravizados é caracterizada pela pobreza, o que reflete em vários indicadores socioeconômicos negativos. Isso porque, em uma sociedade baseada na produção capitalista e cujo Estado subsidia, apoia e utiliza este modo de produção, a maioria da população só tem acesso aos meios para sua manutenção e de sua família através da venda do seu trabalho e apropriação da mais-valia pelo capital. Se o indivíduo não encontra quem queira explorar sua força de trabalho e pagar por parte dela, ele e sua família estão fadados à pobreza e condições subumanas de vida, já que o Estado, quando admite algum tipo de assistência, é incompetente (caso da saúde, habitação, previdência) ou então a fornece de forma mínima e medíocre (caso da bolsa família).

52Por isso, por considerar a renda o elemento decisivo para as demais situações socioeconômicas, foram cruzados os dados de trabalhadores libertados e origem dos trabalhadores com os dados da dimensão renda do IDH (IDH-R) de 2010. O mapa 10 relaciona o local de residência após a libertação e o IDH-R. Apenas 17,2% dos trabalhadores libertados residem em municípios com IDH-R alto (16,2%) ou muito alto (1%). Ao contrário, se somados os trabalhadores libertados e que residem em municípios com IDH-R nas classes médio (34,6%), baixo (44,5%) e muito baixo (2,8%), totaliza-se 81,9% dos casos. A frequência de residência dos trabalhadores libertados em municípios com IDH-R baixo ou muito baixo é 12,7 maior do que a classificação dos municípios brasileiros de IDH-R nessas classes, ou seja, enquanto 34,7% dos municípios brasileiros são classificados com IDH-R baixo ou muito baixo, 47,3% dos trabalhadores libertados são de municípios em IDH-R baixo ou muito baixo.

53 O Mapa 9, quando comparado com o mapa de residência da prancha 01 mostra que, em relação aos dados de até 2006, a residência dos trabalhadores tornou-se mais homogênea pelo território brasileiro, deixam de estar quase absolutamente concentrada no Pará, Maranhão, Tocantins e Piauí. O Centro-Sul passou a ser local importante de residência dos trabalhadores resgados, o que pode ter relação, - além do aumento do número de fiscalizações nessas regiões, que talvez seja o fato com mais peso explicativo -, também o processo migratório em busca de trabalho, já analisado anteriormente. Parte desses trabalhadores, mesmo depois de libertados, tende a permanecer no município ou em municípios vizinhos na esperança de um trabalho melhor, já que essas são regiões com significativa oferta de trabalho.

Mapa 10 : Residência dos trabalhadores libertados (2007-2012) e IDH-Renda (2010)

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54Analisando relação entre libertação e o IDH-R dos municípios onde ocorrem, encontra-se o seguinte quadro: 23,7% das libertações ocorrem em municípios com IDH-R baixo ou muito baixo, 39,4% dos trabalhadores são libertados em municípios com IDH-R médio e 36,3% dos trabalhadores são libertados em municípios com IDH-R alto e muito alto. Em resumo, os trabalhadores libertados estão concentrados 7,5% mais em municípios com IDH-R alto ou muito alto e 10,4% mais se considerada também a classe de IDH-R médio.

55Em síntese, comparando IDH-R, libertação e residência dos trabalhadores escravizados, há uma tendência de que os trabalhadores sejam oriundos de municípios com IDH-R baixo e muito baixo, ao passo que os processo de libertação tende a ser pouco mais comum em municípios com IDH-R médio, alto e muito alto. Esta é uma importante constatação para se pensar os impactos do crescimento econômico sobre o trabalho via intensificação das estratégias de submissão do trabalho.

Mapa 11 – Trabalhadores libertados (2007-2012 e IDH-Renda (2010)

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Conclusões

56No mapeamento exploratório dos dados de libertação de trabalhadores escravizados entre 1995 e 2006, foi possível confirmar a relação entre pobreza e suscetibilidade ao aliciamento e entre a prática do trabalho escravo e a violência. Ao estabelecer correlações entre dados do trabalho escravo (condições de vida do trabalhador, suas condições sociais, tipos de atividades econômicas exercidas, violências e assassinatos), detectou-se as principais estruturas do trabalho escravo no Brasil. Com isso, espera-se ter sido possível construir uma análise que, no conjunto dos vários estudos realizados sobre o tema, contribui para: a) orientar a busca e repressão de casos de escravização, já que por enquanto as investigações de campo são motivadas principalmente por denúncias e b) contribuir para políticas de prevenção, detectando as regiões mais vulneráveis ao aliciamento de trabalhadores.

57Sobre a comparação dos períodos 1995-2006 e 2007-2012, concluiu-se que houve uma clara mudança regional da prática do trabalho escravo, podendo ser aventadas duas hipóteses: de que o número de trabalhadores aumentou em outras regiões por causa do aumento do número de fiscalizações ou que a situação de crescimento econômico do país e grande demanda por mão de obra fez com que a prática deste crime contra o trabalhador aumentasse, principalmente nas culturas “modernas” do Centro-Sul e nos canteiros de obra da construção civil. Não está descartada a possibilidade das duas hipóteses serem verdadeiras.

58A comparação entre IDH-R, residência e libertação dos trabalhadores demonstra que, neste caso, o IDH-R mais elevado não reflete necessariamente formas menos exploratórias de trabalho, mas o contrário é verificado. Como na primeira análise apresentada no texto, a origem dos trabalhadores ainda tem forte relação com baixa qualidade de vida, sendo que foi verificada concentração de origem dos trabalhadores de municípios com os níveis mais baixos de IDH-R.

59Por fim, retomamos nossa afirmação do início deste artigo, segundo a qual o trabalho escravo contemporâneo é parte de um quadro mais amplo que configura a questão agrária brasileira, cujas raízes estão no modo concentrador como a terra e o poder político e econômico foram concentrados e permitiram formas de desintegração do campesinato e exploração do trabalho. Talvez a evidência mais clara desta ligação seja a resistência do congresso nacional em aprovar a PEC do Trabalho Escravo, que prevê a desapropriação, sem nenhum pagamento ou indenização ao proprietário, das propriedades onde forem encontrados trabalhadores escravizados.

60O principal argumento utilizado por aqueles que são contrários à PEC do Trabalho Escravo é de que seria difícil definir o que é trabalho escravo e a situação de trabalho escravo dos trabalhadores. Porém, isso não passa de uma estratégia para que a propriedade privada da terra não seja tocada, já que nem mesmo no que se refere à reforma agrária a Constituição Federal permite a sua supressão com ônus ao proprietário, visto que a as benfeitorias e a terra são pagas em caso de desapropriação para a reforma agrária. A aprovação da PEC do trabalho escravo seria o principal instrumento para inibir este claro crime já reconhecido pelo Estado brasileiro, que ainda não pune adequadamente os criminosos. A PEC também seria um avanço para a reforma agrária, principalmente porque o público prioritário seriam os próprios trabalhadores libertados que, conforme a pesquisa da OIT (2011), são justificadamente público da reforma agrária.

Por que alguns países são mais propensos a registrar condições de trabalho análogo a escravidão?

Resposta. Resposta: São mais propensos a registrar esses números também por falta da liberdade de expressão.

Quais são os fatores que influenciam na ocorrência do trabalho escravo?

Condições degradantes de trabalho, alimentação e alojamento; aquisição de dívidas, além da passagem, com ferramentas, alimentação, alojamento; e a retenção dos documentos, até que as vítimas quitem as suas dívidas.

Qual o país que tem mais trabalho escravo?

Coreia do Norte é o país com maior taxa de pessoas em condições análogas à escravidão. Em números absolutos, Brasil lidera na América Latina, enquanto Índia encabeça a lista mundial.

Quais as principais características do trabalho análogo à escravidão?

149 do Código Penal Brasileiro, o trabalho análogo a de escravo é caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.