É possível falar que um tratado internacional revoga uma norma de direito interno?

Fernando Munhoz Ribeiro
Master of Laws (LL.M.) em Direito Tributário Internacional pela Vienna University of Economics and Business (Wirtschaftsuniversität Wien), Áustria. Mestrando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado em São Paulo. E-mail:

Resumo. O presente artigo trata da relação entre os tratados internacionais firmados pelo Brasil em matéria tributária e a legislação doméstica e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema. A análise tomará como ponto de partida a norma construída a partir do art. 98 do Código Tributário Nacional e enfrentará as críticas apresentadas pela doutrina; a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça; e, por fim, a possibilidade (ou não) de treaty override no Ordenamento Jurídico brasileiro.

Palavras-chave: tratados internacionais, legislação doméstica, tributação, hierarquia, jurisprudência

Abstract. This paper examines the relation among double tax treaties concluded by Brazil and domestic laws and case law from Supreme Court and Superior Court of Justice regarding the matter. The essay addresses the subject by analyzing Article 98 of Brazilian Tax Code and critics made by Brazilian scholars; in which way Supreme Court and Superior Court of Justice understand the position of double tax treaties in comparison with domestic law; and, the possibility of treaty override pursuant Brazilan Constitutional System.

Keywords: double tax treaties, domestic law, Brazilian case law, ,

Considerações iniciais

A convivência entre tratados internacionais e legislação doméstica no Ordenamento Jurídico brasileiro é alvo de intensos debates, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, em especial do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.

A Constituição Federal estabelece, no seu art. 84, inciso VIII, que compete privativamente ao Presidente da República a celebração de tratados internacionais, os quais ficam sujeitos a referendo do Congresso Nacional. Ao desempenhar tal função, o Presidente da República atua como representante do Estado brasileiro, não apenas como chefe do Poder Executivo, na conclusão de acordo na arena internacional que poderá implicar o surgimento de direitos e obrigações.

Em especial no que toca aos tratados internacionais que dispõem sobre matéria tributária, um dos objetivos a ser alcançado é justamente afastar, ou reduzir, os efeitos da múltipla tributação a que um mesmo rendimento poderá estar sujeito quando originado de operação envolvendo mais de um Estado com competência para instituir a exigência e também esteja presente um elemento de conexão que a possibilite. A repartição de competência tributária é um dos principais motivos que levam os Estados a concluir tratados internacionais na seara tributária, o que implica, sob a perspectiva da soberania, uma limitação consentida e desejada desta, mediante a assunção do compromisso de não tributar ou instituir mecanismo para aliviar a tributação sobre determinado rendimento que se origina (fonte pagadora) ou se destina (residência do beneficiário) em um dos Estados contratantes.

Nessa linha de raciocínio, oportunas as palavras de Schoueri (2013, p. 419) ao relacionar os tratados internacionais como instrumento limitador da jurisdição do Estado contratante:

“[…] reconheçam-se os tratados internacionais como integrantes da ordem internacional ou da ordem interna, a conclusão será, sempre, de que são eles os instrumentos que definirão o alcance da jurisdição nacional; uma vez definida a jurisdição pelo meio próprio, não pode uma lei dispor sobre assunto que ultrapasse os limites impostos pelo tratado, por falta de competência.”

Não obstante o compromisso assumido no contexto internacional, uma vez que é pressuposto que as manifestações de vontade externadas pelos representantes dos Estados contratantes são legítimas e refletem a intenção de cumpri-las, o debate emerge, pois, quanto à forma de recepção do tratado internacional e a posição em que se coloca o tratado internacional na estrutura hierárquica dos diplomas legislativos no Ordenamento Jurídico brasileiro. Estes aspectos assumem grande relevância e questões delicadas precisam ser enfrentadas.

O primeiro ponto é o concernente ao modo como os tratados internacionais são admitidos pelo Ordenamento brasileiro. A doutrina se divide entre teoria monista e teoria dualista.

Pela concepção monista, não há distinção entre a ordem jurídica interna de um Estado e a ordem internacional, em cujo contexto foi celebrado o tratado internacional (KELSEN, 2005, p. 515-517). Para os defensores dessa corrente, e cite-se XAVIER (2015, p. 88 e 91), partindo da premissa de que há tão somente uma ordem, os tratados internacionais concluídos pelo Estado são recepcionados automaticamente pela legislação interna e devem ser aplicados imediatamente. Afirma-se, em acréscimo, que o tratado está imune, inclusive, à legislação posterior que contiver previsão contrária ao disposto no ato internacional. E isto porque, sendo o Brasil um dos signatários da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (aprovada pelo Decreto Legislativo n. 496/2009 e promulgada pelo Decreto n. 7.030/2009), quaisquer atos tendentes à sua modificação, denúncia ou extinção, deverão observar as cláusulas específicas do acordo ou, na sua ausência, da Convenção (a citar, arts. 42 e 56, por exemplo).

Em reforço, a própria Convenção de Viena positivou o princípio da pacta sunt servanda no seu art. 27, segundo o qual “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. Destarte, segundo esta corrente, os tratados internacionais – por se tratar de compromisso assumido na arena internacional, que implica limitação da própria soberania do Estado, e que possui mecanismos de modificação, denúncia ou extinção próprios – integram o Ordenamento Jurídico automaticamente e em posição hierárquica superior à legislação interna (XAVIER, 2015, p. 94), com força a impedir sejam atingidos até pela legislação superveniente.

Em oposição à essa linha, a teoria dualista – preconizada por Karl Heinich Triepel e Irineu Strenger (apud SCHOUERI, 2013, p. 419) – sustenta que a eficácia e vigência do tratado internacional perante a ordem interna estão condicionadas à sua transformação em legislação doméstica. Na perspectiva do Ordenamento Jurídico brasileiro, essa transformação dar-se-á com a aprovação do texto do acordo internacional pelo Congresso Nacional e a subsequente promulgação pela Presidência da República.

O fato de a Constituição Federal ter atribuído ao Congresso Nacional a função de “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais” (art. 49, inciso I) e submeter os tratados internacionais firmados pelo Presidente da República “a referendo do Congresso Nacional” (art. 84, inciso VIII) é indicativo da adoção, pelo Ordenamento Jurídico brasileiro, da teoria dualista. Este ponto será, para os fins do presente trabalho, tomado como premissa.

Entretanto, não se pode olvidar que a relação entre Estados e o Direito Internacional possui forte sustentação na prática consuetudinária e no princípio da reciprocidade (MELLO, 2004, p. 100), razão pela qual deve ser constante o esforço para cumprir todos os compromissos assumidos internacionalmente pelo país. E, ademais, na Constituição Federal e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias são encontradas disposições, como os arts. 178 1 e 52 2, respectivamente, que contêm expressas referências à necessidade de observância dos acordos internacionais firmados nas áreas que dizem respeito e do princípio da reciprocidade.

Na sequência, uma vez admitida a recepção – independentemente se de acordo com a teoria monista ou dualista – do tratado internacional e estando em plena vigência, o desafio se dirige à definição da posição hierárquica que este assume na estrutura do Ordenamento Jurídico brasileiro.

Este será o objeto do presente ensaio, cuja análise tomará como ponto de partida a norma construída a partir do art. 98 do Código Tributário Nacional e o enfrentamento das questões atinentes, bem como as críticas apresentadas pela doutrina; a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça; a possibilidade (ou não) de treaty override no Ordenamento Jurídico brasileiro.

O art. 98 do Código Tributário Nacional

O art. 98 do Código Tributário Nacional estabelece que os tratados internacionais tributários “revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. Tendo como premissa que a Constituição Federal de 1988 encampou a teoria dualista, mostra-se pertinente investigar se a previsão do Código Tributário Nacional, lei ordinária editada em 1966 e que fora recepcionada pela Carta Política de 1988 com status de lei complementar (art. 146, inciso III), teria o condão de estabelecer que os tratados internacionais assumem posição hierárquica superior à legislação interna infraconstitucional e mesmo capacidade de limitar a atuação do Poder Legislativo.

A redação do preceito em foco não se preocupou com a técnica e alude ao termo revogação de modo inapropriado. A revogação está relacionada à edição de uma nova norma jurídica que tenha a capacidade de obstar a aplicação da norma revogada às situações posteriores à criação da norma revogadora. A norma revogada não perde a sua vigência de imediato, na medida em que continua ostentando esta qualidade e eficácia técnica para disciplinar e regular condutas concretizadas no período precedente à introdução da norma revogadora. O óbice é tão somente para o período subsequente. Moussalem (2005, p. 188) discorre com bastante precisão como se opera a revogação:

“Vê-se de plano que a ‘revogação’ de uma ‘norma’ passa por várias etapas até que seja definitivamente expulsa do sistema. Isso se passa porque o ato de fala revogador, quando visto pelo espectro perlocucionário, não atua diretamente sobre a vigência ou validade do enunciado revogado, mas principia o ataque à impossibilidade de aplicação do enunciado revogado para a criação de enunciados-enunciados cujo tempo seja posterior ao tempo do ato de fala revogatório.

Por isso, a melhor forma de se enxergar o fenômeno da revogação é na sucessão de atos perlocucionários no tempo linguístico. Primeiro, ataca-se a aplicação e, somente em tempos posteriores, a vigência e a validade são acometidas.”

Entretanto, ao revés do que se verifica quando há revogação de uma norma jurídica, no tratado internacional não se encontra a capacidade de criação de normas jurídicas de aplicação geral e irrestrita com potencial de atingir as normas construídas a partir dos enunciados prescritivos da legislação doméstica. E a razão é simples: os tratados internacionais em matéria tributária têm aplicação bastante restrita e, apenas quando houver uma situação que apresente elemento de conexão que possibilite o exercício da competência tributária por dois Estados e estes tenham celebrado um acordo para evitar a dupla tributação, aplicar-se-á a convenção internacional, por ser especial em relação à lei interna.

Não há, tecnicamente, revogação de uma norma pela outra, mas de convivência de dois diplomas legislativos válidos e com plena vigência, mas cuja eficácia técnica da lei interna poderá ser limitada pelo critério da especialidade, desde que estejam presentes as condições (elemento de conexão e existência do tratado internacional) que atraem a aplicação do acordo internacional, por ser especial, em prejuízo da lei doméstica. Grupenmacher (1999, p. 113) leciona nesse sentido:

“Incorreu, no entanto, em equívoco, o legislador, ao falar em revogação da norma interna por aquela de natureza internacional. Genuinamente, não se está diante de uma ab-rogação, já que a norma interna permanece válida e eficaz dentro do ordenamento jurídico-positivo pátrio. No entanto, a sua eficácia fica paralisada, exclusivamente, em relação aos atos e fatos disciplinados pela norma internacional conflitante. A lei interna tem, assim, sua eficácia restrita a um grupo de indivíduos e situações, ao que se denomina de derrogação.

Não se trata portanto de revogação da legislação interna, que continua válida e eficaz para as demais hipóteses que não forem disciplinadas pelo tratado. Trata-se de uma ‘paralisação’ da eficácia da norma interna nas situações específicas e absolutamente delimitadas, disciplinadas pela norma convencional.”

Xavier (2015, p. 104) também ressalta a imprecisão técnica da redação do art. 98 do Código Tributário Nacional:

“Observe-se, em homenagem à exatidão, que é incorreta a redação deste preceito quando se refere à ‘revogação’ da lei interna pelos tratados tributários. Com efeito, não se está aqui perante um fenômeno ab-rogativo, já que a lei interna mantém sua eficácia plena fora dos casos subtraídos à sua aplicação pelo tratado. Trata-se, isso sim, de limitação da eficácia da lei que se torna relativamente inaplicável a certo círculo de pessoas e situações, limitação esta que caracteriza precisamente o instituto da derrogação e decorre da relação de especialidade entre tratados e leis, particularmente no que concerne às leis tributárias.”

Apesar da imprecisão terminológica do enunciado prescritivo em questão, a conclusão é de que o tratado internacional, uma vez aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Presidente da República, convive com a legislação interna e tem aplicabilidade restrita. Os conflitos, todavia, serão solucionados pelo critério da especialidade, conforme esclarece Barreto (2001, p. 171): em matéria tributária as antinomias entre tratado e lei interna, que não decorram de direitos e garantias fundamentais do cidadão, resolvem-se mediante a aplicação do critério da especialidade.

Portanto, podemos afirmar que a prevalência do tratado internacional sobre a legislação interna é resultado da aplicação da regra da especialidade, não porque há revogação.

Porém, é oportuno analisar se, a partir do que dispõe o art. 98, é possível concluir que o tratado internacional está em posição hierárquica superior à legislação interna.

De outro lado, o comando contido na parte final do dispositivo, segundo o qual os tratados “serão observados pela que lhes sobrevenha”, coloca em discussão a possibilidade destes em nortear, e limitar, a atividade legislativa subsequente. A resposta positiva a essa questão conduz à ideia de que os tratados internacionais assumem posição hierárquica superior à legislação interna.

Afirmamos acima que compartilhamos do entendimento preconizado por Schoueri (2013, p. 419) de que os tratados internacionais são instrumentos que limitam, de modo consentido e voluntário, a jurisdição de um Estado soberano. E, conforme estatuído pela Constituição Federal, o Presidente da República tem competência para firmar tais acordos e, uma vez chancelado pelo Congresso Nacional, são recepcionados pelo Ordenamento Jurídico brasileiro. Portanto, a manifestação de vontade expressa nos tratados internacionais tributários, ainda que limitadora da atuação da União, visto que estes, geralmente, colimam impedir a dupla tributação pelo imposto sobre a renda, está em consonância com a Carta Política.

Nessa linha de raciocínio, e tomando o Código Tributário Nacional também como veiculador de normas que limitam o exercício da competência tributária (CARRAZZA, 2006, p. 907 e 908), em complemento às disposições constitucionais, entendemos que a norma construída a partir do seu art. 98 é constitucional e suficiente para assentar que os tratados internacionais se posicionam hierarquicamente acima da legislação interna e restringem a atuação do legislador ao editar novos enunciados prescritivos passíveis de aplicação em situação coberta pelo tratado.

Schoueri (2013, p. 433 e 434), ainda que defenda a constitucionalidade do art. 98, aponta que uma exceção seria observada quando, ao criar novo enunciado prescritivo, o veículo introdutor contiver expressa determinação de afastamento de uma cláusula existente no acordo internacional – esta, sem considerar os deletérios efeitos que atitude desse jaez possa ocasionar no contexto global e o desrespeito ao procedimento previsto na Convenção de Viena para modificação e denúncia de uma convenção.

“13.4.8 Do mesmo modo, deve-se entender que no Brasil, ainda que não houvesse – como há – mandamento constitucional exigindo a observância, pelo legislador interno, das garantias decorrentes de acordos internacionais, o disposto no artigo 98 do Código Tributário Nacional continuaria aplicável, prevalecendo o acordo de bitributação sobre a lei interna, quando esta não dispusesse expressamente sua intenção de sobrepor-se ao que foi contratado internacionalmente.”

Não estamos convencidos do acerto da ressalva indicada pelo Professor paulista, visto que o Código Tributário Nacional, na figura de lei complementar introdutora de limitação ao exercício da competência tributária, estatui que a legislação posterior deverá ser observada na edição de enunciados prescritivos supervenientes. Em outras palavras, e sempre ressalvando que esta restrição é dirigida às disposições que poderiam afetar a aplicação do tratado internacional, o legislador encontra no acordo firmado um obstáculo inibidor da sua atuação. A extinção do tratado internacional, se este for o desejo do Estado, deve ser manifestada no ambiente e mediante o procedimento próprios, não pela via da legislação ordinária.

A posição contrária, pela inconstitucionalidade do art. 98, é preconizada por importantes vozes (CARRAZZA, 1995, p. 182-191; BARRETO, 2001, p. 168; HORVATH, 1995, p. 262-268). Rocha (2007, p. 80) sustenta que a norma derivada desta disposição não se encaixa no grupo de normas gerais de direito tributário e nem como uma limitação ao poder de tributar:

“Diz-se que a legitimidade do artigo 98 é decorrência de se encontrar o mesmo encartado na lei complementar que traz normas gerais de Direito Tributário. Contudo, a previsão da supremacia dos tratados e convenções internacionais sobre o direito interno não parece inserir-se no conjunto das normas gerais de Direito Tributário.

Afirma-se que o artigo 98 trataria de uma limitação ao poder de tributar. Ora, o artigo 146 ao estabelecer caber à lei complementar tratar das limitações ao poder de tributar refere-se àquelas que se encontram previstas no texto constitucional, entre as quais não está elencada a situação de que se cogita. Assim, de forma alguma trata-se o artigo 98 de regra que veicula a regulamentação de uma limitação ao poder de tributar.

Dessa forma, somos da opinião de que o artigo 98 do Código Tributário Nacional não é compatível com a Constituição Federal. Na verdade, cremos que tal artigo já nasceu inconstitucional.”

Não entendemos, como sublinha o Professor fluminense, que o disposto no art. 98 do Código Tributário Nacional não se encaixaria dentre as normas gerais de direito tributário. Como tivemos oportunidade de salientar, somos da posição de que o art. 98 se insere no conjunto das normas que limitam o exercício da competência tributária, que encontra abrigo no art. 146, inciso II, da Constituição Federal.

Trata-se de uma delimitação ao exercício da competência tributária que decorre das normas jurídicas que (i) autoriza o Presidente da República, atuando em nome do Estado brasileiro, a celebrar tratados internacionais, dentre estes os que cuidam de questões tributárias, (ii) prevê a sua incorporação ao Ordenamento Jurídico pátrio com o referendo do Congresso Nacional e promulgação pela Presidência, e (iii) confere à lei complementar a função de regulamentar as limitações ao poder de tributar.

A posição do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de apreciar o tema concernente à posição hierárquica dos tratados internacionais no Ordenamento Jurídico brasileiro e, pois, a possibilidade de uma lei ordinária posterior dispor em sentido contrário.

Muito embora não diga respeito à questão tributária e o tema tenha sido apreciado sob os auspícios de regime constitucional anterior, o acórdão proferido no Recurso Extraordinário n. 80.004 3 é de grande relevância. No caso apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, em breve síntese, discutia-se se uma lei ordinária poderia dispor de modo diverso ao previsto na Convenção de Genebra sobre letras de câmbio e notas promissórias.

Naquela oportunidade – e sem adentrar na minúcia de cada um dos votos proferidos –, partindo-se da premissa de que o Ordenamento Jurídico brasileiro acolheu a teoria dualista, prevaleceu o entendimento de que a legislação doméstica subsequente é instrumento adequado para revogar preceito contido no acordo internacional. Afirmou-se que o tratado somente vincularia o país no contexto internacional, não internamente, ainda que suscetível a apresentação de reclamação por outro Estado. Passagem do voto proferido pelo Ministro Cordeiro Guerra reflete essa posição:

“Argumenta-se que a denúncia é o meio próprio de revogar um tratado internacional. Sim, no campo do direito internacional, não porém, no campo do direito interno. Quanto muito, poderá, face à derrogação do tratado por lei federal posterior, ensejar reclamação de uma outra parte contratante perante o governo, sem contudo afetar as questões de direito interno.”

A conclusão alcançada, portanto, é que conflitos entre legislação interna e tratado internacional devem ser solucionados pelos critérios cronológicos e da especialidade (ROCHA, 2007, p. 25), visto que estão na mesma posição hierárquica.

Com enfoque no art. 98 do Código Tributário Nacional, no Recurso Extraordinário n. 100.105 4, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela aplicabilidade do dispositivo e prevalência do tratado internacional sobre a legislação interna. Porém, foi introduzido novo elemento como justificativa para o posicionamento da Corte, que pode ser observado no excerto do voto do Ministro Moreira Alves:

“As considerações desenvolvidas pelo acórdão recorrido, para sustentar que, em nosso sistema jurídico, a lei ordinária posterior pode revogar tratado anteriormente celebrados não são aplicáveis à questão em causa, porquanto, mesmo os que têm dúvida sobre a constitucionalidade do disposto no artigo 98 do C.T.N. (‘Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha’), adstringem essa dúvida aos tratados normativos, não abarcando, nela, os tratados contratuais, como se vê, por exemplo, nos votos dos Srs. Ministros Cunha Peixoto, Cordeiro Guerra e Leitão de Abreu, no RE 80.004 (RTJ 83, págs. 824, 829 e 838). No presente caso, a questão diz respeito ao Tratado de Montevidéu, que não é tratado normativo, mas, sim, tratado contratual, razão por que se lhe aplica, sem dúvida alguma, a norma do artigo 98 do C.T.N.”

A classificação entre tratados normativos e tratados contratuais, segundo Dolinger (1996, p. 104), toma como critério caracterizador a natureza das normas contidas no tratado internacional: (i) serão normativos aqueles que contiverem normas comuns e uniformes que são introduzidas nos ordenamentos dos países signatários; e, (ii) contratuais os que estabelecem vantagens recíprocas e específicas em favor dos Estados contratantes, veiculando pequenas modificações no sistema jurídico.

No acórdão relatado, cujo racional foi seguindo por algumas decisões posteriores, o tratado internacional em matéria tributária foi enquadrado no grupo dos tratados contratuais e, por esse motivo, deveria prevalecer sobre a legislação doméstica, a teor do art. 98 do Código Tributário Nacional. De acordo com essa linha de pensamento, o art. 98 somente seria aplicável, e assegurada a prevalência do tratado internacional tributário, por ostentar natureza eminentemente contratual.

Também com grande repercussão, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na apreciação da Medida Cautelar pleiteada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.480 5, posto não tenha enfrentado o tópico concernente à relação entre tratados internacionais e legislação interna, lidou com a relação entre o direito internacional e a Constituição Federal. Neste particular, foi ressaltada a supremacia da Constituição Federal sobre o direito internacional e que, uma vez internalizado o tratado internacional com a aprovação pelo Congresso Nacional e edição do decreto legislativo, a constitucionalidade destes poderá ser investigada tanto pela via do controle concentrado quanto pela difusa.

Acrescente-se a apreciação do Recurso Extraordinário n. 466.343, no qual foi enfrentado o ponto concernente à posição hierárquica, no Ordenamento Jurídico brasileiro, dos tratados internacionais que dispõem sobre direitos humanos e que não tenham sido aprovados segundo o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal.

O parágrafo aludido foi introduzido pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004, e reza que “tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Neste caso, prevaleceu o entendimento de que, se não houver aprovação do tratado internacional sobre direitos humanos na forma prevista no art. 5º, § 3º, este ocupará lugar acima da legislação infraconstitucional, porém abaixo da Constituição Federal. Ou seja, ostentaria natureza supralegal e, pois, capacidade de afetar a eficácia da legislação posterior conflitante com o tratado internacional.

Por fim, tratando especificamente de caso envolvendo um tratado internacional em matéria tributária, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário n. 460.320, cuja relatoria coube ao Ministro Gilmar Mendes e que está suspenso em virtude do pedido de vista do Ministro Dias Toffoli. Tendo em vista a sua singularidade – conhecido como “caso Volvo”, por envolver a empresa sueca – e por abordar a questão sobre o prisma tributário, reputamos oportuno apresentar breve contextualização do caso.

A Lei n. 8.383/1991, no seu art. 75, concedeu isenção do imposto sobre a renda retido na fonte sobre os lucros distribuídos a pessoas físicas ou jurídicas residentes no Brasil. Por outro lado, o art. 97, alínea “a”, do Decreto-lei n. 5.844/1943, estabelece que os rendimentos percebidos por pessoas físicas ou jurídicas residentes no exterior estão sujeitos à retenção do imposto sobre a renda (alíquota de 15%).

No tratado celebrado entre Brasil e Suécia – aprovado pelo Decreto Legislativo n. 93/1975 e promulgado pelo Decreto n. 77.053/1976 –, o art. 24 prevê a cláusula de não discriminação, cujo item 1 impede que um Estado contratante confira tratamento, para fins tributários, distinto ao nacional do outro Estado contratante quando se encontrarem na mesma circunstância. De modo exemplificativo, o item 1 dessa cláusula de não discriminação estatui que, caso um dos Estados contratantes estabeleça que os seus nacionais não sofrerão incidência de imposto sobre a renda na distribuição de dividendos, desde que residentes naquele território, idêntico tratamento deverá ser destinado aos nacionais do outro Estado contratante que estejam na mesma situação (também residentes no primeiro Estado).

Como visto, o tratado firmado entre Brasil e Suécia foi aprovado em 1975 e promulgado em 1976 e a legislação que previu a isenção do imposto sobre a renda na distribuição de lucros a pessoas residentes no Brasil foi editada em 1991. Logo, a questão a ser solucionada na demanda é a possibilidade de aplicação do art. 75 da Lei n. 8.383/1991, que instituiu a isenção do imposto sobre a renda na distribuição de lucros aos residentes no Brasil, ao nacional sueco residente na Suécia, sob a perspectiva da cláusula de não discriminação do tratado Brasil e Suécia.

No único voto proferido até o momento, o Ministro Gilmar Mendes empreende interessante digressão histórica da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito do método de solução de conflitos entre legislação interna e tratados internacionais, com alusão, inclusive, ao posicionamento manifestado por ele no julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343, acima abordado. Ao enfrentar o comando do art. 98 do Código Tributário Nacional, o Ministro ressalta sua recepção pela Constituição Federal de 1988, independentemente da classificação dos tratados entre normativos e contratuais, e afirma a prevalência do acordo internacional quando confrontado pela legislação doméstica. Merece transcrição relevante trecho do voto:

“Portanto, parece evidente que a possibilidade de afastar a aplicação de normas internacionais tributárias por meio de legislação ordinária (treaty override), inclusive no âmbito estadual e municipal, está defasada com relação às exigências de cooperação, boa-fé e estabilidade do atual cenário internacional e, sem sombra de dúvidas, precisa ser refutada por esta Corte.

Como enfatizei no voto do RE 466.343/SP, o texto constitucional admite a preponderância das normas internacionais sobre normas infraconstitucionais e claramente remete o intérprete para realidades normativas diferenciadas em face da concepção tradicional do direito internacional público.

[…]

Como exposto, o tratado internacional não necessita ser aplicado na estrutura de lei ordinária ou lei complementar, nem ter status paritário com qualquer deles, pois tem assento próprio na Carta Magna, com requisitos materiais e formais peculiares. Dessa forma, à luz dos atuais elementos de integração e abertura do Estado à cooperação internacional, tutelados no texto constitucional, o entendimento que privilegie a boa-fé e a segurança dos pactos internacionais revela-se mais fiel à Carta Magna.

No mínimo, a Constituição Federal permite que norma geral, também recebida como lei complementar por regular as limitações constitucionais ao poder de tributar (art. 146, II e III, da CF/1988), garanta estabilidade dos tratados internacionais em matéria tributária, em detrimento de legislação infraconstitucional interna superveniente, a teor do art. 98 do CTN, como defende autorizada doutrina […].

Registre-se que, nessa linha, a recepção do art. 98 do CTN pela Constituição Federal independe da desatualizada classificação em tratados-contratos (contractual treaties, traités-contrats, rechtgeschäftlichen Verträge) e tratados-leis (law-making treaties, traités-lois, rechtsetzende Verträge), que, aliás, tem perdido prestígio na doutrina especializada […].”

Assim, por prevalecer o tratado internacional Brasil e Suécia, no voto em comento, passou-se à apreciação se a cláusula de não discriminação invocada fundamentaria a extensão da isenção do imposto sobre a renda na distribuição do lucro ao nacional sueco residente na Suécia. A conclusão a que se chegou foi a de que a isenção não deveria ser aplicada na espécie, na medida em que o art. 24 do tratado Brasil e Suécia elege como critério de conexão atrativo da sua aplicação a nacionalidade, enquanto que a Lei n. 8.383/1991 leva em conta o critério residência.

Pondere-se que o julgamento do Recurso Extraordinário n. 460.320 não foi concluído, de modo que o posicionamento do Ministro Gilmar Mendes não pode ser tomado como representativo do entendimento atual do Supremo Tribunal Federal.

A posição do Superior Tribunal de Justiça

No Superior Tribunal de Justiça, dada a limitação constitucional às matérias que poderão ser apreciadas, as primeiras manifestações seguiram a jurisprudência que prevalecia no Supremo Tribunal Federal na década de 1980.

A posição predominante na Corte Superior foi externada no julgamento do Recurso Especial n. 34.932-5/PR 6. Fincado na premissa segundo a qual o art. 98 do Código Tributário Nacional assegura a prevalência, sobre a legislação doméstica, apenas dos tratados internacionais específicos e com natureza contratual (MELLO, 1999, p. 27), concluiu que os outros acordos firmados no contexto internacional teriam a mesma estatura da lei interna.

Nessa linha de raciocínio, concluiu o Superior Tribunal de Justiça que conflitos existentes entre disposição de tratado internacional e legislação doméstica deverão ser solucionados pelos critérios da especialidade e cronológico. Aduz, apenas de passagem e sem enfrentar o item com maior profundidade, que a parte final do art. 98 do Código Tributário Nacional incorreria, inclusive, em inconstitucionalidade ao prever que a legislação superveniente deveria observar os termos de tratados internacionais.

O Tribunal Superior apreciou novamente o tema quando do julgamento do Recurso Especial no caso Volvo 7, já aludido no item precedente. O voto vencedor, em posição inaugurada com a divergência do Ministro José Delgado em relação ao entendimento do Ministro Teori Zavascki, atribui grande destaque a princípios que foram alçados à categoria de “direitos fundamentais globalizados”, para utilizar a expressão empregada por seu autor, que conduziriam à prevalência da cláusula de não discriminação na espécie.

Apesar de se posicionar pela prevalência do tratado internacional sobre a legislação interna – não com fundamento no art. 98 do Código Tributário Nacional, mas nos ditos direitos fundamentais globalizados –, não concordamos com as razões invocadas pelo Ministro José Delgado, que coloca tais garantias em posição hierárquica superior à Constituição Federal, refletidas na passagem abaixo:

“Em termos práticos, o que se discute é o fenômeno da dupla tributação. Esta vem sendo condenada – talvez o termo seja muito forte – por princípios que estão acima até da própria norma constitucional. Sabemos que hoje os princípios estão se sobrepondo às tendências de globalização já existentes em todos os sentidos, especialmente em tema de Direito Tributário.

Em síntese, entendo que devemos dar prevalência à aplicação da interpretação da norma infraconstitucional em relação aos tratados e à norma interna, ao princípio de proibição de dupla incidência tributária, preceito maior que gera as relações tributárias internacionais e ao chamado princípio da equiparação de tratamento, que regula as relações jurídico-tributárias internas e externas. Sei que uma corrente defende que não está manifesto na Constituição, mas esta afirma que, além dos princípios expressos, outros serão aplicados, decorrentes do sistema.

[…]

O art. 98 do CTN não foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, permanecendo válido. É lógico que deve ser interpretado de acordo com o momento contemporâneo porque o Direito evolui, passa por diversas fases e tem que absorver as transformações ocorrentes, não somente na ordem interna, mas, também, na global.

Considerando como valorização da dignidade humana no campo da tributação, o chamado princípio internacional da discriminação tributária está sendo tratado no campo do Direito Tributário como parte do campo dos direitos humanos. Recordo-me bem que a doutrina defende que, em face dos fenômenos globalizantes, deve ser evitada a dupla tributação que, por si só, já representa aquilo que alguém chama de confisco internacional. A dupla tributação ocorre quando uma nação tributa determinado fato gerador e outra, igualmente, faz a mesma exigência.

[…]

No momento em que há um tradado entre o Brasil e a Suécia que, no art. 24, impede a dupla tributação, não obstante o Ministro Relator ter feito a distinção entre nacional e residente, não vejo como permitir-se a dupla tributação, com a devida vênia, nessa visão, porque o conteúdo é principiológico, acima da norma. O objetivo é evitar a dupla incidência.”

Não obstante a relevância que se conferiu aos denominados direitos fundamentais globalizados e a indicação de que a posição alcançada está escorada na prevalência dos tratados internacionais em face da legislação doméstica, não exatamente por aplicação do art. 98 do Código Tributário Nacional, pode-se inferir que, mesmo que implicitamente, foi acolhido tal entendimento. Como adiantamos, somos da posição de que as razões suscitadas para sustentar a aplicação do tratado internacional não foram as mais adequadas, principalmente por invocar supostos princípios que estariam em posição hierárquica superior às ordens constitucionais dos Estados soberanos e que norteariam a interpretação dos tratados.

Os tratados internacionais são celebrados, sob a perspectiva do Ordenamento Jurídico brasileiro, pelo Presidente da República e estão condicionados à aprovação pelo Congresso Nacional para que se tornem eficazes e possam ser aplicados. E a prevalência dos tratados em matéria tributária sobre a legislação interna, tal como se observa no art. 98 do Código Tributário Nacional, se insere no campo das limitações ao exercício da competência tributária.

Em outras palavras, é a Constituição Federal o fundamento de validade desse veículo introdutor de normas e que permite, como já afirmado, seja atribuída uma posição especial aos tratados internacional na hierarquia do Ordenamento Jurídico brasileiro. Logo, discordamos das razões invocadas pelo voto proferido pelo Ministro José Delgado, na medida em que não admitimos a existência de “direitos fundamentais globalizados” que estariam hierarquicamente acima das cartas políticas dos Estados.

Acrescente-se que, em 2014, o Superior Tribunal de Justiça julgou recurso 8 que ganhou grande repercussão nos meios de comunicação – caso Vale – no qual foi apreciada a temática da aplicação dos tratados internacionais no que tange às controlled foreign corporation rules (tributação de lucros auferidos por companhias brasileiras no exterior).

O Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator e autor do voto condutor, introduz novo elemento à discussão ao pontuar que os tratados internacionais tributários seriam equiparados às leis complementares, visto que sua celebração decorre de legítima manifestação soberana do país na arena internacional, e que suas previsões são insusceptíveis de modificação pela legislação ordinária doméstica. O trecho a seguir sintetiza o seu posicionamento:

“32. Remarque-se, mais uma vez – e certamente não será esta a última vez – que o sistema tributário brasileiro é essencialmente estruturado em formulações normativas de nível complementar, de modo que nenhuma norma de conteúdo tributário que não ostente essa hierarquia (complementar) poderá ser admitida – salvo se explodindo o sistema – para regular matéria que a Carta Magna reservou ao trato dessa espécie normativa, como se extrai diretamente do art. 146, III.

  1. Diante dessa definição sistêmica e constitucional, conclui-se que os Tratados e Convenções Internacionais em matéria tributária seguramente assimilam, no Direito Interno Brasileiro, a hierarquia de leis complementares; anoto que, se assim não fosse – diga-se apenas para efeito de exposição – as regulações internacionais seriam categorizáveis assim:

(i) seriam superiores à Carta Magna, não se submetendo, portanto, aos seus ditames, o que importaria na afirmação – estranha afirmação – de quebra da soberania nacional e consequente abdicação dos poderes normativos nacionais, efeitos que não podem ser – nem de longe – sequer objeto de reflexão jurídica minimamente adequada à nossa ordem constitucional; ou

(ii) seriam niveladas às leis ordinárias e, portanto, modificáveis pela legislação interna comum, significando isso que o legislador ordinário teria a potestade de alterar, ou até mesmo eliminar, a eficácia normativa dos Tratados, infringindo a sua base de boa-fé e de reciprocidade de tratamento, bem como privilegiando as empresas estrangeiras que tivessem controladas no Brasil, pois os seus lucros não seriam tributados nos seus Países de origem.

  1. Em ambas as hipóteses, como se vê, ocorreria a perversão de pautas essenciais do sistema jurídico, por isso que o tratadistas tributários internacionalistas chamam atenção para o respeito aos Tratados Internacionais Tributários, o que reflete a necessidade de atribuir-lhes posição hierárquica superior às leis ordinárias – mas, sem dúvida possível, abaixo da Constituição – sendo urgente se vencer a concepção – tão arraigada concepção – de que a hermenêutica doméstica da Administração Tributária possa preponderar sobre aqueles documentos firmados no foro externo pela soberania nacional; […]”

Note-se que o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, antes mesmo de fazer referência ao art. 98 do Código Tributário Nacional, alça os tratados internacionais tributários a uma posição superior à legislação ordinária doméstica por força da instituição de uma limitação ao exercício da competência derivada da manifestação de vontade soberana do país. Na sequência, arremata, quanto a esse tópico em especial 9, com a afirmação de que o art. 98 confirma o entendimento e pontifica que os tratados estão protegidos em relação às alterações supervenientes da legislação ordinária, mas não se sobrepõem às mutações constitucionais.

Esta é a posição mais recente do Superior Tribunal de Justiça 10, com a qual concordamos, também por motivos outros, já expostos, em que se afirma a prevalência dos tratados internacionais para evitar a dupla tributação da renda quando em conflito com a legislação interna. Diante de tal embate, a eficácia da lei doméstica é obstada e segue-se o comando do acordo internacional.

Treaty override

A recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça aponta, respaldada por diferentes fundamentos, para a prevalência dos tratados internacionais em matéria tributária sobre a legislação ordinária doméstica. E este posicionamento decorre do entendimento: (i) estes se enquadrariam na categoria dos tratados-contrato (posição mais antiga e bastante criticada hodiernamente); (ii) o critério da especialidade conduz à sua aplicação, a despeito de estar no mesmo patamar hierárquico das leis ordinárias; (iii) natureza supralegal dos tratados internacionais, que colocaria tais instrumentos em posição inferior à Constituição Federal, exceto aqueles que tratem de direitos humanos e sejam aprovados segundo a forma do art. 5º, § 3º, da Carta Política; e, (iv) o art. 98 do Código Tributário Nacional foi recepcionado pela Constituição Federal e estabelece uma limitação do exercício da competência tributária.

O treaty override é caracterizado quando a legislação doméstica superveniente ao tratado dispõe em sentido diverso àquele previsto no acordo internacional e, por consequência, implica o afastamento de suas disposições (ROCHA, 2007, p. 16). Em outras palavras, admitir-se-ia que a legislação posterior a um tratado internacional – seja pela invocação do argumento de que a segunda parte do art. 98 do Código Tributário Nacional não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, seja pela adoção do critério cronológico para resolução de conflitos entre normas – veicule disciplina contrária e, ainda assim, deva ser observada mesmo nas situações em que esteja presente um elemento de conexão que permita a aplicação do primeiro.

Neste particular, cite-se, inclusive, ROCHA (2007, p. 117), que preconiza que, posto estarem os tratados internacionais no mesmo nível da legislação doméstica ordinária, a aplicação daqueles quando em confronto com esta está fundamentada no critério da especialidade, não na superioridade hierárquica. Na sequência, arremata ser “bastante remota a possibilidade do treaty override”.

Xavier (2015, p. 123 e 124), um dos mais enfáticos defensores da teoria monista e supremacia dos tratados em relação à legislação doméstica, argumenta, inclusive, que os tratados internacionais em matéria tributária se caracterizam como garantias fundamentais do cidadão, adicionada à lista do art. 5º da Constituição Federal, tal como reconhecido pelo seu § 2º.

Schoueri (2013, p. 419, 421 e 422), a seu turno, também preconiza que os tratados internacionais tributários seriam garantias fundamentais e afirma não ser admissível o treaty override em razão de o tratado constituir mecanismo limitador da própria jurisdição do Estado contratante:

“[…] reconheçam-se os tratados internacionais como integrantes da ordem internacional ou da ordem interna, a conclusão será, sempre, de que são eles os instrumentos que definirão o alcance da jurisdição nacional; uma vez definida a jurisdição pelo meio próprio, não pode uma lei dispor sobre assunto que ultrapasse os limites impostos pelo tratado, por falta de competência.

13.2.9.3 Com base no exposto, parece assentado admitir que a impossibilidade de alteração das disposições dos acordos de bitributação por normas de direito interno não se fundamenta, conforme entendemos, em uma eventual relação de hierarquia normativa, mas na própria limitação da jurisdição dos Estados Contratantes.”

Especificamente no tocante à caracterização das normas construídas a partir dos tratados internacionais tributários como garantias fundamentais e, pois, sujeitas à disciplina do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, Rocha (2007, p. 61) ressalta que modificou seu entendimento sobre o tema e conclui que somente os direitos fundamentais do homem enquanto contribuinte poderiam ser considerados como tais. Desse modo, elenca como tais: o direito de não ser preso por dívida fiscal; a não tributação do mínimo existencial; o direito à igualdade na tributação, dentre outros. Grupenmacher (1999, p. 84) e Barreto (2001, p. 168) sustentam em idêntico sentido.

Posicionamo-nos, como já afirmado em outras passagens deste trabalho, que a existência do tratado internacional somente limita a eficácia e o âmbito de aplicação da legislação interna quando estiverem presentes as condições (elementos de conexão) que autorizam a aplicação do acordo internacional.

O tratado internacional firmado pelo Brasil não limita a sua jurisdição como um todo ou restringe o seu campo de atuação na relação com quaisquer outros Estados. Ao revés, o acordo internacional é um mecanismo limitador da eficácia da legislação doméstica tão somente no que concerne às operações que apresentem elementos de conexão em um Estado que tenha concluído acordo com o Brasil. Para esta precisa e bem delimitada situação, o tratado internacional prevalecerá e a legislação interna não terá espaço.

Assim, ainda que a legislação doméstica superveniente disponha de modo diverso ao previsto em algum tratado celebrado pelo Brasil, este continua aplicável e a lei interna não poderá ser invocada para disciplinar uma relação sujeita às regras do acordo internacional. Ademais, a legislação local continuará válida, mas não terá eficácia no tocante às situações sujeitas à disciplina do tratado internacional.

Concluímos, portanto, não ter lugar, no Ordenamento Jurídico brasileiro, para a figura do treaty override, sendo salutar ressaltar que a investigação, neste aspecto, deve ser bastante restrita ao tratado internacional especificamente considerado. O tratado internacional celebrado limita a jurisdição do Brasil e do outro Estado contratante em relação às operações que apresentem elementos de conexão nos seus territórios, não podendo ser invocado para disciplina de situação em que não se verifique tal condição e muito menos como balizador amplo e irrestrito de toda a atuação do legislador doméstico.

Conclusões

A Constituição Federal, apesar de possuir dispositivo que aponte a necessidade de observância de acordo internacional e o princípio da reciprocidade inerente às relações entre Estados soberanos, acolheu a teoria dualista, segundo a qual o tratado internacional deve ser transformado em legislação interna, mediante aprovação do Congresso Nacional e promulgação pela Presidência da República.

Todavia, o fato de exigir o cumprimento dessas condições para que o tratado internacional passe a ter eficácia e vigência no Ordenamento Jurídico brasileiro não afeta a posição de superioridade hierárquica destes diplomas em relação à legislação infraconstitucional interna. Isto, porque o tratado internacional celebrado, sempre em atenção à previsão constitucional, representa uma limitação à jurisdição do Estado. Logo, se foi firmado um acordo no qual o Estado brasileiro concordou com a criação de uma cláusula limitadora de sua soberania, não poderá a legislação ordinária interna superveniente dispor de modo contrário, ao menos enquanto o tratado estiver em vigor.

O art. 98 do Código Tributário Nacional, na sua primeira parte, alude ao termo “revogação” quando trata da interação entre tratados internacionais e legislação interna. Porém, não há revogação, visto que a existência do tratado internacional somente limita a eficácia e o âmbito de aplicação da legislação interna quando estiverem presentes as condições (elementos de conexão) autorizadoras da observância do primeiro. Ou seja, a legislação doméstica continua vigente e eficaz para a disciplina das relações encetadas no território brasileiro e mesmo naquelas que apresentem elementos de conexão com outro Estado, desde que não tenha sido concluído acordo internacional limitativo da competência brasileira.

No que concerne à segunda parte do art. 98 do Código Tributário Nacional, que estabelece a superioridade hierárquica do tratado internacional em confronto com a legislação doméstica e necessidade de sua observância pela legislação superveniente, posicionamos pela sua constitucionalidade, por se enquadrar na função conferida à lei complementar para regular as limitações ao exercício da competência tributária.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça atual indica o entendimento pela prevalência dos tratados internacionais em matéria tributária sobre a legislação ordinária doméstica, apesar de os fundamentos invocados, ao longo do tempo, serem diferentes.

O Ordenamento Jurídico brasileiro não admite o treaty override. O tratado internacional celebrado limita a jurisdição do Brasil e do outro Estado contratante em relação às operações que apresentem elementos de conexão nos seus territórios, não podendo ser invocado para disciplina de situação em que não se verifique tal condição e muito menos como balizador amplo e irrestrito de toda a atuação do legislador doméstico. Logo, a existência de treaty override deverá ser, sempre, investigada com escopo restrito, não como uma limitação geral.

Referências bibliográficas

BARRETO, Paulo Ayres. Imposto sobre a renda e preços de transferência. São Paulo: Dialética, 2001.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

______. Mercosul e tributos estaduais, municipais e distritais. Revista de Direito Tributário n. 64. São Paulo: Malheiros, 1995. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2013.

DOLINGER, Jacob. As soluções da Suprema Corte brasileira para os conflitos entre o direito interno e o direito internacional: um exercício de ecletismo. Revista Forense v. 334. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

GRUPENMACHER, Betina Treiger. Tratados internacionais em matéria tributária e ordem interna. São Paulo: Dialética, 1999.

HORVATH, Estevão; e CARVALHO, Nelson Ferreira de. Tratado internacional, em matéria tributária, pode exonerar tributos estaduais? Revista de Direito Tributário n. 64. São Paulo: Malheiros, 1995.

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. v. I.

______. O § 2º do art. 5º da Constituição Federal. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Revogação em matéria tributária. São Paulo: Noeses, 2005.

ROCHA, Sergio André. Treaty override no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Preços de transferência no direito tributário brasileiro. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2013.

TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação internacional sobre as rendas de empresas. 2. ed. São Paulo: RT, 2001.

XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

Qual a relação entre direito interno e direito internacional?

Segundo a presente corrente, a tarefa principal do Direito Internacional é regular as relações dos estados, enquanto o Direito interno possui a função de regular a relação do estado com os seus próprios indivíduos.

Pode haver conflito entre uma norma de direito interno e uma de direito internacional?

Não há choque entre a norma internacional e a norma interna. Por isso, de acordo com a teoria dualista, não há conflito entre lei e tratado: o que existe é conflito entre a lei interna e a norma interna que incorporou no direito interno o tratado internacional.

Quais os atos que podem revogar a legislação tributária interna?

98 do Código Tributário Nacional - CTN, o qual dispõe expressamente: "Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha".

Como um tratado internacional Torna

Portanto, os tratados internacionais ingressam na ordem jurídica interna brasileira mediante o preenchimento dos seguintes requisitos: (a) negociação pelo Estado brasileiro no plano internacional; (b) assinatura do instrumento pelo Estado brasileiro; (c) mensagem do Poder Executivo ao Congresso Nacional para discussão ...