De acordo com esse texto o bom funcionamento do corpo pode ficar comprometido

por Felipe Hector de Oliveira*

Resumo: O presente artigo envolve a discussão do que se entende sobre a alma e o corpo. A partir da obra de Descartes, o Discurso do Método, pretende-se debater como se dá a semelhança e a diferença entre o corpo e a alma. De início, será exposto o que se entende por corpo e como ele é organizado. Em seguida, será exposto o que se entende por alma e também como é a sua organização. E, por fim, será analisado se é possível haver uma relação entre o corpo e a alma respeitando as suas diferenças.

Introdução

No Período Clássico da Filosofia, já se discutia sobre a relação entre a alma e o corpo. Platão via no corpo a fonte do mal, pois através dele o homem era impedido de elevar o seu conhecimento devido às pulsões amorosas. E a alma era vista como princípio de movimento para o conhecimento das coisas verdadeiras que se encontram no Mundo das Ideias. De tal modo que,  ela sempre existiu antes de “cair” no corpo, o seu cárcere. Para Aristóteles, a alma e o corpo coincidem de tal modo que um não sobrevive sem o outro. Assim, formam uma unidade substancial na qual a alma é ato perfeito do corpo. Na modernidade, vários filósofos também discutiram sobre o corpo e a alma dentre eles Descartes o qual será tomado como base deste estudo. Tendo em vista a importância do tema proposto durante toda a história da filosofia, as análises deste trabalho será decorrente das leituras de uma das obras fundamentais do autor que é Discurso do Método. O Objetivo é analisar o que este autor entende sobre alma e corpo. Algumas questões podem ser levantadas: Como Descartes entende o funcionamento do corpo? Como ele entende a alma? É possível haver uma relação entre eles? Estes pontos serão discutidos ao longo deste trabalho.

1 A natureza do corpo

Ao analisar a natureza do corpo, Descartes não o considerava tão positivamente. O corpo por si só não teria condições alguma para verificar, por meio dos órgãos dos sentidos, se determinada coisa é verdadeira. Ele depende da razão para poder ter segurança em afirmar a veracidade da coisa: “[…] o sentido da vista não nos assegura menos a verdade de seus objetos do que os do olfato ou da audição; ao passo que, nem nossa imaginação nem nossos sentidos poderiam jamais nos assegurar de coisa alguma, caso nosso entendimento não interviesse.” (DESCARTES, 2002, p. 106). Quem apenas utiliza os sentidos, está sujeito ao engano mas, acompanhados da razão, nem sempre os sentidos o enganarão. A imaginação por si só também engana, ela deve estar combinada com a razão para que se tenha plena certeza da verdade. Combinada com a razão as “[…] imaginações quando [nós estamos] adormecidos não nos devem, absolutamente, fazer duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando despertos.” (DESCARTES, 2002, p. 107). Como acontece com os sentidos, é necessário fazer o uso do pensamento para que não se caia no erro.

Descartes faz uma proposta para comprovar a insegurança e a falsidade que há na matéria. Se Deus, ao criar o homem tivesse lhe dado tudo o que existe em seu exterior e em seu interior, mas não tivesse lhe dado a racionalidade, “[…] o que permite dizer que os animais sem razão […] nos assemelham: sem que para isso eu possa encontrar nenhuma daquelas que, dependentes do pensamento, são as únicas que nos pertencem como homens; […]” (DESCARTES, 2002, p. 113). Desta forma, os homens são praticamente iguais aos animais se aqueles não puderem fazer o uso do pensamento.

O corpo tem estrutura complexa, a sua organização é de tal forma que tudo possa ocorrer o mais perfeito possível. O sistema circulatório, por exemplo, é organizado a suportar os vários graus de pressão. As veias arteriosas que se ligam com o coração, são mais rígidas, pois a pressão existente neste ponto é grande, o sangue passa por este lugar com muita força: “[…] a dureza dos tecidos dos quais a veia arteriosa e a grande artéria se compõem, mostra suficientemente que o sangue bate contra elas com mais [força] do que contra as veias.” (DESCARTES, 2002, p. 118). Se estas veias não fossem tão resistentes, a pressão estourá-las-ia causando hemorragia. E as veias mais finas, que se encontram nas extremidades do corpo, não são tão resistentes quanto às veias que se ligam ao coração, pois a pressão que há nestas outras veias é menor, não é preciso de tanta resistência.

Devido a esta organização circulatória, e também respiratória, dos nervos, dos ossos, dos músculos, o corpo é comparado com uma máquina. Tudo deve estar em seu devido lugar para que o funcionamento não seja comprometido. “[…] considerarão esse corpo como uma máquina que, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente melhor ordenada, e tem em si movimentos mais admiráveis do que todas as que possam ser inventadas pelos homens.” (DESCARTES, 2002, p. 121). Esta superioridade do corpo às coisas criadas pelo homem é devida ao corpo ser criado por Deus, que é perfeito, e nada que se é criado pelo homem pode superar o que Ele criou.

2 A natureza da alma

Quanto à alma, Descartes chega à conclusão de que o pensamento é a substância da alma e é por meio do pensamento que ele acredita na sua própria existência. Ele pode negar quase tudo, menos a sua existência, pois negaria também a sua capacidade raciocinativa. Não é possível pensar e não existir. Desta maneira, o pensamento não necessita de mais nada além dele mesmo: “Disso reconheci que eu era uma substância cuja essência ou natureza é somente pensar, e que, para ser, não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de nenhuma coisa material.” (DESCARTES, 2002, p. 102).

Mas de onde veio esta capacidade de pensar? Não é possível conceber o pensamento do nada, deve haver alguém que colocou em cada um a alma que tem aptidão para raciocinar. Este alguém tem que ser perfeito, nele não pode haver nada que leve ao erro: “de modo que restava apenas que tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha [ou seja,] Deus.” (DESCARTES, 2002, p. 103). Mas o erro ainda existe nos homens. Isto acontece porque o homem não é apenas alma, como Deus é, é composto também de corpo, por isto que é comum cometer falhas, mesmo tendo uma alma que veio de Deus.

Não é aceitável tomar os animais e dizer que estes se assemelham à alma humana. Para Descartes isto é inadmissível. Os animais têm uma capacidade de memorizar, mas não podem raciocinar aquilo que estão fazendo ou falando:

[…] as pegas e os papagaios podem proferir palavras assim como nós, e no entanto não podem falar como nós, isto é, demonstrando que pensam aquilo que dizem; […] E isso não demostra só que os animais possuem menos razão que os humanos, mas que não a possuem de fato. (DESCARTES, 2002, p. 122).

Os animais não possuem alma, pois alma e pensamento coincidem. Se eles possuíssem alma, poderiam pensar até melhor do que os homens, coisa que ainda não aconteceu com nenhum animal e dificilmente irá acontecer.

A alma não está condenada à morte. A partir do momento que ela surgiu, não há nada que tem o poder de aniquilá-la, sendo assim eterna:

[…] nossa alma é de uma natureza inteiramente independente do corpo e, por conseguinte, que não está absolutamente sujeita a morrer com ele; depois, dado que não se vê outras causas que a destrua, somos naturalmente levados a julgar, a partir disso, que ela é imortal. (DESCARTES, 2002, p. 124).

Esta hipótese deve-se ao fato de Descartes não ter visto nada que pudesse destruir a alma.

3 Relação entre corpo e alma

De início, Descartes mostra a dificuldade que existe na compreensão do corpo, sendo a da alma mais fácil de se compreender. Devido à obrigação de se fazer o uso da razão para que o corpo não seja confundido, é muito difícil conhecer o corpo, pois, por si só, está sujeito ao engano e ao erro: “[…] a alma […] é inteiramente distinta do corpo, e […] é mais fácil conhecer [a alma] do que ele [o corpo]”. (DESCARTES, 2002, p. 102). Não há segurança ao afirmar qualquer coisa, o que parece ser neste momento, ao se aproximar do objeto pode ser algo totalmente diferente do que antes foi percebido. Neste ponto, parece não haver nenhuma relação entre o corpo e a alma, tem-se uma dificuldade de entender o que seja o primeiro e uma facilidade para se entender o segundo.

Mais adiante, Descartes admite a união existente entre o corpo e a alma. Esta união não tira a particularidade do corpo, concebido como máquina organizada, e nem da alma, concebida como pensamento, mas um complementa o outro. O pensamento dá sentido ao funcionamento do corpo. Assim, não é possível haver significado no homem se faltar a alma ou o corpo:

[…] não basta que esteja alojada no corpo humano, assim como um piloto em seu navio, a não ser talvez para mover seus membros, mas que é necessário que esteja junta e unida a ele mais estreitamente, para ter, além disso, sentimentos e apetites semelhantes aos nossos, e assim compor um verdadeiro homem. (DESCARTES, 2002, p. 123-124).

Estas duas substâncias existem uma na outra, isto não faz com que uma perca a sua substância e, muito menos, que surja uma terceira substância: “sendo a alma uma substância imaterial e completa, seu atributo essencial, mesmo quando unido a outro atributo essencial, não formará uma outra substância porque um atributo essencial exclui o outro.” (ROCHA, 2006, p. 138). Deus quem uniu a alma e corpo, eles necessitam um do outro:

[…] o corpo seria incompleto porque sendo apenas potência só existiria em virtude de sua forma substancial, a alma. A alma seria incompleta na medida em que sua parte racional, sendo potência, só é ativada na operação do conhecimento que, por sua vez, supõe o corpo. (ROCHA, 2006, p. 140).

Pode-se colocar em questão sobre as paixões. A paixão está ligada com o sentimento da alma que pensa o objeto que causa o amor. Esta paixão move o corpo para a realização desta vontade. Neste sentido, a alma e o corpo combinam-se, pois a alma funciona como impulso para o corpo ir em direção ao seu amado. E a paixão deixa o homem agitado, é uma emoção que, por mais que ele controle, o direciona a mover-se ao outro: “[…] por mais que teoricamente seja possível pensar em um amor exclusivamente racional, nos seres humanos, esse amor se manifesta como uma paixão que movimenta o corpo e produz sinais de sua presença.” (MURTA, 2006, p. 9).

Outro sinal que prova a relação entre o corpo e a alma se dá com a gagueira. A pessoa, a partir do pensamento que tem, reage fisicamente: “A gagueira é apenas a confirmação da declaração de amor. A gagueira confirma o que o sujeito já havia manifestado. Pois, a manifestação corporal em si é apenas um sinal não interpretável. […] A paixão ou afeto se instala no corpo e responde do corpo […].” (MURTA, 2006, p. 10). A partir da aproximação do outro, o corpo responde com a gagueira, com a timidez ou com a falta de palavras por exemplo. Assim “[…] se por corporal nós entendemos tudo aquilo que pertence ao corpo, ainda que seja de uma outra natureza, a alma também poderá ser dita corporal, uma vez considerado que ela é própria a se unir ao corpo”. (ANDRADE, 2010, p. 27).

Conclusão

Descartes demonstra a superioridade da alma em relação ao corpo, devido ao uso da razão, mas isto não significa que o corpo deva ser desprezado, pois, sem ele, a alma não teria motivo de existir, ela apenas tem sentido unida ao corpo. Esta união entre o corpo e a alma também não tira a particularidade de cada um e nem forma outra substância a partir destas duas. Pensar o corpo como máquina pode trazer um sentimento negativo, pois se tem a ideia de que pode ser descartado quando tiver algum defeito e trocado por outro novo, como as máquinas que são utilizadas nas fábricas. O homem passa a valer como um objeto qualquer que pode ser substituído a qualquer momento.

*estudante de filosofia da FAM

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Eloísa Benvenutti de. Corpo e Consciência: Merleau-Ponty, crítico de Descartes. 2010. 145 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP, Marília 2010. Disponível em: < http://www.marilia.unesp.br/Home/Pos-Graduacao/Filosofia/Dissertacoes/andrade_eb_me_mar.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2014.

DESCARTES, René. Discurso do Método: para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Tradução de Thereza Chistina Stummer. São Paulo: Paulus, 2002.

MURTA, Claudia. Um amor de corpo e alma. AdVerbum, Limeira, v. 1, n. 1, p. 4-11, jul./dez. de 2006. Disponível em: <http://www.psicanaliseefilosofia.com.br/adverbum/Vol1_1/um_ amor_de_corpo_e_alma.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2014.

ROCHA, Ethel Menezes. Observações sobre a Sexta Meditação de Descartes. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, v. 16, n. 1, p. 127-144, jan./jun., 2006. Disponível em: <http://www.cle.unica mp.br/cadernos/pdf/Ethel%20Menezes%20Rocha%20161.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2014.