Onde e quando as mulheres puderam competir pela primeira vez nas Olimpíadas?

Onde e quando as mulheres puderam competir pela primeira vez nas Olimpíadas?
NOVO OLHAR - A ginasta Rebeca Andrade: porta-bandeira do Brasil na despedida da Olimpíada –  Laurence Griffiths/Focus Features

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Em 1896, o lendário historiador francês Pierre de Coubertin, a quem se atribui a criação dos Jogos Olímpicos da era moderna, foi questionado sobre a participação feminina na primeira edição do evento. A resposta não poderia ter sido mais enfática: “Uma Olimpíada com mulheres seria impraticável, desinteressante, inestética e imprópria”. A força implacável do tempo mostrou que ele estava absurdamente errado. Mais de 100 anos depois, as mulheres não só igualaram-se aos homens em talento esportivo, como fizeram das competições uma arena para expressar as profundas mudanças da sociedade no último século. Agora, elas correm, nadam, saltam, giram no ar, lutam , arremessam, socam, velejam, pedalam, remam, jogam bolas de qualquer tipo, atiram — enfim, tal qual seus pares masculinos, as atletas são capazes de tudo tanto na vida quanto no esporte, e suas marcas e conquistas em todas as esferas mostram quão equivocado, ou até mesmo estúpido, pode ser quem pensa diferente.

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COMO UM PEIXE – Ana Marcela, ouro na maratona aquática: “A mulher pode ser o que quiser” – Jonne Roriz/COB

A maré feminina é uma realidade também no esporte brasileiro. Em Tóquio, elas ultrapassaram barreiras que pareciam intransponíveis. A baiana Ana Marcela Cunha se tornou a primeira nadadora do país a conquistar uma medalha de ouro, feito obtido após dramática disputa na maratona aquática. Na ginástica, a paulista Rebeca Andrade passou a ser a primeira brasileira a ganhar duas medalhas — ouro e prata — em uma mesma edição olímpica. Na vela, a fluminense Martine Grael e a paulista Kahena Kunze entraram no seletíssimo time de bicampeões olímpicos do país. Beatriz Ferreira, no boxe, Mayra Aguiar, no judô, Rayssa Leal, no skate, Luisa Stefani e Laura Pigossi, no tênis, também cravaram, com medalhas inéditas, seus nomes na história esportiva brasileira.

Os feitos já seriam extraordinários por si só, mas as campeãs não se contentaram em delimitar as façanhas ao universo esportivo. Na luta por igualdade de gênero, elas também subiram ao pódio. “A mulher pode ser o que ela quiser, onde quiser, na hora que quiser”, disse Ana Marcela logo após receber a sua medalha. A nadadora deu um safanão no preconceito ao dedicar a vitória à namorada, algo impensável até a Olimpíada passada e um sinal inequívoco dos novos tempos. Ainda com a medalha de prata pendurada no peito, a skatista de 13 anos Rayssa Leal, embora criança, foi outra a manobrar contra o machismo. “Skate não é só para meninos”, disse a garota, expondo uma verdade que muitos homens consideravam inconveniente até pouco tempo atrás.

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VENTO A FAVOR – Kahena (à esq. na foto) e Martine: bicampeãs olímpicas – Phil Walter/Getty Images

Em Tóquio, 140 atletas, o equivalente a 46,5% da delegação nacional, competiram em duas dezenas de modalidades. Para efeito de comparação, nos Jogos de 1964, também realizados no Japão, houve apenas uma representante entre 67 homens, a carioca Aída dos Santos, que brilhou no salto em altura ao conquistar o quarto lugar. Um recorte maior de tempo mostra como o Brasil é o retrato do atraso, algo que se repete no campo das conquistas sociais. A primeira participação feminina do país se deu em 1932 com a nadadora Maria Lenk, três décadas depois da estreia das mulheres em Olimpíadas. No final dos anos 60, com o avanço da pautas feministas, as atletas de diversas partes do mundo passaram a responder por 14% do total de competidores. No Brasil, o índice estacionou em torno de 1%.

A revolução começou nos anos 80, quando o Comitê Olímpico Brasileiro percebeu que elas poderiam ser boas provedoras de medalhas. Em 2004, as mulheres já eram quase a metade da equipe nacional. “Credito esses avanços ao espaço conquistado pelas mulheres em outras frentes na sociedade e ao acesso a melhores condições de treinamento”, diz Katia Rubio, professora da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo e integrante da Academia Olímpica Brasileira.

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De fato, Ana Marcela é o retrato da nova era. Boa parte de sua preparação para Tóquio foi realizada no Centro de Alto Rendimento de Sierra Nevada, na Espanha, reconhecido como um dos melhores do mundo para nadadores. Ela também pôde contar com os recursos de patrocinadores, da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos e até da Marinha. “Antes, as empresas buscavam apenas homens em seus programas de marketing esportivo”, diz o consultor Eduardo Tancinsky. “Agora, não há patrocínio olímpico no Brasil que não inclua mulheres.”

Elas estão fazendo história no Japão. Foram as atletas, e não os dirigentes, que enfrentaram tabus que já deveriam ter sido derrubados há muito tempo. A equipe alemã de ginástica feminina estreou em Tóquio vestindo trajes que cobrem o corpo até os tornozelos. Ao descartar os maiôs cavados, as atletas disseram que estavam se posicionando contra a “sexualização na ginástica”. Homens, em geral, competem com camisetas e calças mais largas. Por que com as mulheres deveria ser diferente? No vôlei de praia, também há um movimento entre as jogadoras para banir os biquínis e substituí-los por shorts e camisetas.

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NOVA ERA - A jamaicana Elaine Thompson (acima), que pode igualar sua marca à de Bolt, e a ginasta alemã com calça comprida: elas fizeram a diferença em Tóquio – Martin Rickett/Getty ImagesHow Hwee Young/EFE

Em Tóquio, as atletas se anteciparam aos homens nos protestos políticos. As jogadoras de futebol foram as primeiras a usar a plataforma olímpica para se manifestar. Na partida entre as seleções da Grã-Bretanha e do Chile, as competidoras dos dois times se ajoelharam, num gesto característico contra o racismo. A americana Raven Saunders, que é negra e lésbica, levou a medalha de prata no arremesso de peso e, no pódio, cruzou os punhos em cima da cabeça, o que foi entendido como um gesto de apoio às minorias. Uma mulher transgênero também destroçou dogmas em Tóquio. A levantadora de peso neozelandesa Laurel Hubbard tornou-se a primeira atleta trans a participar de uma Olimpíada. Hubbard chegou a competidor como homem e está submetida a bloqueio hormonal há oito anos. “Nos próximos ciclos olímpicos, as atletas transgêneros serão absorvidas”, diz Páblius Staduto Braga, médico do esporte e especialista em fisiologia.

Cada Olimpíada tem seus heróis particulares. Nos Jogos de Berlim, em 1936, o corredor e saltador americano Jesse Owens assombrou Hitler ao conquistar quatro ouros. Pequim, em 2008, foi o desabrochar para lendas como o velocista Usain Bolt. A Olimpíada de Tóquio ficará marcada como a edição em que as mulheres estiveram no centro das atenções. Ninguém gerou tantos debates quanto a monumental ginasta americana Simone Biles, que desistiu de diversas provas por apresentar um quadro depressivo, atitude corajosa e inédita. Na ausência de Biles, Tóquio viu nascer outra lenda do esporte: a velocista jamaicana Elaine Thompson, que se tornou bicampeã dos 100 e 200 metros, as provas mais nobres do atletismo. Thompson é a versão feminina de Bolt (e que ninguém ouse chamá-la de “Bolt de saias”, expressão que ela abomina). Carismática e imbatível, ela poderá alcançar, nos Jogos de Paris, o feito maior de seu conterrâneo, o único humano que foi capaz de vencer os 100 e 200 metros em três Olimpíadas consecutivas. Após longa opressão, as mulheres passaram a ocupar o lugar que sempre mereceram: o topo do mundo.

Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750

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