Quando ouvimos falar da colonização portuguesa na América, lembramos logo da “Descoberta do Brasil”. Pensamos: será que o Brasil foi realmente descoberto pelos portugueses? Antes da chegada dos portugueses não existiam povos e sociedades habitando a nossa terra? Show
Mas é lógico que existiam habitantes no “Novo Mundo”: eram os diferentes povos indígenas, considerados os povoadores da região. O processo que promoveu o primeiro contato entre portugueses e indígenas foi um encontro de culturas? Ou uma conquista, um “desencontro de culturas”? A colonização portuguesa teve como principais características a submissão e o extermínio de milhões de indígenas. O processo de colonização portuguesa no Brasil teve um caráter semelhante a outras colonizações europeias, como a colonização espanhola, que conquistou e exterminou os povos indígenas. A Coroa portuguesa, durante as Grandes Navegações (XV-XVI), tinha como principais objetivos a expansão comercial e a busca de produtos para comercializar na Europa (obtenção do lucro). Existiam outros motivos, porém focaremos esses dois. Em 1500, os primeiros portugueses que desembarcaram no “Novo Mundo” (América) tomaram posse das terras, logo em seguida tiveram os primeiros contatos com os indígenas, designados pelos portugueses de “selvagens”. Alguns historiadores chamaram o primeiro contato entre portugueses e indígenas de “encontro de culturas” (como uma tentativa de amenizar e adocicar as péssimas relações que foram mantidas), mas percebemos que o início do processo de colonização portuguesa foi um “desencontro de culturas”, que mais correspondeu ao processo de extermínio e submissão dos indígenas – tanto por meio dos conflitos com os portugueses quanto pelas doenças trazidas por estes, como a gripe, a tuberculose e a sífilis. Não pare agora... Tem mais depois da publicidade ;) No século XVI, poucos empreendimentos foram efetivados no território colonial. As principais realizações portuguesas, utilizando a mão de obra indígena escravizada, foram: nomear algumas localidades no litoral, confirmar a existência do pau-brasil e construir algumas feitorias. O “desencontro de culturas” promovido pelos primeiros contatos entre europeus e indígenas ganhou nova força a partir de 1516, quando Dom Emanuel I, rei de Portugal, enviou navios ao novo território para efetivar o povoamento e a exploração. Os indígenas resistiram à tentativa de submissão e extermínio, expulsando rapidamente os portugueses. Até o ano de 1530, a ocupação portuguesa ainda era bastante tímida – somente no ano de 1531, o monarca português Dom João III enviou Martin Afonso de Souza ao Brasil, nomeando-o capitão-mor da esquadra e das terras coloniais, visando efetivar a exploração mineral e vegetal da região e a distribuição das sesmarias (lotes de terras). A submissão e o extermínio dos indígenas pelos europeus estavam apenas começando na história do Brasil, entretanto não devemos esquecer a resistência que os povos indígenas empreenderam. Existence and difference: racism against indigenous peoplesResumoEste artigo discute um dos aspetos mais invisibilizados do racismo no Brasil: o caso do racismo contra os povos indígenas. Na primeira parte, discute-se o vazio na literatura sobre o racismo contra indígenas. Em seguida, são apresentados depoimentos e reflexões de caráter prático e teórico sobre racismo por parte de de autores indígenas. A pesquisa se baseia em dois encontros com intelectuais, artistas e lideranças indígenas para discutir o tema do racismo. Palavras-chave: AbstractThis article discusses one of the most invisible aspects of racism in Brazil: racism against indigenous peoples. The first part focuses on the gaps about the topic in the literature about racism in Brazil. The following sections present some personal experiences and discussions on the topic of racism from the point of view indigenous persons. The research is based on two meetings with indigenous intellectuals, artists, and leaders from various parts of Brazil focused on discussing the topic of racism. Keywords: Existência e diferença: o racismo contra os povos indígenas11Esta pesquisa é baseada nas falas de intelectuais, artistas e lideranças indígenas que serão referenciados e identificados, a respeito de suas experiências com o racismo. As falas e depoimentos fazem parte do projeto “Racismo e Anti-racismo no Brasil: o caso dos povos indígenas”, que tem por foco o racismo do dia-a-dia, o racismo institucional e a violência contra os povos indígenas no Brasil. O objetivo do projeto foi criar espaço para que lideranças, intelectuais e artistas indígenas de várias partes do Brasil e vários contextos sociais e políticos pudessem se encontrar para discutir o racismo e formas de combatê-lo. O projeto está sendo financiado pelas agências públicas AHRC (Conselho de Pesquisa em Artes e Humanidades) e GCRF (Fundo de Pesquisa para Desafios Globais) da Grã-Bretanha. Os dois encontros foram realizados em maio e novembro de 2018 em Cachoeira e Salvador, Bahia, respectivamente. Os vídeos desses encontros estão disponíveis no site do projeto, e sua transcrição irá compor um livro que será publicado em breve. Para mais informações, consultar: http://projects.alc.manchester.ac.uk/racism-indigenous-brazil/ 1Esta pesquisa é baseada nas falas de intelectuais, artistas e lideranças indígenas que serão referenciados e identificados, a respeito de suas experiências com o racismo. As falas e depoimentos fazem parte do projeto “Racismo e Anti-racismo no Brasil: o caso dos povos indígenas”, que tem por foco o racismo do dia-a-dia, o racismo institucional e a violência contra os povos indígenas no Brasil. O objetivo do projeto foi criar espaço para que lideranças, intelectuais e artistas indígenas de várias partes do Brasil e vários contextos sociais e políticos pudessem se encontrar para discutir o racismo e formas de combatê-lo. O projeto está sendo financiado pelas agências públicas AHRC (Conselho de Pesquisa em Artes e Humanidades) e GCRF (Fundo de Pesquisa para Desafios Globais) da Grã-Bretanha. Os dois encontros foram realizados em maio e novembro de 2018 em Cachoeira e Salvador, Bahia, respectivamente. Os vídeos desses encontros estão disponíveis no site do projeto, e sua transcrição irá compor um livro que será publicado em breve. Para mais informações, consultar: http://projects.alc.manchester.ac.uk/racism-indigenous-brazil/1. Um racismo disfarçadoLembrados em declaração do vice-presidente da República como os responsáveis pela “indolência” no “cadinho” da sociedade brasileira que “herdou a cultura de privilégios dos ibéricos, a indolência dos indígenas e a malandragem dos africanos”,2 2 Declaração do então candidato (atual vice-presidente) Mourão, em evento público de campanha em Caxias do Sul, RS, no dia 06 de agosto de 2018,: ‘Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem. Nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano. Então, esse é o nosso 'cadinho' cultural’. os indígenas tiveram historicamente pouco espaço no debate sobre racismo no Brasil. O próprio termo racismo vem sendo contestado, sobretudo, quando aplicado ao contexto dos povos indígenas, considerado por muitos como inapropriado (Cf. BONIN, 2014), ainda que os indígenas historicamente tenham sido tratados “como se fossem coisa”, as suas culturas desvalorizadas e qualificadas como “costumes bárbaros”, que deveriam ser deixados de lado para adotar os costumes da “civilização cristã” (DALLARI, 1999DALLARI. Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e os índios no Brasil. In: DO AMARAL JÚNIOR, Alberto; PERRONE-MOISÉS, Cláudia. O cinqüentenário da declaração universal dos direitos do homem. São Paulo, Edusp, 1999. p.255., P. 255). A historiografia tradicional pouca atenção deu ao protagonismo da resistência indígena à colonização, e as abordagens da “transição” da escravidão indígena para a negra não apenas reforçaram a narrativa da extinção – que coloca os indígenas prementemente num lugar pertencente ao passado –, como também serviram para desconsiderar o violento sistema de exploração da força de trabalho, a espoliação e o genocídio que permanecem desde o primórdio da colonização até os dias atuais. Monteiro (1994)MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia das Letras, 1994. mostrou, de forma pioneira, os limites e as contradições da historiografia paulista diante da dimensão da violência que atingiu os povos indígenas na colonização de São Paulo e a participação dos povos indígenas na economia colonial e no desenvolvimento da colônia. As estratégias de conquista, catequese e civilização, sempre em paralelo ao genocídio, continuaram da colônia ao Império e, como demonstrou Souza Lima (1995)SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995., caracterizaram a “proteção” aos índios pelo Estado no Serviço de Proteção aos Índios (SPI), ainda que tenham existido contradições reveladas em alianças entre agentes indigenistas do Estado e povos indígenas no processo de resistência ao colonialismo, assim como nas estratégias políticas de Rondon para denunciar ataques e massacres (Cf. RIBEIRO, 1970RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.; BIGIO, 2003BIGIO, Elias. Linhas telegráficas e integração dos povos indígenas: as estratégicas políticas de Rondon. Brasília: CGDOPC/Funai, 2003.; MILANEZ, 2015). Mas foram justamente a ambiguidade e as contradições que marcaram as políticas indigenistas da Coroa, do Império e da República, muitas vezes apoiadas nas letras vazias das leis e direitos que foram sistematicamente desrespeitados, por ação e por omissão (CARNEIRO DA CUNHA, 1987CARNEIRO DA CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do Índio: Ensaios e documentos. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1987). Ambiguidade e contradição da Coroa, que anunciava seguir a Igreja e a proibição da escravização indígena, mas que na prática autorizava que colonos controlassem pessoas indígenas a partir de “guerras justas”, descimentos, e as diversas formas de escravização. É sintomático um debate recolhido por Monteiro, ocorrido em 1600, entre colonos e a Coroa: enquanto a Coroa tentava garantir o monopólio dos jesuítas sobre a força de trabalho indígena, os colonos na Câmara de São Paulo conseguiam driblar as medidas legislativas e legitimar no plano institucional “as relações de dominação subjacentes à exploração do trabalho indígena” (MONTEIRO, 1994MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia das Letras, 1994., p. 132-133):
O fato de os paulistas terem construído estratégias de luta jurídica e política sobre as ambiguidades da Coroa para sustentar e fomentar a escravidão indígena, pode nos remeter a uma reflexão sobre a situação atual, onde, por um lado, temos um Estado de Direito fundado sobre uma Constituição Federal que reconhece direitos originários territoriais e o direito à diferença; e, por outro, os ataques constantes que as populações indígenas sofrem tanto no campo quanto em embates jurídicos e legislativos liderados por seus inimigos, como os ruralistas, os missionários, as mineradoras, e assim por diante. John Hemming mostrou, em um amplo levantamento publicado numa trilogia, ano a ano ao longo de 500 anos, a violência contra os povos indígenas na história, desde a conquista (Cf. HEMMING, 2007HEMMING, John. Ouro Vermelho. São Paulo: Edusp, 2007.), com as guerras ao longo de cem anos para a conquista do litoral; a derrota e a expansão das fronteiras em direção à Amazônia na Colônia e no Império (Cf. HEMMING, 1987HEMMING, John. Amazon Frontier. London: Pan Macmillan, 1987.), e após 1910 (Cf, HEMMING, 2003HEMMING, John. Die if You Must. London: Pan Macmillan, 2003.), com a violência na República e a proteção do SPI e Marechal Candido Rondon. Um mito contemporâneo bastante difundido é o do “desconhecimento” da realidade indígena, como se juristas e legisladores decidissem contrariamente aos direitos dos povos indígenas baseados numa suposta falta de conhecimento — conhecimento este que só poderia ser provido, nessa forma de pensar, por uma elite acadêmica não-indígena, e não pelos depoimentos e demandas dos próprios indígenas. Alegar falta de conhecimento nesses termos é desconsiderar o efeito estrutural do racismo em regular a ideologia e a estrutura econômica. Ou, para seguir o paralelo traçado por Fanon: “o racista numa cultura com racismo é por esta razão normal. Ele atingiu a perfeita harmonia entre relações econômicas e ideologia” (in. NASCIMENTO, 1978NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: um processo de racismo mascarado. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1978., p. 85) A emergência do movimento indígena nos anos 1970 e 1980 foi o pilar fundamental sobre o qual se estabeleceu a crítica da nova história, provocando uma revisão de abordagens antropológicas e das historiografias oficiais. Novos personagens entraram no debate, ainda que, na verdade, estes personagens estivessem em cena e protagonizassem as resistências e os caminhos da colonização e contra-colonização desde o início da conquista e da invasão. Se, de forma geral, as perspectivas históricas passaram a considerar o ponto de vista dos “vencidos”, no caso dos povos indígenas não se criou ainda espaço de fala nesse novo e emergente círculo de pensamento – tal como exemplificado pela ausência de vozes indígenas na obra clássica História dos Índios no Brasil, organizada por Manuela Carneiro da CunhaCARNEIRO DA CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992. e lançada em 1992. Um dos aspectos deste silenciamento está na academia hegemônica, já denunciada como um “confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro” (CARVALHO, 2005/2006CARVALHO, José Jorge de. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006, p. 89). Enquanto na historiografia tradicional o protagonismo histórico do indígena foi abafado, na Antropologia – onde as culturas indígenas são frequentemente discutidas –, pouco ou nada se fala do racismo contra os povos indígenas.3 3 Evidentemente, há exceções e uma virada em curso, como o recente dssiê sobre racismo contra povos indígenas organizado por Cecilia McCallum, Eduardo Restrepo e Edwin Reesink que trata de cinco estudos de caso de racismo contra indígenas em contextos diferentes (Cf. McCALLUM; RESTREPO; REESINK, 2017). Daí a importância de estudos como os de John Monteiro (1994)MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia das Letras, 1994. e a nova historiografia, que destacaram o protagonismo indígena e construíram novas abordagens desmontando perspectivas míticas de um passado heroico da colonização, sobretudo dos bandeirantes e sertanistas, ou de uma suposta pacífica situação de aldeamento e de dominação dos sertões (Cf. VAINFAS, 1995VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1995.; PUNTONI, 2002, SCHWARTZ, 2009SCHWARTZ, Stuart B. A Historiografia dos primeiros tempos do Brasil Moderno: tendências e desafios das duas últimas décadas. História: Questões & Debates. Curitiba, n. 50, p. 175-216, jan./jun. 2009.). Darcy Ribeiro, na investigação encomendada pela Unesco em 1952 sobre a relação entre índios e brancos – que se tornou um marco sobre o assunto e foi publicada sob o título Os índios e a civilização –, revelou a violência da “integração”. Sobre o conflito entre colonos e os povos indígenas que barravam o caminho da expansão, Ribeiro assinalou que “de acordo com a visão quase unânime dos historiadores brasileiros e até mesmo dos antropólogos que estudaram o problema, esse enfrentamento teria como efeito a desaparição das tribos ou a sua absorção pela sociedade nacional” (RIBEIRO, 1970RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970., p. 8). O resultado esperado era a “assimilação plena, através da miscigenação” (Ibid., p. 8). Suas pesquisas revelaram o contrário: a maioria da população indígena foi exterminada, e os que sobreviveram permanecem indígenas “na auto-identificação”. O ideal da “assimilação plena”, miscigenação e democracia racial esperado pela UNESCO, deu lugar ao que Ribeiro chamou na época de “transfiguração étnica” (Ibid., p.17). Na história do Brasil, os povos indígenas foram os primeiros a serem escravizados – a força de trabalho empregada na montagem dos engenhos de açúcar no Brasil, por exemplo, foi predominantemente nativa – antes da escravização dos africanos capturados e deportados de seu continente original que começaram a ser traficados em meados do século XVI (Cf. MARQUESE, 2005). Se os Ameríndios foram os primeiros a serem escravizados, os trabalhos que mostram as consequências (e a continuação) dessa escravidão ainda recebem pouca atenção; mas, como diz Kabengele Munanga, muitas das dificuldades que os indígenas encontram hoje estão diretamente relacionadas com a escravidão do passado.4 4 Transcrição da fala de Munanga na abertura do primeiro encontro. Isto é, a escravidão não ficou no passado: como nunca foi coibida, foi negada, e até hoje a escravidão indígena nas fronteiras agrícolas é uma prática constante, como entre os Kaiowa e Guarani no Mato Grosso do Sul ou nos subempregos em lavouras de soja no Mato Grosso. Igualmente, quando foi criada a política de cotas e ações afirmativas para a entrada em universidades, que tinha como objetivo a reparação da violência histórica, também foram deixados de lado os povos Ameríndios. Na Comissão Nacional da Verdade que investigou os crimes da ditadura, a violência contra os povos Ameríndios ficou relegada a textos temáticos, em um relatório reduzido diante das violações e das próprias conclusões iniciais de que ao menos 8350 pessoas ameríndias foram mortas. Tampouco tiveram estas populações participação direta na elaboração do relatório, que contou com apenas uma pessoa indígena entre trinta pesquisadores “aliados” e “intermediários”. A não institucionalização do racismo no sentido da sua não oficialização no sistema jurídico como ocorrido com o Apartheid da África do Sul, em razão da ausência de leis específicas de segregação, é uma das razões pelas quais o racismo, no Brasil, ‘se disfarça'. Segundo Munanga:
A ideia de que o brasileiro não é racista, mas que há racismo, fundamenta-se no mito da democracia racial, segundo o qual o Brasil seria o paraíso racial de relações harmoniosas. Novamente, explica Munanga, “o mito vai afirmar que somos um povo mestiço, isto é nem branco, nem negro e nem indígena, mas sim uma nova raça brasileira, uma raça mestiça”. Assim, resta a pergunta falaciosa: “quem vai discriminar se somos todos mestiços?” De acordo com esse mito, a mestiçagem “biológica” passa pela “miscigenação”, enquanto a mestiçagem “cultural” pelo sincretismo e a “integração”. No caso dos povos indígenas, permanece o evolucionismo positivista pela transitividade da condição, como um caminho para ‘virar branco’, superado em termos legais pela Constituição Federal, mas ainda em prática nas políticas públicas racistas, tornadas ainda mais explícitas após a ascensão ao poder de Jair Bolsonaro. O mito da democracia racial proclamou o Brasil como um paraíso onde as relações entre branco e negro, e branco e indígena são harmoniosas, isto é, sem preconceito ou discriminação, a não ser pelos preconceitos de ordem socioeconômica que atingem a todos os brasileiros sem diferença baseada na cor da pele. Embora o mito da democracia racial venha sendo negado há décadas por estudiosos6 6 A negação da tese da ‘democracia racial’ remonta ao famoso estudo da UNESCO na década de 1950 do qual participaram, entre outros, Florestan Fernandes e Roger Bastide, e continua em vários estudos mais recentes, como os de Francine Winddance Twine (1997), ou Michael Hanchard (2001). , tal como a fênix ele continua permanentemente a ressurgir no imaginário cultural brasileiro e nos discursos políticos. É assim que, por exemplo, uma senadora da República que, reconhecida publicamente por falas racistas, negava o racismo justificando ter colocado nomes de origem indígena em seus filhos. No Brasil o racismo ocorre de maneira muito peculiar, conforme Nilma Gomes: “ele se afirma através da sua própria negação” (GOMES, 2005GOMES, Nilma Lino et al. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal, v. 10639, n. 03, 2005., p. 46). O racismo no Brasil é por isso mesmo ambíguo, e alicerçado em uma constante contradição: a de negar a existência de práticas racistas, e a existência do preconceito racial. Implícito e disfarçado, o racismo brasileiro desmobiliza as vítimas, e diminui a sua coesão com a compartimentação entre negros e indígenas, criando a ambiguidade dos “mestiços” e “pardos”. Dificulta assim o processo de formação de identidades, segundo o qual muitos preferem o ideal do branqueamento que, segundo pensam, oferece algumas vantagens reservadas para a branquitude. São necessários ainda muitos estudos sobre violência, racismo e migração dos povos indígenas, “pois essas situações não têm visibilidade no país, assim como a situação das mulheres indígenas que sofrem abuso, assédio, violência sexual, que se tornam objeto de tráfico nas mãos de avarentos e degradados nacionais e internacionais, não é divulgada” (POTIGUARA, 2018POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Lorena: DM Projetos Especiais. 2018, p. 26). 2. Percepções do racismo anti-indígenaMas, se o racismo brasileiro tende muitas vezes a se disfarçar, em relação aos indígenas não faltam, ao mesmo tempo, declarações públicas abertamente racistas por parte de autoridades. Há poucas semanas, por exemplo, o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, – numa intervenção na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado – classificou os indígenas como “índios antropizados”, “semi-antropizados” ou “não antropizados” (Cf. Farias, 2019FARIAS, Elaíze.
Ministro da Saúde recua e mantém Sesai após protestos dos indígenas. Amazônia Real, Manaus, 28 mar 2019. Disponível em: http://amazoniareal.com.br/ministro-da-saude-recua-e-mantem-sesai-apos-protestos-dos-indigenas/ . Acesso em: 15 abr 2019. Embora depoimentos públicos desse tipo sejam comuns, assim como são comuns os casos de violência aberta contra comunidades e indivíduos indígenas, os casos de racismo institucional, e as mais diversas formas de desrespeito aos povos indígenas, tanto diretas como nas entrelinhas das palavras e ações dos agressores, continuam a ser poucos os trabalhos nos campos da história, a antropologia ou o direito que se refiram ao racismo contra indígenas enquanto racismo, e essa foi a razão que nos levou a iniciar o projeto de pesquisa “Racismo e Anti-racismo no Brasil: o caso dos povos indígenas”. De fato, ao procurar parceiros em instituições de ensino superior no Brasil para levar adiante o projeto, uma reação bastante comum era a de que “não era por aí”, ou que “racismo não seria a melhor forma de se compreender a violência contra os povos indígenas”. Metodologicamente, ao organizar os eventos, os pesquisadores não-indígenas adotaram a postura de “dois passos atrás”, isto é, de deixar que os participantes indígenas coordenassem e protagonizassem todas as discussões. Na escolha dos participantes, todos os nomes foram sugeridos ou aprovados pelo parceiro indígena do projeto, Ailton Krenak, o qual procurou incluir representantes de várias regiões do Brasil e várias situação de conflito e interação com a sociedade não indígena, além de variação na profissão/posição, gênero, e idade. Assim, dos encontros participaram, entre outros grupos, lideranças históricas, ativistas jovens, artistas, comunicadores, caciques, pajés, estudantes universitários, e líderes comunitários. As discussões foram organizadas no formato de rodas de conversa iniciadas e protagonizadas inteiramente pelos participantes indígenas. Nas mesas de introdução e conclusão (do primeiro encontro), ou nos atos políticos (do segundo encontro) – abertos para o público –, as exceções ao protagonismo indígena foram as falas dos colaboradores locais do projeto e de membros do movimento quilombola e negro. O que ficou evidente desde a primeira roda de conversa foi que, se para muitos acadêmicos de instituições brasileiras a violência contra populações indígenas não deve, ou não precisa, ser descrita como racismo, para os participantes indígenas do encontro não havia a menor dúvida de que sofrem e vêm sofrendo racismo desde a chegada dos europeus ao continente, racismo que se estende também, é preciso dizer, à forma como são tratados pela universidade. O que se segue são os depoimentos de alguns dos participantes do projeto descrevendo e discutindo, em termos práticos e em postulações de cunho teórico, o racismo contra as populações indígenas no Brasil. 2.1. Ailton Krenak: segregação da vidaAilton Krenak, co-autor do projeto, na sua fala de abertura discutiu o racismo como um projeto do Estado, visível, por exemplo, na segregação das reservas não autônomas. O racismo, na sua opinião, é uma epidemia global causada pela recusa de compreender e aceitar a diferença.
2.2. Kum Tum Akroá Gamela: a negação da existênciaNa visão de Kum Tum Akroá Gamela, o racismo estabelecido pelo Estado, e sustentado por várias instituições, faz com que indígenas como ele tenham que provar, no dia-a-dia, a sua própria existência. Isso se dá em atos corriqueiros, desde o registro de uma criança – quando o cartório se recusa a registrar a criança como indígena –, até reuniões com a FUNAI – aonde os agentes se referem a alguns indígenas como “auto-denominados indígenas”, criando sub-categorias de subjetividade. É a terra articulando o racismo que estrutura a revindicação da terra.
2.3. O racismo religiosoO racismo que se manifesta através da pregação religiosa – sobretudo por parte dos pregadores neo-pentecostais que classificam como demoníacas as religiões e a espiritualidade indígenas –, foi um tema frequente nos dois encontros.
2.4. A fossilização da cultura indígena: “quem usa celular e calça jeans não é índio”Uma forma bastante comum de racismo contra as populações indígenas – presente tanto no dia-a-dia dos encontros casuais com não indígenas, como no discurso das autoridades e dos prestadores de serviço – é a fossilização da cultura indígena como algo imutável e parado no tempo. Como consequência, se um indígena é visto utilizando um celular ou escrevendo um livro, vai receber desde os comentários supostamente inocentes, mas profundamente racistas, como “você não parece índio”, até acusações diretas como “não é mais índio”, ou é “ex-índio”. Um caso recente de conflito no Vale do Javari – região descrita como “protegida”, “isolada” – na Amazônia, onde os indígenas perfazem o tipo de “índio de verdade”, mostra como o racismo tem contribuído para a criminalização dos Matis, e apagamento da violência do Estado, sobretudo durante a ditadura (1964-1985) (Cf. ARISI e MILANEZ, 2017ARISI, Barbara e MILANEZ, Felipe. Isolados e ilhados: indigenismo e conflitos no Vale do Javari, Amazônia. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 43, n. 1, p. 49-66, jan.-abr. 2017.). Sobre este caso específico de conflito entre os Matis com a FUNAI, e um povo isolado Korubo, Make Turu Matis declarou:
Para Paulo Marubo, também originário do Vale do Javari, na tríplice fronteira do Brasil, Peru e Colômbia, é importante:
O escritor Olívio Jecupé relatou também o caso de quando foi convidado à FLIP de Paraty9 9 Festa Literária Internacional de Paraty. e foi impedido de almoçar no restaurante reservado aos escritores porque o porteiro acreditava que ele e a sua esposa haviam roubado o crachá:
3. Notas finais: as frentes de combate ao racismoAs transcrições que trouxemos acima foram selecionadas em um repertório complexo de experiências concretas que foram relatadas e compartilhadas nos dias em que o nosso grupo esteve reunido em rodas de construção conjunta. As múltiplas experiências narradas nos ajudam a perceber que falar de racismo contra povos indígenas significa adentrar em uma amálgama de práticas e discursos cujo elemento comum tem sido a violência estrutural que marca os cotidianos indígenas de Norte a Sul do Brasil. De modo que, antes de pensarmos propositivamente sobre frentes de atuações para o combate do racismo, tivemos que gradativamente avançar em discussões sobre as especificidades do contexto indígena, apontando como a racialização opera junto a esses povos e em que medida esse racismo se diferencia de outros. Constatamos que a invisibilização em torno desse tema torna o ato enunciativo em si o primeiro grande passo para mudar essa conjuntura. Isto é, identificar, reconhecer e falar a respeito dessas experiências são os primeiros passos para que possamos pensar sobre estratégias concretas de uma luta que seja indígena e antirracista. A premissa básica para contornar a mistificação arquitetada pelos brancos responsáveis por tornar o racismo um tabu contemporâneo na sociedade brasileira é alçar as vítimas desse processo à condição de autores e protagonistas de suas narrativas. É impossível discutir racismo sem contar com a presença e a voz desses sujeitos racializados. No caso aqui exposto, é impossível pensar estratégias eficazes de combate ao racismo sem que estejam os indígenas dentro da construção da luta antirracista. Nesse sentido, foram os próprios indígenas os responsáveis por trazer o foco dos debates em torno “da questão indígena”, para o tema do racismo. Fazendo o uso das ferramentas disponíveis através das Associações e Organizações Indígenas e da internet, inúmeros registros com fins de denúncia foram publicizadas. Cabe agora às instâncias oficiais criarem espaços políticos institucionalizados que venham a dar conta de maneira sistemática de não apenas receber estas denúncias como combate-las de maneira eficaz. As inúmeras facetas das violências que têm sido traço marcante e fundacional da história indígena em sociedades como a nossa, caracterizadas pelo colonialismo – as quais trouxemos brevemente neste artigo –, precisam ser enfrentadas com seriedade e compromisso. Um importante trabalho ainda a ser feito, que foi suscitado em nossa pesquisa colaborativa, é a necessidade de uma avaliação e acompanhamento dos caminhos percorridos pelos processos de denúncia formalmente registrados como racismo. Em outras palavras, a partir dos casos de racismo, podemos indagar sobre quais são os caminhos para a efetivação das denúncias que as vítimas encontraram na busca por justiça. Existem ouvidorias eficientes no acompanhamento e encaminhamento desses casos? Os indígenas têm conhecimento sobre quais os canais de denúncia e ouvidorias a que eles podem recorrer para efetivar denúncias de racismo? A experiência que tivemos nos desenhou um cenário preocupante, não apenas por nos depararmos com narrativas de muita brutalidade, mas também por percebermos uma aura de permissibilidade e impunidade em torno das pessoas que cometem os atos racistas. Tal impunidade encontra eco na reprodução sistemática de concepções racistas que perduram no tempo e que, por serem parte constituinte do imaginário nacional, se fazem presentes no funcionamento das próprias instituições que deveriam, em sua grande maioria, operar para a defesa dos direitos indígenas. Logo, não se trata apenas de criar canais e ouvidorias de denúncias eficientes, mas também de pensar a capacitação de profissionais que reconheçam a existência do racismo e que sejam sensíveis a esse problema. Falar do racismo institucional implica em não perder de vista a concretude dos indivíduos que, escondidos em uma burocracia pretensamente impessoal, são cotidianamente responsáveis pelo funcionamento dessas instituições. Em outras palavras, não há racismo sem que haja também o racista. Para os povos indígenas, é de suma importância reconhecer o racismo como um sistema estruturado contra essas populações. Sistema esse que se constitui em várias dimensões, como a epistêmica, a política, cosmológica, a institucional, e assim por diante, e a elas são somados eixos articuladores como, por exemplo, o machismo. De forma que os espaços e situações onde violências e negações de direitos são constantes, e vêm às vezes de forma silenciosa, camuflada de desculpas sem fundamentos. No caso do racismo em relação a pessoas e formas de viver dos indígenas, não se trata de desconhecimento de parte da sociedade não indígena, mas sim da arrogância no sentido de uma construção cultural pela desvalorização e desrespeito às pessoas ditas de culturas diferentes. Por fim, afirmar a preeminência indígena na luta antirracista não significa isentar as diferentes parcelas da sociedade civil brasileira de ingressarem nessa luta. Pelo contrário, espera-se que, com a maior visibilidade do problema, possamos contar com a adesão de aliados que venham também a atuar na erradicação do racismo e das formas de discriminação pautando abertamente os legados coloniais que atravessaram as interações entre “índios, brancos e negros” no passado e que continuam hoje a moldar a sociedade brasileira. Referências
1Esta pesquisa é baseada nas falas de intelectuais, artistas e lideranças indígenas que serão referenciados e identificados, a respeito de suas experiências com o racismo. As falas e depoimentos fazem parte do projeto “Racismo e Anti-racismo no Brasil: o caso dos povos indígenas”, que tem por foco o racismo do dia-a-dia, o racismo institucional e a violência contra os povos indígenas no Brasil. O objetivo do projeto foi criar espaço para que lideranças, intelectuais e artistas indígenas de várias partes do Brasil e vários contextos sociais e políticos pudessem se encontrar para discutir o racismo e formas de combatê-lo. O projeto está sendo financiado pelas agências públicas AHRC (Conselho de Pesquisa em Artes e Humanidades) e GCRF (Fundo de Pesquisa para Desafios Globais) da Grã-Bretanha. Os dois encontros foram realizados em maio e novembro de 2018 em Cachoeira e Salvador, Bahia, respectivamente. Os vídeos desses encontros estão disponíveis no site do projeto, e sua transcrição irá compor um livro que será publicado em breve. Para mais informações, consultar: http://projects.alc.manchester.ac.uk/racism-indigenous-brazil/ Datas de Publicação
Histórico
Quais foram as consequências do encontro entre os europeus e os povos indígenas?Com a chegada da primeira leva de europeus, logo no primeiro século, a população indígena foi reduzida a quatro milhões, com as doenças e o extermínio. Atualmente, no Brasil, são cerca de 450 mil indígenas distribuídos por todo o território brasileiro.
Quais as consequências do contato dos povos nativos americanos com os portugueses?Segundo o investigador, a partir de 1620 e até 1680 há um rápido despovoamento, com uma taxa de mortalidade incrivelmente alta. "Cerca de 87% da população nativa morreu", acrescentou. Uma outra conclusão do estudo é que o impacto do despovoamento teve também consequências no clima e na atmosfera à escala global.
Qual foi a consequência do contato com os europeus para a saúde dos indígenas?Milhares morreram no contato direto ou indireto com os europeus e as doenças trazidas por eles, pois não possuíam imunidade natural. Gripe, sarampo, coqueluche, tuberculose, varíola e sífilis são alguns dos males que vitimaram sociedades indígenas inteiras.
Quais foram as mudanças mais significativas com relação à população indígena no Brasil após a chegada dos portugueses?A população indígena no país sofreu um enorme decréscimo, entre o século XVI e o século XX, passando de milhões para a casa dos milhares. Extermínios, epidemias e também escravidão foram os principais motivos dessa redução.
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