| O procedimento da desconsideração da personalidade Jurídica no Direito Processual Brasileiro* Handel Martins Dias** 1. Introdução [arriba] Como já esposava J. Lamartine Corrêa de Oliveira (1979, pág. 262), em sua clássica obra A dupla crise da pessoa jurídica, o problema da utilização abusiva da personalidade jurídica de forma desvinculada dos seus fins legítimos é comum a todo e qualquer sistema jurídico em que vigore o princípio da separação entre pessoa jurídica e seus membros. Tomando proveito do escudo da limitação de responsabilidade e autonomia patrimonial, os sócios com frequência se valem da pessoa jurídica para fins imorais ou antijurídicos, sobretudo para a realização de atos abusivos ou fraudulentos. Com o escopo de evitar lesão a credores, passou a ser desconsiderada a personalidade jurídica em hipóteses como essas, com a responsabilização pessoal daquele que a utilizou de forma desvirtuada[1]. Todavia, essa solução não foi encontrada com facilidade, senão desenvolvida gradual e paulatinamente pela jurisprudência e pela doutrina. A formulação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica iniciou na jurisprudência da common law no curso do século XIX[2], restando conhecida como disregard doctrine, piercing the corporate veil, lifting the corporate veil ou cracking open the corporate shell[3]. A primeira vez que se traspassou a pessoa jurídica em juízo e se depreenderam as características individuais dos sócios foi em 1807, no common law norte-americano, no caso Bank of United States vs. Deveaux. Porém, este julgamento limitou-se a decidir sobre aspectos procedimentais de definição de competência para julgamento da causa[4]. O pioneiro leading case de desconsideração da personalidade jurídica foi de fato proferido em 1897, na Grã-Bretanha, mais de meio século depois. Trata-se do caso Salomon vs. Salomon & Co. Ltd., no qual juiz desconsiderou a personalidade jurídica da insolvente Salomon & Co. Ltd. para responsabilizar o sócio Aaron Salomon, o qual, amealhando o seu fundo de comércio com familiares, havia utilizado a empresa como fachada para a sua proteção patrimonial. Embora tenha sido reformada pela Casa dos Lordes –sob o argumento de que a sociedade havia sido constituída legalmente, razão por que era defeso se determinar a responsabilidade pessoal de Aaron Salomon–, a decisão originária auferiu grande repercussão, fomentando a ideia da desconsideração da personalidade jurídica. O julgamento do caso Salomon vs. Salomon & Co. Ltd. deu origem ao chamado Salomon principle, que ainda hoje orienta decisões no sistema da common law[5]. A pouco e pouco a ideia disseminou-se e foi recepcionada na civil law[6], auferindo denominações distintas, como superamento della personalità giuridica, no direito italiano; durchgriff der juristichen person, no direito alemão; mise-à l’cart de la personnalité morale, no direito francês; e teoría de la penetración de la personalidad, no direito espanhol[7]. No Brasil, a primeira desconsideração da personalidade jurídica que se tem notícia foi realizada em 1955, de forma intuitiva, pelo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. No acórdão do qual foi relator o Desembargador Edgard de Moura Bittencourt, a 2ª Câmara reconheceu a existência da confusão patrimonial e determinou a responsabilidade pessoal do sócio que usava a sociedade –um hospital– para comprar móveis domésticos para si[8]. Com grande repercussão, a decisão despertou os demais tribunais para a solução aventada. No plano doutrinário, o primeiro a defender essa possibilidade no Brasil foi Rubens Requião ao expor as teorias estrangeiras sobre a disregard doctrine em uma conferência, em 1969, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, publicada na Revista dos Tribunais[9]. Também foram fundamentais para a formação do pensamento brasileiro sobre a desconsideração da personalidade jurídica os estudos formulados na década de setenta por Fábio Konder Comparato[10] e Lamartine Corrêa de Oliveira[11]. Assim, de maneira paulatina, mediante integração, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro foi se consolidando, até ser consagrada no Código de Defesa do Consumidor[12]. Depois, o instituto também foi incluído no Código Civil, na Lei Antitruste, na Lei de Crimes Ambientais e na Lei Anticorrupção. No entanto, a normatização da desconsideração da personalidade jurídica havia sido concretizada apenas no plano material. O tema continuava carecendo de atenção no aspecto concernente à sua efetivação no âmbito processual, ambiente no qual se realiza por meio de sua aplicação. Tal lacuna abriu espaço para um rosário de debates sobre a definição da melhor técnica para a sua efetivação sem risco de ofensa às normas fundamentais do processo civil. Atendendo às reivindicações doutrinárias, o novo Código de Processo Civil enfim realizou, como técnica de intervenção de terceiro, a tão desejada regulamentação procedimental de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. O objetivo precípuo do presente ensaio é proceder a uma análise crítica do procedimento delineado pelo legislador brasileiro para a desconsideração da personalidade jurídica. Para isso, traçam-se, de início, a título propedêutico, algumas breves noções gerais sobre a pessoa jurídica, mormente acerca dos consectários do reconhecimento de sua personalidade jurídica, e sobre a desconsideração da personalidade jurídica no Brasil sob a ótica do direito material. 2. Responsabilidade e autonomia patrimonial da pessoa jurídica [arriba] À medida que a sociedade organizava-se, a prática revelou a necessidade de uma categoria jurídica capaz de favorecer o crescimento de setores produtivos, culturais, sociais e religiosos, o que não poderia ser alcançado pelo esforço isolado de pessoas ou da solidariedade interna de pequenos núcleos familiares. Para viabilizar planos de desenvolvimento não bastavam mão-de-obra coletiva, recursos financeiros isolados, conhecimentos e experiências acumulados. Seria impraticável qualquer projeto arrojado sem que se criassem princípios e normas que distinguissem o todo dos indivíduos e sem atribuir personalidade jurídica ao ser meramente convencional. A doutrina correspondeu aos anseios da sociedade e projetou a categoria das pessoas jurídicas de que o legislativo veio a valer-se, aprovando estatuto dos seres de existência invisível. A adoção do nome pessoa para a construção jurídica não decorre do acaso, mas à semelhança de condições com a pessoa física, que possui personalidade jurídica, permitindo-lhe a prática de fatos jurídicos e a integrar a relação, seja no polo ativo como titular de direito subjetivos, seja no polo passivo como responsável pelo dever jurídico (Nader, 2009, v. 1, pág. 177-179). A teoria que melhor explica a natureza das pessoas jurídicas é a da realidade técnica, integrante da corrente personificante. Situada entre as teorias da ficção e da realidade orgânica, esta teoria esposa que a pessoa jurídica existe na realidade, malgrado a sua personalidade seja produto do ordenamento jurídico. A pessoa jurídica é uma entidade de existência prévia à ordem jurídica, não dependendo desta para existir. O direito somente reconhece as pessoas jurídicas ao regulá-las. Como ensinava Waldemar Ferreira Martins (1947, pág. 33), onde existe uma vontade capaz de se determinar, existe um direito e, portanto, um sujeito de direitos. Pela mesma razão por que se reconhece a pessoa natural, de existência visível, há de se reconhecer a pessoa jurídica, distinta das pessoas físicas que a formam. Com efeito, as pessoas jurídicas foram só reconhecidas pela legislação, pois já existiam mesmo antes da criação da lei que as positivou. A disciplina legal da pessoa jurídica, real sujeito das ações dotadas de significado jurídico, constitui mero reconhecimento de algo preexistente, que a ordem positiva não teria como ignorar[13]. Conquanto quase sempre as pessoas jurídicas sejam resultado de uma reunião de pessoas, esta não é essencial à sua natureza. As fundações, por exemplo, caracterizam-se pela existência de um acervo patrimonial, motivo por que Francisco Amaral (2003, pág. 26-27) conceitua a pessoa jurídica como um conjunto de pessoas ou bens que se agruparam por conveniência, ou até mesmo por necessidade, para obter um objetivo em comum. Ainda que os idealizadores da pessoa jurídica disponham de liberdade para a escolha de seu objeto, é imprescindível que ela tenha um fim a ser alcançado, não precisando ser a obtenção de lucro[14]. Os ramos de atuação das pessoas jurídicas são diversificados, podendo ser, verbi gratia, de natureza filantrópica, esportiva ou cultural. Além da reunião de pessoas ou de bens e da ideia de fim a realizar, sobressai a existência da personalidade jurídica como fator para caracterizar a pessoa jurídica[15]. A partir da inscrição do ato constitutivo no respectivo registro (CC, art. 45), a pessoa jurídica adquire a personalidade jurídica e, com ela, uma série de consectários, destacando-se a titularidade negocial e processual; a incomunicabilidade de seus direitos e obrigações; e a autonomia patrimonial[16]. Tais atributos são fundamentais para o desenvolvimento da atividade econômica na medida em que incentivam os indivíduos a investirem ante a diluição dos riscos. Pois, diante da irresponsabilidade pelas obrigações sociais, os investidores podem aplicar dinheiro sem, necessariamente, comprometer o seu patrimônio particular (LGOW, 2011, pág. 36). Dotada de personalidade, a pessoa jurídica pode, por meio de seu administrador, praticar atos e negócios jurídicos em nome próprio para o bom desempenho de sua atividade, assim como, em face de sua capacidade processual, defender os seus interesses em juízo, ativa ou passivamente[17]. As pessoas jurídicas não se confundem com as de seus membros, tampouco com os seus direitos, suas obrigações ou seus patrimônios. Por conseguinte, somente o patrimônio da pessoa jurídica responde por suas dívidas perante terceiros. No entanto, essa autonomia de responsabilidade e de patrimônio não é absoluta em algumas modalidades de pessoas jurídicas de direito privado[18]. Mas nessas hipóteses de comunicação de obrigações, inexistindo cláusula de responsabilidade solidária, os membros só respondem na proporção em que participem das perdas e caso os bens da pessoa jurídica não sejam suficientes para cobrirem a dívida (CC, art. 1.023)[19]. Na execução, eles têm o direito de requerer a constrição de seus bens apenas depois de executados os da pessoa jurídica (CC, art. 1.024; CPC, art. 795, § 1º), cumprindo-lhes, para fazer jus ao benefício de ordem, indicar bens livres e desembargados da pessoa jurídica situados na comarca que sejam suficientes para o adimplemento do débito (CPC, art. 795, § 2º). A pessoa jurídica perde a personalidade jurídica com o cancelamento de sua inscrição no registro próprio, após o encerramento da liquidação (CC, art. 51, § 3º). No entanto, antes do procedimento liquidatário, é mister a dissolução da pessoa jurídica. A dissolução pode se dar por deliberação de seus membros, observando o previsto nos atos constitutivos (dissolução convencional); pela cassação da autorização para o seu funcionamento, nos casos em que se exige autorização de órgão competente para praticar a sua atividade (dissolução administrativa); ou por sentença, acolhendo-se pedido de qualquer dos sócios (dissolução judicial). Mesmo com a dissolução, a pessoa jurídica subsiste para os fins da liquidação, até que esta se conclua (CC, art. 51, caput), averbando-se a dissolução no registro em que a pessoa jurídica estiver inscrita (CC, art. 51, § 1º). Durante a liquidação, procura-se solucionar as pendências negociais e vender o patrimônio com o escopo de se apurar o passivo e o ativo. Após, apurada a existência de lucros na venda, procede-se à partilha destes entre os seus membros[20]. Como sublinha Fábio Ulhoa Coelho (2016, pág. 36), enquanto esse procedimento de liquidação não se encerra, subsiste a personalidade jurídica da pessoa jurídica e todos os efeitos derivados da personalização. Desde o início até sua extinção, a pessoa jurídica mantém, de ordinário, em face de sua personificação, a limitação de responsabilidade e a autonomia patrimonial. À exceção das sociedades em nome coletivo, na qual todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente caso sejam insuficientes os bens da sociedade, e de algumas sociedades em que há restrição dos sócios que podem ser responsabilizados ou da medida em que podem ser responsabilizados, os membros da pessoa jurídica não são responsáveis pelas obrigações assumidas por ela. Contudo, essa restrição de responsabilidade pode ser superada a fim de se alcançar o patrimônio pessoal dos membros da pessoa jurídica ou de seu administrador, quer nas hipóteses em que a responsabilidade seria exclusivamente da pessoa jurídica, quer nas hipóteses em que há uma limitação dessa responsabilidade. Isso é possível mediante a desconsideração da personalidade jurídica, quando, nos casos previstos em lei, transpõe-se a personalidade jurídica e se responsabiliza o membro da pessoa jurídica ou seu administrador. Não há extinção ou desconstituição da personalidade jurídica, mas, sim a suspensão de sua eficácia no caso concreto por expressa decisão judicial. Como referem Marcelo Bertoldi e Marcia Carla Pereira Ribeiro (2011, pág. 146), na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, o ato constitutivo da pessoa jurídica não é desfeito, nem a sociedade se dissolve, permanecendo válida e eficaz para outros fins. 3. Desconsideração da personalidade jurídica [arriba] A desconsideração da personalidade jurídica tem por desígnio, em hipóteses excepcionais, estender os efeitos subjetivos do título executivo a sócio ou ao administrador da pessoa jurídica, tornando-o patrimonialmente responsável por dívida dela em hipótese em que não teria nenhuma responsabilidade ou teria responsabilidade limitada. Isso significa que, procedida à desconsideração da personalidade jurídica, o membro ou o administrador não se torna codevedor, mas, sim, responsável patrimonial pela obrigação da pessoa jurídica, pois os seus bens ficam sujeitos à execução caso os bens da pessoa jurídica não sejam suficientes para satisfazer o débito (CPC, art. 790, VII, c/c art. 795, § 1º)[21]. Ante a desconsideração da personalidade jurídica, o membro ou o administrador da pessoa jurídica se sujeita à execução na qualidade de responsável patrimonial, não de devedor, o qual segue sendo a pessoa jurídica, reconhecida como tal no título executivo, na medida em que foi ela que assumiu a obrigação perante o credor. Por isso, a desconsideração da personalidade jurídica não é aplicável quando o sócio ou o administrador da pessoa jurídica é responsável direto pela obrigação[22], uma vez que não há interesse processual em abstrair-se a personalidade jurídica para se alcançar o seu patrimônio pessoal. Nesta hipótese de responsabilidade direta, em que o membro ou o administrador tem legitimidade passiva ad causam, a ação ou a execução pode ser proposta também contra ele. Há duas teorias sobre a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica: a teoria maior e a teoria menor. Sistematizada principalmente por Rolf Serick, a teoria maior consiste em autorizar a desconsideração da personalidade jurídica ignorando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, em casos de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial quando há intenção de lesar ou fraudar por parte de sócio ou do administrador. Gustavo Tepedino (2008, v. 2, pág. 10) explica que se exige a demonstração de fatos atribuíveis ao membro ou administrador que frustrem legítimo interesse do credor mediante a manipulação fraudulenta da pessoa jurídica. A mera insatisfação dos créditos não abona a desconsideração da personalidade jurídica, pois se busca preservar a autonomia patrimonial naquilo que for possível. De outra parte, a teoria menor autoriza a desconsideração em caso de simples insolvência e a consequente constatação de prejuízo dos credores, sem perquirir se houve conduta abusiva ou fraudulenta. O simples prejuízo do credor permite a desconsideração da personalidade jurídica, atingindo membro ou o administrador da pessoa jurídica não obstante a probidade de suas condutas[23]. A desconsideração da personalidade jurídica foi pela primeira vez prevista no ordenamento jurídico brasileiro em 1990, com o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078). O artigo 28, caput, da codificação consumerista prevê que o juiz pode desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, assim como quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocada por má administração. Pela ânsia de proteger o consumidor, ou quiçá pela má compreensão do instituto, o legislador arrolou hipóteses que não se coadunam com a desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que permitem a responsabilização direta do sócio ou do administrador. Na verdade, dessas apenas o abuso de direito constitui autêntica hipótese de desconsideração da personalidade jurídica[24]. Sem embargo, depois de arrolar, no caput, uma séria de supostas hipóteses para a desconsideração da personalidade jurídica, o § 5º do artigo 28 estabelece contraditoriamente que “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”, ou seja, a despeito das hipóteses de cabimento previstas no caput. Forte no disposto neste § 5º, prepondera o entendimento, inclusive no Superior Tribunal de Justiça[25], de que o Código de Defesa do Consumidor adota a teoria menor, bastando a simples caracterização da dificuldade do pagamento do consumidor em face da insolvência da pessoa jurídica para a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica. A segunda lei a positivar a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, a primeira pela teoria maior, foi a Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, que transformou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica –CADE– em autarquia, e dispôs, entre outras providências, sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. A chamada Lei Antitruste, em seu artigo 18, previa que a “personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social”, bem como “quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocada por má administração”. Este dispositivo restou revogado pela Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011[26], que sucedeu a lei anterior, reproduzindo o texto do artigo 18 da lei revogada no artigo 34 da nova Lei Antitruste. Esta norma jurídica incorreu no mesmo erro do caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor ao prever hipóteses em que há responsabilidade pessoal do sócio ou do administrador. Como foi antes referido, o ato ilícito, o excesso de poder, a infração da lei, a violação do estatuto ou contrato social e a má administração não se relacionam com a desconsideração da personalidade jurídica, na medida em que permitem, por si sós, a responsabilidade direta de quem praticou o ato. Como, nesses casos, o patrimônio do sócio ou do administrador já está descoberto por ser ele coobrigado, não subsiste qualquer interesse processual em se abstrair a personalidade jurídica[27]. Em 12 de fevereiro de 1998 foi promulgada a Lei nº 9.605, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. A chamada Lei de Crimes Ambientais previu a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, adotando, claramente, a teoria menor. Inspirada no § 5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, prescreveu, no artigo 4º, que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”. Portanto, o mero fato de a personalidade jurídica constituir obstáculo para o ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente permite a desconsideração da personalidade jurídica. Não há necessidade de se perquirir se houve concorrência de fraude ou abuso de direito. Neste caso, como sublinha Gustavo Tepedino (2008, v. 2, pág. 15), o magistrado está livre para proceder à desconsideração da personalidade jurídica quando se prova a inexistência de bens socais suficientes para satisfazer a dívida e a solvência de qualquer um dos sócios. O Código Civil de 2002 também não se furtou de estabelecer as hipóteses em que é possível a desconsideração da personalidade jurídica, insculpindo no artigo 50 que, “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. Por meio de aplicação subsidiária, o artigo 50 do Código Civil legitima a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica nos demais sistemas jurídicos em que não há norma específica, uma vez que a sua previsão normativa representa a cláusula geral sobre o tema da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em nosso ordenamento jurídico. Este dispositivo –que não derrogou as disposições dos microssistemas retrorreferidos, conforme se concluiu na 1ª Jornada de Direito Civil promovido pelo Conselho da Justiça Federal[28]– alinha-se à teoria maior, porquanto pressupõe, para a desconsideração da personalidade jurídica, a configuração de ato abusivo nas hipóteses previstas, não bastando o simples estado de insolvência da pessoa jurídica[29]. Mais recentemente uma nova hipótese de desconsideração da personalidade jurídica foi positivada na legislação especial, desta vez na seara administrativa. Trata-se da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, entre outras providências. A chamada Lei Anticorrupção prevê que, no processo administrativo de responsabilização, “A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática de atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa” (art. 14). O escopo da Lei é garantir que o patrimônio dos sócios com poderes de administração ou dos administradores respondam, a despeito de decisão judicial, pelas sanções impostas à pessoa jurídica no processo administrativo de responsabilização por atos praticados contra a Administração Pública. Consigna-se que muito antes da Lei Anticorrupção já havia decisão do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo o poder da Administração Pública de desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular[30]. Sopesados esses diplomas, percebe-se que, embora não de maneira adequada e suficiente, a desconsideração da personalidade jurídica está consolidada no plano do direito material. Ainda não está prevista a chamada desconsideração inversa, derivação da noção tradicional da disregard doctrine que cada vez mais tem alcançado projeção, sobretudo em lides referentes à partilha patrimonial no direito de família[31]. Como indica a designação cunhada pela doutrina e jurisprudência, nesta hipótese o ente personificado é utilizado para acobertar ou desviar bens de sócio[32]. A desconsideração inversa foi criada em virtude da utilização do escudo patrimonial da pessoa jurídica não para frustrar os credores desta, mas, sim, os credores da pessoa do sócio mediante transferência de seus bens. Isso porque, muitas vezes, a pessoa física aproveita a sua condição de sócio para transmitir os seus bens pessoais para a sociedade com intuito de prejudicar terceiros mediante o esvaziamento de seu patrimônio. Portanto, a desconsideração inversa visa a alcançar o acervo patrimonial da pessoa jurídica quando o sócio desvirtua, de má-fé, a sua utilização em prejuízo de terceiros. Em 2010, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a aplicação da desconsideração inversa por meio de uma interpretação teológica do artigo 50 do Código Civil. Entretanto, asseverou o Superior Tribunal de Justiça que tal medida é de exceção, devendo ser aplicada tão somente se forem preenchidos os requisitos estabelecidos no artigo 50 do Código Civil, com o uso abusivo da personalidade jurídica[33]. 4. Procedimento previsto no novo código de processo civil [arriba] A teoria da desconsideração da personalidade jurídica passou a experimentar uma nova fase de sua trajetória no cenário do direito nacional com o advento do Código de Processo Civil de 2015[34]. O legislador estabeleceu entre os artigos 133 a 137, em capítulo próprio dentro do título referente às intervenções de terceiros[35], o procedimento para se desconsiderar a personalidade jurídica, preenchendo lamentável lacuna que vinha acompanhando as discussões sobre a forma adequada de tratar processualmente a desconsideração. A inovação na sistemática processual com a inserção dessa técnica tolhe a possibilidade de estender-se a responsabilidade patrimonial para além do polo passivo do processo de conhecimento ou de execução sem a observância do procedimento, o que é reforçado pelo § 4º do artigo 795 do Código[36]. A forma da desconsideração da personalidade jurídica coloca-se como uma questão de ordem pública, portanto, de caráter indisponível e que não pode ser relativizada pelo magistrado[37]. Se constitui garantia processual fundamental, assentada na Constituição (art. 5º, LIV), que ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal, desconsiderar a personalidade jurídica sem a aplicação do procedimento instituído pelo Código de Processo Civil implica desrespeito ao princípio constitucional do processo justo[38], ensejando a nulidade dos atos processuais. A novidade oferece uma série de vantagens, mormente o debate e a eventual efetivação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no próprio feito com obediência aos postulados que balizam o ideal de realização do processo justo[39]. Durante a lacuna processual, muitos juristas admitiam a processualização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica apenas por meio de ação cognitiva autônoma. Embora viabilizasse o contraditório e o direito de defesa, a propositura de demanda autônoma proporcionava um tempo processual demasiado até a decisão definitiva acerca da responsabilidade patrimonial ou não do sócio ou do administrador[40]. Considerando o escopo de incluir um terceiro na relação jurídica processual, a maior celeridade e simplicidade, bem como a sua capacidade de, apesar disso, propiciar de forma satisfatória a efetivação do contraditório dinâmico e do direito de defesa, inclusive a dilação probatória e o exercício do direito de recorrer, o incidente processual mostra-se meio mais técnico e adequado para a desconsideração da personalidade jurídica[41]. Antes do novo Código de Processo Civil, não eram poucos os casos em que os tribunais admitiam a aplicação incidental da disregard doctrine, porém desprezando a necessidade de se atender maiores formalidades prévias. Propiciavam contraditório diferido, posterior ao ato de ampliação do polo passivo, quando não após a realização de medidas restritivas. Nesse contexto, restava ao membro ou ao administrador impugnar a decisão já tomada sem sequer seu conhecimento, quanto mais com a oportunidade de influenciar na formação do convencimento judicial. O contraditório prévio acabava sendo dispensado, indo de encontro com o ideal de um processo justo[42]. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica proporciona uma ampliação subjetiva da demanda no seu curso, porque o sócio ou o administrador passa a integrar a relação jurídica processual na condição de parte quando é citado, formando, ao lado da pessoa jurídica, litisconsórcio passivo facultativo ulterior[43]. O pedido pode ser formulado pela parte interessada que demanda contra a pessoa jurídica ou pelo Ministério Público, quando lhe cabe intervir no processo como fiscal da ordem jurídica (art. 133, caput). O incidente pode ser postulado no processo de execução e em qualquer fase de processo de conhecimento, seja procedimento comum ou especial, seja na fase cognitiva ou na de cumprimento de sentença, inclusive no segundo grau de jurisdição, quando a jurisdição da causa está no tribunal no exercício da competência originária ou recursal (art. 134, caput, e art. 932, VI)[44]. Por força do disposto no artigo 133, § 1º, o requerente dever precisar, em conformidade com os ditames da legislação material invocada, os fatos e fundamentos jurídicos que embasam o pedido, apresentando as provas existentes e indicar as que ainda pretende produzir durante a instrução a fim de comprovar o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica[45]. Ressalvada a possibilidade de redistribuição, o ônus da prova pertence ao requerente. Cumpre a ele demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica (art. 134, § 4º). Caso não se desincumba desse encargo probatório, cuja extensão varia de acordo com a teoria aplicável à hipótese, maior ou menor, o pedido de desconsideração deve ser rejeitado. No átimo de admissibilidade, não cabe ao magistrado exigir demonstração cabal da presença dos pressupostos, senão indícios de plausibilidade da postulação já que a extensão da responsabilidade patrimonial deve ser decidida somente depois de se oportunizar o contraditório e a produção de provas[46]. Nas palavras de Teresa Arruda Alvim Wambier, Rogério Licastro Torres de Mello e Leonardo Ferres da Silva Ribeiro (2015, pág. 254), a exigência legal do § 4ª do artigo 134 do Código indica apenas a necessidade de uma dose mínima de aparência de bom direito, de plausibilidade da alegação, sem o qual o incidente deve ser indeferido liminarmente[47]. Admitido o incidente, não devem ser realizados, até a sua resolução, atos visando ao processamento ou julgamento da demanda originária, salvo os urgentes para evitar dano irreparável (art. 134, § 3º, c/c art. 314)[48]. O sócio ou o administrador deve ser citado para, no prazo de quinze dias, manifestar-se sobre o pedido e designar as provas que pretende produzir (art. 135). Em sua manifestação, pode não apenas impugnar a pretensão de desconsideração da personalidade jurídica, mas, também, forte no princípio da eventualidade, o próprio pedido dirigido contra a pessoa jurídica na medida em que tem interesse jurídico na decisão, inclusive pela relação de prejudicialidade existente com a demanda de desconsideração da personalidade jurídica[49]. Caso o requerido apresente defesa processual, defesa de mérito indireta ou junte prova documental, o juiz deve determinar a oitiva do requerente no prazo de quinze dias (arts. 350, 351 e 437). Concluída a instrução, o juiz resolve o incidente por meio de decisão interlocutória, no curso do processo, ou por sentença, quando decide por ocasião do fim da fase cognitiva de processo de conhecimento ou da extinção do processo de execução (arts. 136, caput, 203, §§ 1º e 2º)[50]. Resolvido o pedido de desconsideração da personalidade jurídica por decisão interlocutória, cabe agravo de instrumento (art. 1.015, IV). Caso o juiz decida sobre o pedido na própria sentença, cabe à parte inconformada com o decisum manejar a apelação (art. 1.009, § 3º). Porém, quando o pedido de desconsideração for formulado diretamente no tribunal, compete ao relator decidir o incidente (art. 932, VI), cabendo, contra a sua decisão monocrática, agravo interno para o órgão colegiado competente (art. 1.021, caput, e 136, parágrafo único). Postulada a desconsideração ainda na fase cognitiva, caso julgue juntamente com o pedido principal, o magistrado deve decidir primeiro o deduzido contra a pessoa jurídica. Sendo este rejeitado, fica prejudicado o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica. Em contrapartida, caso seja acolhido, o juiz deve decidir sobre a responsabilização do sócio ou do administrador[51]. Por falta de legitimidade, é defeso ao juiz condenar diretamente o sócio ou o administrador no pedido principal[52]. Tecnicamente, sendo este acolhido, o órgão judicial deve somente declarar se o sócio ou o administrador tem ou não responsabilidade patrimonial quanto à condenação imposta à pessoa jurídica[53]. Em outras palavras, o juiz deve decidir se os efeitos subjetivos do título executivo alcançam ou não o sócio ou o administrador da pessoa jurídica condenada[54]. Posto que o legislador tenha inserido incidente na titulação do capítulo com o intento de destacar a natureza jurídica da técnica de intervenção de terceiro acrescentada, nem sempre esta se dará incidentemente no processo. No esquadro oportunizado pelo sistema jurídico instaurado pela nova codificação processual, também é possível se postular ab initio a desconsiderar a personalidade jurídica[55]. O § 2º do artigo 134 do Código autoriza, de forma expressa, que a desconsideração da personalidade jurídica seja requerida já na petição inicial, mediante cumulação objetiva e subjetiva de pedidos, tornando desnecessária a instauração do incidente[56]. A inovação é de extrema importância e representa verdadeira dobra histórica no percurso que vem sendo trilhado pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito interno, na medida em que passa a admitir que o pedido de aplicação da disregard of the legal entity seja apresentado no momento da propositura da demanda, formando litisconsórcio passivo inicial entre a pessoa jurídica e o sócio ou administrador[57]. Por meio de interpretação ampliativa, é possível também se aceitar a formulação de pedido de desconsideração da personalidade jurídica em contestação, notadamente quando a demanda é proposta por pessoa jurídica e o réu propõe, contra ela, reconvenção ou formula contrapedido na peça de defesa. Nessa hipótese, por força da apresentação do pedido de desconsideração de personalidade jurídica na defesa, será ativo o litisconsórcio formado entre a pessoa jurídica e o sócio ou o administrador. Alicerçado na inexistência de legitimidade passiva daqueles que se quer atingir por meio da efetivação da disregard doctrine, por não serem passíveis de condenação na sentença ou de figurarem no título executivo como devedores, poder-se-ia, de uma forma mais simplista, compreender que a veiculação do pedido inicial de ampliação da responsabilidade jurídica aos sócios, administradores ou, eventualmente, à pessoa jurídica, somente teria cabimento na petição inicial do processo de conhecimento, ficando afastada a viabilidade de sua realização em pedidos de cumprimento de sentença ou na exordial de execução fundada em título executivo extrajudicial. Porém, esta não parece ser a melhor conclusão. No caput do artigo 134, o Código refere que é cabível a desconsideração da personalidade jurídica no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. Não há norma tolhendo a parte de se valer do pedido inicial de desconsideração ao manifestar a sua pretensão executiva. Para tanto basta que existam motivos que justifiquem a sua formulação já no encetamento da execução. Como refere Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2016, pág. 74), se desde o início da execução o credor já tem notícia acerca da existência dos pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica, não tem sentido impedir que postule no início a desconsideração. A novidade da normatização do incidente de desconsideração traz à tona o debate sobre a possibilidade desta ampliação de responsabilidade patrimonial vir a ser efetivada de ofício pelo julgador. Conforme o artigo 133, caput, do Código de Processo Civil, o incidente será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir como fiscal da ordem jurídica[58]. Essa disposição pode ser flexibilizada de acordo com a natureza do direito material envolvido na lide. Qualificado por uma série de aspectos especiais que permitem sua visualização como disciplina de natureza indisponível, o direito do consumidor permite a sua aplicação de ofício pelo julgador[59]. Na oportunidade em que regula a desconsideração da personalidade jurídica, o Código de Defesa do Consumidor afirma que “o juiz poderá aplicar a teoria” (art. 28, caput), o que permite inferir que, nas demandas fundadas na defesa dos direitos do consumidor, o juiz pode instaurar ex officio o incidente de desconsideração da personalidade jurídica[60]. Na lição de Luis Alberto Reichelt (2015, pág. 247), do ponto de vista hermenêutico, na dúvida entre duas ou mais interpretações resultantes do contraste entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código de Processo Civil, impõe-se seja sempre adotada aquela que permita ao consumidor obter resultados mais satisfatórios ao seu interesse, sendo vedado o retrocesso. Trilhando esse caminho, Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2016, pág. 61-81) leciona que, ao determinar de ofício a instauração do incidente, o magistrado deve realizar a descrição dos fatos supostamente hábeis a ensejar a superação da personalidade jurídica, com a subsequente citação daqueles que serão atingidos pela possível ampliação da responsabilidade. Destaca-se, por fim, que o novo Código de Processo Civil faz referência expressa à desconsideração inversa da personalidade jurídica, prevendo que lhe são aplicáveis as disposições sobre a desconsideração da personalidade jurídica (art. 133, § 2º)[61]. Como ressalta Arruda Alvim (2017, pág. 535), não há diferenças procedimentais em relação ao processamento da desconsideração da personalidade jurídica, sendo aplicadas à desconsideração inversa as mesmas disposições adequadas à modalidade tradicional de superação da personalidade jurídica. O pedido de desconsideração inversa contra a pessoa jurídica pode ser formulado de forma originária, ou seja, na própria petição inicial em que propõe a demanda contra o sócio, ou de forma incidental, durante a fase cognitiva do processo que move contra o sócio, assim como na fase de cumprimento de sentença ou no curso da execução fundada em título executivo extrajudicial. Naturalmente, cumpre ao requerente demonstrar a reunião dos pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica, que, na sua modalidade inversa não se afasta dos parâmetros fixados na cláusula geral do artigo 50 do Código Civil, que, destarte, serve de baliza[62]. Nas palavras de Giordano Bruno da Silva Santos (2016, pág. 163), a teoria inversa baseia-se na existência de abuso da personalidade jurídica (neste caso, com o sócio ocultando seus bens por meio da sociedade empresária) caracterizado pelo desvio de finalidade ou na confusão patrimonial. 5. Conclusão [arriba] Concluída esta breve análise da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e suas implicações procedimentais em face das inovações trazidas pelo novo Código de Processo Civil, cabem algumas considerações finais a título de conclusão. A desconsideração da personalidade jurídica tem por escopo, nos casos admitidos em lei, estender os efeitos subjetivos do título executivo a membro ou ao administrador de pessoa jurídica, tornando-o patrimonialmente responsável por dívida dela em hipótese em que não teria nenhuma responsabilidade ou teria responsabilidade limitada. Essa possibilidade de relativização da autonomia patrimonial e da limitação de responsabilidade de pessoa jurídica, por meio da abstração in concreto sua personalidade jurídica, está prevista no Código Civil (art. 50), na Lei Antitruste (art. 34), no Código de Defesa do Consumidor (art. 28), na Lei de Crimes Ambientais (art. 4º) e, mais recentemente, no âmbito administrativo, na Lei Anticorrupção (art. 14). Nos dois primeiros diplomas e na Lei Anticorrupção, alinhados à teoria maior, é necessário demonstrar a insolvência da pessoa jurídica e o seu uso desvirtuado mediante fraude ou abuso do direito para se desconsiderar a personalidade jurídica. O ônus da prova é mais ameno quando o credor é consumidor e para aquele que busca o ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. Nestes dois casos, ao encontro da teoria menor, basta que a personalidade jurídica da pessoa jurídica represente um obstáculo para a satisfação do direito para que se legitime a sua desconsideração, não havendo necessidade de se configurar a existência de fraude ou de abuso de direito. Apesar de a desconsideração da personalidade jurídica ser admitida há anos na prática forense nacional e estar positivada, no plano de direito material, com suas fragilidades e vicissitudes, desde 1990, ainda não havia sido regulamentado o procedimento para a sua efetivação. Por isso, o primeiro benefício do novo Código de Processo Civil foi conferir segurança jurídica aos operadores do direito, mormente porque a doutrina e a jurisprudência, principais fontes utilizadas para integrar a lacuna, não tinham logrado definir um rito compatível com os valores constitucionais. O Código de Processo Civil de 2015 consagrou a prescindibilidade de ação de autônoma para que seja desconsiderada a personalidade jurídica, prevendo que pode ser realizada no próprio processo em que se mostra cabível tornar sócio ou o administrador responsável patrimonial por dívida da pessoa jurídica. Estatuiu o Código que a desconsideração da personalidade jurídica pode ser postulada ab initio (pedido originário) ou incidentemente (pedido incidental), no curso da fase de cognitiva ou de cumprimento de sentença, bem como em processo de execução fundada em título executivo extrajudicial, garantindo, seja qual a forma e o momento em que se veicule o pleito, o contraditório prévio e direito de defesa. O ideal de comparticipação não se cinge às partes e ao juiz, mas, também, a todo aquele que pode sofrer efeitos diretos da decisão da causa. Por isso, o sócio ou o administrador, na qualidade de terceiro que integrará a relação jurídica processual, também tem o direito de não ser surpreendido, de influenciar o desenvolvimento do processo e na formação dos pronunciamentos judiciais. Quando a desconsideração da personalidade jurídica é postulada já na petição inicial ou no curso da fase cognitiva, a decisão que acolhe o pedido de desconsideração deve tão somente declarar se o sócio ou o administrador tem, ou não, responsabilidade patrimonial, sem condená-lo conjuntamente com a pessoa jurídica em caso de acolhimento do pedido. Em virtude da ausência de vínculo jurídico com o credor, ele não pode vir a ser obrigado, mas, sim, responsabilizado por força da desconsideração da personalidade jurídica. Do ponto de vista prático, é bastante questionável a opção de se postular a desconsideração da personalidade jurídica durante a fase cognitiva, mesmo na esfera recursal. Há patente possibilidade de trazer-se desnecessariamente terceiro para a relação jurídica processual (com a incidência dos ônus processuais correspondentes) e de produção atividade jurisdicional inútil, retardando-se o julgamento da causa em virtude do efeito suspensivo do incidente ou, quando formulado no princípio do processo, da necessidade de se oportunizar o contraditório e a atividade probatória específica. Nesse ínterim, não há sequer reconhecimento de que a pessoa jurídica é devedora e de que os seus bens são insuficientes para satisfazer o crédito, quanto mais da fraudulência ou abusividade das ações do sócio ou administrador como exige a teoria maior. Haja vista o seu propósito, o pedido da desconsideração da personalidade jurídica parece ter melhor adequação durante o cumprimento de sentença ou do processo de execução, quando já há reconhecimento da obrigação da pessoa jurídica e resta demonstrada nos autos, por meio das tentativas fracassadas de penhora e/ou venda de bens, a insuficiência de seu acervo patrimonial. Em outras palavras, a desconsideração da personalidade jurídica afigura-se mais oportuna quando já está definida a responsabilidade da pessoa jurídica e mostra-se imprescindível resolver a responsabilidade patrimonial do sócio ou do administrador para o êxito da atividade satisfativa. 6. Referências bibliográficas [arriba] ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: teoria do processo e processo de conhecimento. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. ALVIM, Eduardo Pellegrini de Arruda; GRANADO, Daniel Willian. Aspectos processuais de desconsideração de personalidade jurídica. 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e Relações tensionais entre mercado, Estado e Sociedade: interesses públicos versus interesses privados, integrantes do grupo de pesquisa científica Tutelas à efetivação dos direitos indisponíveis do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado Acadêmico em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público, financiado pela Fundação Escola Superior do Ministério Público. [1] Adota-se a corrente realista no que diz respeito à natureza da pessoa jurídica, motivo por que se emprega no
presente estudo somente a locução “desconsideração da personalidade jurídica”, e não “despersonalização da personalidade jurídica”, como o faz parte da doutrina. Sobre essa questão terminológica, veja-se PANTOJA, Teresa Cristina Gonçalves. Anotações sobre as pessoas jurídicas. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2007. pág. 85-124. |