Por quê jean-jacques rousseau é considerado o fundador da antropologia

Resumos

Trata-se de examinar como Lévi-Strauss, apoiando-se em Rousseau, avalia a situação da filosofia frente às ciências humanas, etnologia à frente. Decidindo-se pelo diagnóstico de que a filosofia estaria um pouco obsoleta, Lévi-Strauss não deixa, porém, de retornar a ela, num exercício ambíguo de demarcação de fronteiras.

The text discusses Lévi-Strauss diagnosis of the obsolence of philosophy so as to show that his own conception of ethnology as the leading human science is as such a formo philosophical reflection.

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Gostaria de agradecer à Profa. Beatriz Perrone-Moisés por uma correção importante ao argumento deste texto, e ao Prof. Renato Sztutman, por suas valiosas observações

  • 1 Lévi-Strauss, “Structuralisme et écologie”, in: Le regard eloignée, Paris: Plon, 1983, p. 165.
  • 2 Lévi-Strauss, Le regard eloignée, p. 07. A citação é extraída do cap. 08 do Ensaio sobre a origem d (...)

1A célebre conferência sobre Rousseau pronunciada por Lévi-Strauss em 1962, por ocasião dos 250 anos de nascimento do filósofo, pode ser lida como um elogio e também como uma crítica da filosofia. O título mesmo da conferência, posteriormente publicada em Antropologia Estrutural Dois – “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem” – leva o leitor a pensar que a invenção da antropologia por Rousseau atestaria a origem filosófica dessa ciência. Lévi-Strauss, embora não desminta essa impressão, tampouco a autoriza, chegando mesmo a sugerir, em mais de uma passagem do texto, que Rousseau seria o fundador da nova ciência precisamente por ter rompido com a filosofia, personificada na figura de Descartes. Muitos anos depois, em O olhar distanciado (1983), Descartes aparece novamente como personificação de um racionalismo tacanho, que perdeu toda relevância com as descobertas e a avanços realizados pelas ciências naturais e reconhecidos pela antropologia estrutural1. Em epígrafe ao livro, encontramos Rousseau: “le défaut des européens est de philosopher toujours sur les origines des choses d’après ce qui se passe autour d’eux”2. O que sugere que o filósofo Jean-Jacques Rousseau se torna antropólogo – no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens – precisamente quando deixa de ser filósofo, ou antes, deixa de ser filósofo ao inventar a antropologia. Não parece fortuito que Lévi-Strauss tenha escolhido iniciar o seu comentário sobre o pensamento de Rousseau com uma passagem do Discurso que se não chega a ser irônica, tem algo de dissimulação – justamente aquela em que se lamenta que os grandes homens do século (d’Alembert, Diderot, Condillac, Buffon) não tenham se dedicado ao estudo dos povos do continente americano...

  • 3 Lévi-Strauss, Tristes trópicos, tradução Rosa Freire d’Aguiar, São Paulo: Companhia das Letras, 199 (...)
  • 4 Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, pp. 45 – 56.

2É como se Rousseau dissesse: se tais homens fossem ao Novo Mundo e retornassem com observações ali colhidas, seriam obrigados a rever, parcial ou completamente, as suas próprias teorias, senão o seu modo de pensar. Lévi-Strauss, sem dúvida, subscreve essa sugestão, pois não menciona, em parte alguma de sua obra, as digressões dos filósofos da Ilustração sobre o selvagem, americano ou d’alhures, a não ser uma vez, e pejorativamente, quando em Tristes trópicos censura Diderot por uma ingênua e “absurda... glorificação do estado natural”; quanto a “Rousseau, jamais cometeu o erro de Diderot, que consiste em idealizar o homem natural”3. Erro decorrente do despreparo dos filósofos, ou da insuficiência da filosofia, para estudar a vida do homem em sociedade e em suas relações com a natureza. Para redigir “o primeiro tratado geral de etnologia” 4, ou seja, o 2º Discurso, Rousseau teve que superar as limitações do saber a que estava acostumado e pelo qual fora nutrido.

  • 5 Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, pp. 45 – 56.

3Portanto, quando Lévi-Strauss explica que Rousseau “distinguiu, com uma clareza e concisão admiráveis, o objeto próprio do etnólogo, em relação ao do moralista e ao do historiador”5, é preciso prestar atenção ao que implica essa declaração. O moralista e o historiador, no século XVIII, são codinomes do filósofo, e a demarcação das fronteiras entre a etnologia – como ciência modelo das ciências humanas – e esses outros domínios do conhecimento, anuncia a separação da etnologia em relação à filosofia. E como veremos, essa separação não é mera diferenciação, implica que se recuse à filosofia as pretensões e os direitos que, até o século XVIII, foram os seus.

  • 6 Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, Paris, PUF, 1962, pp. 147 – 149.

4Em O totemismo hoje, surgido no mesmo ano que a conferência de Genebra, Lévi-Strauss afirma que se o Discurso sobre a origem da desigualdade deve ser lido como “o primeiro tratado de antropologia geral com que conta a literatura francesa” é porque “em termos quase modernos, Rousseau põe ali o problema central da antropologia, que é o da passagem da natureza à cultura”, passagem que, segundo Lévi-Strauss, só pode ser compreendida teoricamente com a suposição de que o homem natural tomaria consciência de si mesmo, como membro de uma espécie, desde o instante em que lhe acomete um sentimento de “comiseração, ou piedade” (pitié), retirando-o de sua “condição natural” e em que “o afetivo e o intelectual” se misturam de maneira “indissociável”.6

  • 7 Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, p 149 ; 142 – 6.

É porque o homem se experimenta primitivamente idêntico a todos os seus semelhantes (dentre os quais é preciso contar os animais, como afirma expressamente Rousseau) que ele adquire, por conseqüência, a capacidade de se distinguir assim como ele os distingue, vale dizer, de tomar a diversidade de espécies como suporte conceitual da diferenciação social. [Temos aqui] a formação de uma perspectiva extraordinariamente moderna sobre a passagem da natureza à cultura, fundada sobre a emergência de uma lógica que opera por meio de oposições binárias e coincide com as primeiras manifestações de simbolismo [...] A apreensão global dos homens e dos animais como seres sensíveis, em que consiste a identificação, comanda e precede a consciência destas oposições, primeiro entre as propriedades lógicas concebidas como partes integrantes de um campo, depois no seio mesmo desse campo entre o humano e o não-humano.7

  • 8 Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, p. 54.

5Assumindo essa “aptidão ao sofrimento”,8 reconhecendo-se como parte de um meio, doravante considerado natural, cada indivíduo humano estabelece relações entre si mesmo e outros seres e se torna parte de uma rede de identidades e diferenças. Perderam-se a ingenuidade e a brutalidade do estado de natureza; o homem está pronto para se perder de si mesmo. Como explica Bento Prado Jr.,

  • 9 Bento Prado Jr., A retórica de Rousseau, São Paulo, CosacNaify, 2008, pp. 320 – 21.

A piedade, insiste Lévi-Strauss, não é apenas a forma de identificação com a humanidade em geral: através dela, o homem redescobre a infra-estrutura vital de sua existência. É sobre esta faculdade primordial que se virão desenhar, num jogo de oposições, os predicados que a ciência deve decifrar. O homem identifica-se, de início, pela piedade, com a totalidade da vida, para distinguir-se em seguida, no interior desse campo, do não-humano9.

6Bento mostra um pouco mais à frente (p. 327) que Lévi-Strauss, mesmo quando vai além da distinção estabelecida por Rousseau, segue uma trilha perfeitamente coerente com os pressupostos do autor do Discurso sobre a desigualdade. Rousseau dissolvera o indivíduo na espécie; Lévi-Strauss dissolve esta no mundo natural. Mas este não é uma totalidade indiferenciada, uma massa de representações confusas. Falta, por certo, a consciência da oposição entre propriedades lógicas que presidem a diferenciação entre o humano e o não humano, estabelecidas mesmo assim por um sentimento que as conhece, ainda que não as represente enquanto tais. Identidade e diferença, proximidade e distância: na oscilação entre essas posições, delineia-se o território em que o etnólogo vai se instalar para decifrar o mundo sob uma nova perspectiva, mais problemática que a da filosofia.

  • 10 Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, pp. 45 – 56.

7 Rousseau teria fornecido ainda à etnologia o seu “programa e os seus métodos” 10, e nas mãos do antropólogo essa teoria, que surge como um contra-discurso, é imediatamente posta a serviço de uma explicação sistemática do mundo que não parte mais da confortável subjetividade assumida pelos filósofos. Centrada em fenômenos que a filosofia considera excêntricos, para não dizer anômalos, a antropologia distorce a perspectiva dos modernos e simplesmente anula a distinção entre sujeito e objeto, que se tornou para ela inútil. Assim, numa aula de 1974, Lévi-Strauss, às voltas com o tórrido tópico do canibalismo, recorre a Rousseau para mostrar que esse fenômeno, simbolicamente tão carregado, se deixa explicar por um princípio muito simples que permeia a lógica das relações sociais:

  • 11 Lévi-Strauss, Minhas palavras, tradução Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 1 (...)

Seria difícil compreender que o canibalismo se manifeste tão frequentemente sob uma forma instável e matizada sem reconhecer um pano de fundo no qual a identificação com o outro desempenha um papel. Chegamos assim a uma hipótese central de Rousseau sobre a origem da sociabilidade: hipótese mais sólida e mais fecunda do que a dos etnólogos contemporâneos, os quais – para explicar o canibalismo e outras condutas – apelam a um instinto de agressão. A esse respeito, colocamo-nos a questão de saber se certas condutas humanas não se explicariam melhor segundo o modelo de fenômenos celulares que se processam nas profundidades dos organismos do que as aproximando arbitrariamente de condutas animais muito complexas e diversificadas por uma longa evolução... Numa escala em que se opera uma passagem contínua da comunicação à sociabilidade e desta à predação e à incorporação, a agressão não tem um lugar previamente indicado. Não se pode defini-la de modo absoluto, pois são fatores de ordem cultural que espacejam essa escala e, em cada caso particular, fixam os seus pontos de passagem. Se fosse preciso buscar nesse sentido a base objetiva da identificação tal como Rousseau a concebeu, o problema do canibalismo não se colocaria mais nos mesmos termos. Ele não consistiria mais em investigar o porquê do costume, mas, ao contrário, o modo pelo qual surgiu esse limite inferior da predação à qual talvez se ligue a vida social11.

  • 12 Cf. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Paris: Plon, 1962, p. 197.
  • 13 Rousseau, Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes, ed. Braunstein, Paris: Nathan, 19 (...)

8O antropólogo tem confirmada assim a suspeita de que a questão de princípio de sua ciência é lógica, não histórica12, e, pautando-se por Rousseau, qualifica-se a eleger as circunstâncias decisivas, em todo e qualquer tempo e lugar, para que os homens transitem da identificação com a natureza como totalidade para a delimitação de fronteiras entre o mundo social (humano) e o mundo natural (não humano). Nessa hipótese de explicação do canibalismo, Lévi-Strauss faz jus à esperança que Rousseau manifestara no 2º Discurso e que ele mesmo sabia frustrada de antemão: se os filósofos fossem à América, munidos de suas teorias, “veríamos um mundo novo surgir debaixo de sua pena, e aprenderíamos assim a conhecer o nosso”.13 O que não quer dizer que reconheceríamos nesse mundo o nosso, e sim que não mais nos reconheceríamos em nosso próprio mundo.

  • 14 Rousseau, Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes, pp. 45 – 56.

9Fiando-se por esse programa, Lévi-Strauss vai mais longe e parece contrariar, em nome do interesse da antropologia estrutural, as injunções postas a ela pelo fundador dessa ciência. Sabe-se que para Rousseau é um contrassenso querer examinar uma suposta transição do estado de natureza para o estado de sociedade com base numa experiência histórica concreta. Tudo o que se pode fazer é imaginar um estado em que os homens viveriam de acordo com certas regras, ditas naturais,em condições que não os colocariam em relação uns com os outros e não os coagiriam a obrigações e deveres recíprocos, e comparar a ideia que daí surgiria com as informações que se pode colher da experiência social tal como registrada nos anais da história, interpretando esta à luz daquela14. Mas Rousseau pensa, por certo, na grande história, registrada nos livros, consagrada pela tradição; e quanto a um povo que parece alheio às transformações da história, ou parece se encontrar à margem desta? Rousseau nunca esteve entre os selvagens, e Lévi-Strauss, que conviveu com eles, extraiu dessa experiência uma preciosa lição. O que o selvagem tem a ensinar ao homem civilizado é, em certo sentido, algo que este já sabe, uma verdade por assim dizer latente, de que agora ele poderá tomar consciência. E qual seria essa verdade? De acordo com Lévi-Strauss, o que o Discurso sobre a desigualdade oferece é bem menos e bem mais que uma teoria da sociedade; é uma teoria da sociedade mínima, teoria essa que Lévi-Strauss só descobre nesse livro após a dura e reveladora experiência de viver entre os Nambiquara, no interior do Mato Grosso, em 1934:

  • 15 Lévi-Strauss, Tristes trópicos, p. 299.

Por trás do véu das leis demasiado elaboradas dos Cadiueu e dos Bororo, eu havia prosseguido minha busca de um estado que – diz Rousseau – “não existe mais, talvez jamais existiu, provavelmente nunca existirá e do qual, porém, é necessário ter noções exatas para bem se julgar nosso estado presente”. Mais feliz que ele, eu acreditava tê-lo descoberto numa sociedade agonizante, mas a respeito da qual era inútil eu me perguntar se representava ou não um vestígio: tradicional ou degenerada, ela me colocava, ainda assim, em presença de uma das formas de organização social e política mais pobres que é possível conceber. Eu não precisava me dirigir à história particular que a mantivera nessa condição elementar ou que, mais provavelmente, a isso a reduzira. Bastava considerar a experiência sociológica que se passava diante de meus olhos. Mas era ela que se esquivava. Eu procurara uma sociedade reduzida à sua expressão mais simples. A dos Nambiquara o era, a tal ponto que nela só encontrei homens.15

  • 16 Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, pp. 146 – 47.

10Não interessa a Lévi-Strauss saber se os Nambiquara não têm história ou foram relegados à sua condição atual por eventos impossíveis de ser reconstituídos. Essa espécie de conjectura, além de ser arriscada, tem pouca utilidade. A inteligência sociológica deve se impor por sua força própria, à revelia de lacunas históricas. No modelo proposto por Lévi-Strauss, o que explica a condição quase que de regressão em que se encontram os Nambiquara é o mesmo que permite explicar a transição da natureza à sociedade, tal como colocada por Rousseau (como problema): o adensamento populacional, o aumento do contato entre os homens. O adensamento populacional impede os indivíduos de vagarem indefinidamente por regiões inabitadas, sem contato com outros que não os de sua família; a reiteração desses contatos permite ao homem duplicá-los com outros objetos que antes só lhe pareciam interessantes na medida em que despertavam nele alguma paixão imediata mais intensa.16 A primeira circunstância é totalmente arbitrária, dependeria, para ser produzida, de determinações naturais; a segunda seguir-se-ia necessariamente à primeira, mas estabeleceria as condições necessárias para que surgissem novidades, a organização social propriamente dita e as regras da cultura, concomitantes a ela.

11A formulação desse modelo permite a Lévi-Strauss arriscar inclusive uma hipótese de cunho conjectural, a respeito não da história do homem, mas de sua pré-história. A ousadia se explica: uma vez estabelecido o ponto de vista do estado de natureza sobre a sociedade, uma vez que o fenômeno social foi submetido ao crivo de uma análise que o examina a partir do que seria sua alteridade, abre-se a possibilidade de pensar a continuidade entre sociedade e natureza pela remissão de hábitos de cultura a condições impostas pelo meio natural. É o que propõe esta conhecida passagem das Mitológicas (II, Do mel às cinzas):

  • 17 Lévi-Strauss, Mitológicas, II: Do mel às cinzas, tradução Carlos Eugênio Marcondes de Moura, São Pa (...)

O que se pode concluir? Assim como a cozinha encarada em estado puro (cozimento da carne), a aliança encarada em estado puro, isto é, implicando exclusivamente cunhados na relação de doador e tomador, exprime para o pensamento indígena a articulação essencial entre a natureza e a cultura. por outro lado, é com o nascimento de uma economia neolítica, acarretando a multiplicação dos povos e a diversificação das línguas e dos costumes, que surgem, segundo os mitos, as primeiras dificuldades da vida social, resultantes do crescimento da população e de uma composição de grupos familiares mais aventurosa do que a bela simplicidade dos modelos poderia conceber. Há dois séculos, em seu Discurso sobre a origem da desigualdade, era exatamente isso que Rousseau dizia e chamamos muitas vezes a atenção para essas visões profundas e injustamente desacreditadas. O testemunho implícito dos índios sul-americanos, tal como o extraímos de seus mitos, certamente não possui autoridade para restituir a Rousseau o lugar que lhe cabe. No entanto, além de tal testemunho aproximar singularmente da filosofia moderna essas narrativas estranhas, nas quais, baseando-nos em sua aparência, nem pensaríamos em procurar lições tão elevadas, seria um equívoco esquecer que quando o homem, ao raciocinar sobre si mesmo, se vê restringido a formular as mesmas suposições – apesar das circunstâncias extraordinariamente dessemelhantes nas quais exerce sua reflexão –, é grande a possibilidade de que esta convergência, várias vezes repetida, de um pensamento e de um objeto que é também o sujeito deste pensamento, desvende algum aspecto essencial, senão da história do homem, pelo menos de sua natureza, à qual sua história está ligada. Nesse sentido, a diversidade dos caminhos que conduziram Rousseau – conscientemente – e os índios sul-americanos – inconscientemente – a fazerem as mesmas especulações sobre um passado muito distante, não prova nada, sem dúvida, em relação a este passado, mas prova muito em relação ao homem. Ora, se o homem é tal que não pode escapar, apesar da diversidade de tempo e de lugar, da necessidade de imaginar sua gênese de maneira semelhante, esta última não pode ter estado em contradição com uma natureza humana que se afirma através das idéias recorrentes que, aqui e lá, os homens formulam em relação ao seu passado17.

12Nesse texto extraordinário, a atividade consciente pertence ao indivíduo, a inconsciente ao grupo. Comparemos agora, como quer Lévi-Strauss, o segundo discurso ao mito 90 das Mitológicas:

  • 18 Rousseau, Discours sur l’origine de l’inégalité, parte II, §§ 04 – 05. O § 05 é citado por Lévi-Str (...)

13Rousseau: “À medida que cresceu o gênero humano, o esforço se multiplicou junto com os homens. As diferenças de terreno, de clima, de estações, foram forçosamente incluídas em suas maneiras de vida. Anos de colheita estéril, invernos prolongados e duros, verões escaldantes que consomem tudo, exigiriam deles uma nova indústria. À beira do mar e de rios, eles inventaram a linha e a vara de pescar e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas florestas eles fizeram arcos e flechas e se tornaram caçadores e guerreiros. Em países frios eles se cobriram com as peles dos animais que mataram. Um raio, um vulcão ou algum outro fenômeno lhes deu a conhecer o fogo, novo recurso contra o rigor do inverno: eles aprenderam a conservar esse elemento, depois a reproduzi-lo, enfim a preparar as carnes que antes devoravam cruas. // Essa aplicação reiterada dos diversos seres entre si mesmos e ao homem engendraria naturalmente, no espírito deste, as percepções de certas relações. Essas relações, que exprimimos por palavras como grande, pequeno, forte, fraco, lento, medroso, robusto e outras idéias semelhantes, comparadas à necessidade, produziram nele, por fim, quase que insensivelmente, alguma sorte de reflexão, ou de prudência mecânica, que indicava a ele as precauções mais necessárias a sua segurança”18.

  • 19 Lévi-Strauss, Mitológicas I: O cru e o cozido, tradução Beatriz Perrone-Moisés, São Paulo: CosacNai (...)

14Mito 90: “No tempo em que os homens comiam apenas orelhas-de-pau e farelo de árvores podres, uma mulher que tomava banho soube por um ratinho da existência do milho, que crescia numa árvore enorme, onde as araras e os macacos brigavam pelos grãos. O tronco era tão grosso que foi preciso ir à aldeia pegar mais um machado. No caminho, os meninos mataram e comeram uma macura e se transformaram em velhos. Os feiticeiros se esforçaram por devolver-lhes a juventude, mas não conseguiram. Desde então, a carne de macura é absolutamente proibida. // Graças ao milho, os índios passaram a viver em abundância. À medida que se multiplicavam, foram aparecendo tribos de diferentes línguas e costumes”19.

  • 20 Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, p 146.

15A enorme diferença entre esses textos começa pelo gênero: o de Rousseau é uma descrição indireta, o dos Kayapó-Gorotire é uma narração direta, reconstituída obliquamente. Estende-se ao estilo: o de Rousseau é retórico, ciceroniano, o dos índios, na pena de Lévi-Strauss, é seco, quase científico em sua objetividade. Aprofunda-se na apresentação, radicalmente distinta: Rousseau é prolixo e saturado, se comparado à elegante concisão dos Kayapó, na voz de Lévi-Strauss. Culmina na linguagem: a de Rousseau é lírica e vaga, a dos índios e do etnólogo é concreta e precisa. E, no entanto, alguma coisa os une, no conteúdo, Lévi-Strauss tem razão, apesar da aparente diferença entre os objetos tratados por cada um. Voltemos a Le totémisme aujourd’hui: “a origem da linguagem não está nas necessidades, mas sim nas paixões, do que resulta que a primeira linguagem deve ter sido figurada”20. Figuração que os indivíduos civilizados efetuam de maneira muito diferente da elaborada por um grupo de selvagens, mas que é, em todo caso, movida por uma necessidade intelectual, comum a todos os homens: “imaginar a sua gênese”. Desse problema se ocupam os homens das Luzes bem como os habitantes do continente americano. Comparados a Rousseau, os mitos ameríndios provam suficientemente a tese de uma identidade comum a pensamento selvagem ou concreto e pensamento civilizado ou abstrato, postulada por Lévi-Strauss em La pensée sauvage e formulada por Rousseau no Discurso sobre a desigualdade.

16 Que Lévi-Strauss tenha recorrido, no volume II de sua obra mais ambiciosa, ao mesmo Jean-Jacques Rousseau que o animara a encontrar, nos Nambiquara, a imagem em negativo do estado de natureza, é sinal de que um ciclo se completou. Trata-se, sem dúvida, de uma derradeira homenagem àquele que foi responsável por libertar o pensamento etnológico das amarras da especulação metafísica. A identificação do discurso de Rousseau no mito dos Kayapó dispensará o antropólogo, doravante, de um ajuste de contas com a filosofia. É que esta, finalmente, se revelou um saber dispensável, frívolo mesmo, que nada tem a dizer que os homens já não saibam em seu íntimo, mesmo quando o que ela tem a dizer é de suma importância – e a filosofia só tem importância, para Lévi-Strauss, nas páginas de Rousseau, onde o mito das origens é recuperado, e onde as consequências do reconhecimento dessas origens são analisadas e expostas com rigor, em detrimento dos confortáveis lugares-comuns da filosofia das Luzes. Ao mesmo tempo, o retorno a Rousseau, ao alertar os antropólogos sobre as origens de sua ciência numa certa filosofia, tem a função de protegê-la contra eventuais armadilhas metafísicas, em que poderia cair por falta de reflexão ou por desconhecimento de causa.

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Bibliografia

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___________ 1996. Tristes trópicos, tradução Rosa Freire d’Aguiar, São Paulo: Companhia das Letras.

___________ 2013. C. “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem”, in : Antropologia estrutural dois, tradução Beatriz Perrone-Moisés, São Paulo: CosacNaify.

___________ 1962. C. Le totémisme aujourd’hui, Paris, PUF, pp. 147 – 149.

___________ 1986. C. Minhas palavras, tradução Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Brasiliense.

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___________ 2007. C. Mitológicas II: Do mel às cinzas, tradução Carlos Eugênio Marcondes de Moura, São Paulo: CosacNaify.

___________ 2006. C. Mitológicas I: O cru e o cozido, tradução Beatriz Perrone-Moisés, São Paulo: CosacNaify.

Prado Jr., B. 2008. A retórica de Rousseau, São Paulo, CosacNaify.

Rousseau, J. J. 1981. Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes, ed. Braunstein, Paris: Nathan.

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Notas

1 Lévi-Strauss, “Structuralisme et écologie”, in: Le regard eloignée, Paris: Plon, 1983, p. 165.

2 Lévi-Strauss, Le regard eloignée, p. 07. A citação é extraída do cap. 08 do Ensaio sobre a origem das línguas.

3 Lévi-Strauss, Tristes trópicos, tradução Rosa Freire d’Aguiar, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 368 – 69. Diderot voltará a ser alvo de Lévi-Strauss em Olhar, escutar, ler.

4 Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, pp. 45 – 56.

5 Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, pp. 45 – 56.

6 Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, Paris, PUF, 1962, pp. 147 – 149.

7 Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, p 149 ; 142 – 6.

8 Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, p. 54.

9 Bento Prado Jr., A retórica de Rousseau, São Paulo, CosacNaify, 2008, pp. 320 – 21.

10 Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”, pp. 45 – 56.

11 Lévi-Strauss, Minhas palavras, tradução Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 142 – 43.

12 Cf. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Paris: Plon, 1962, p. 197.

13 Rousseau, Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes, ed. Braunstein, Paris: Nathan, 1981, nota j, p. 118.

14 Rousseau, Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes, pp. 45 – 56.

15 Lévi-Strauss, Tristes trópicos, p. 299.

16 Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, pp. 146 – 47.

17 Lévi-Strauss, Mitológicas, II: Do mel às cinzas, tradução Carlos Eugênio Marcondes de Moura, São Paulo: CosacNaify, 2007, pp. 284 – 5.

18 Rousseau, Discours sur l’origine de l’inégalité, parte II, §§ 04 – 05. O § 05 é citado por Lévi-Strauss em Le totémisme aujourd’hui, Paris : PUF, 1962, p. 147. O § 04, igualmente importante, embora omitido, é pressuposto.

19 Lévi-Strauss, Mitológicas I: O cru e o cozido, tradução Beatriz Perrone-Moisés, São Paulo: CosacNaify, 2006, pp. 200 – 201 (“Kayapó-Gorotire: Origem das plantas cultivadas”; cf. ainda M92).

20 Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui, p 146.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Pedro Paulo Pimenta, «Lévi-Strauss, Rousseau e o fim da filosofia», Ponto Urbe [Online], 15 | 2014, posto online no dia 30 dezembro 2014, consultado o 24 agosto 2022. URL: http://journals.openedition.org/pontourbe/2428; DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.2428

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Por que Levi Strauss diz que Rousseau e o fundador da antropologia?

Em primeiro lugar, a linguagem, as regras de parentesco, os sistemas de classificação e as narrativas míticas são, para Lévi-Strauss, os objetos privilegiados do estudo antropológico, por serem exatamente os traços que, para ele, definem a humanidade e a separam do mundo puramente natural.

Qual foi a principal ideia de Rousseau?

Rousseau foi um filósofo contratualista. A ideia de contrato social parte do pressuposto de que há um estado de natureza. O estado de natureza é um estado hipotético em que não há nenhum tipo de intervenção moral, política ou social. O fim do estado de natureza se dá com a formação de um contrato ou pacto social.

Por que Rousseau é considerado o iniciador do romantismo?

Ao localizar na vida social a fonte da corrupção humana, Rousseau estabelece um profundo pessimismo no tocante à sociedade e à civilização, que se estenderá ao espírito romântico.

Quais foram as principais ideias defendidas por Rousseau?

Principais Ideias Rousseau era a favor do “contrato social”, forma de promover a justiça social que dá nome a sua principal obra. Apregoava que a propriedade privada gerava a desigualdade entre os homens. Segundo ele, os homens teriam sido corrompidos pela sociedade quando a soberania popular tinha acabado.