Como citar os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil?

Como citar os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil?

Qualidade na Educação Infantil – Fundamentos Qualidade na Educação Infantil — Fundamentos

 O debate sobre a qualidade da educação da criança até 6 anos no Brasil tem uma história. Para situar o atual momento, é necessário rever concepções e recuperar os principais fios dessa história para que a discussão atual possa dialogar com os avanços e as dificuldades anteriores, alcançando um novo patamar nesse processo de múltiplas autorias. Essa contextualização busca contemplar:

1) a concepção de criança e de pedagogia da Educação Infantil;

2) o debate sobre a qualidade da educação em geral e o debate específico no campo da educação da criança de 0 até 6 anos;

3) os resultados de pesquisas recentes;

4) a qualidade na perspectiva da legislação e da atuação dos órgãos oficiais do país.

1. Concepção de criança e de pedagogia da Educação Infantil

 A criança é um sujeito social e histórico que está inserido em uma sociedade na qual partilha de uma determinada cultura. É profundamente marcada pelo meio social em que se desenvolve, mas também contribui com ele (BRASIL, 1994a). A criança, assim, não é uma abstração, mas um ser produtor e produto da história e da cultura (FARIA, 1999). Olhar a criança como ser que já nasce pronto, ou que nasce vazio e carente dos elementos entendidos como necessários à vida adulta ou, ainda, a criança como sujeito conhecedor, cujo desenvolvimento se dá por sua própria iniciativa e capacidade de ação, foram, durante muito tempo, concepções amplamente aceitas na Educação Infantil até o surgimento das bases epistemológicas que fundamentam, atualmente, uma pedagogia para a infância. Os novos paradigmas englobam e transcendem a história, a antropologia, a sociologia e a própria psicologia resultando em uma perspectiva que define a criança como ser competente para interagir e produzir cultura no meio em que se encontra. Essa perspectiva é hoje um consenso entre estudiosos da Educação Infantil (BONDIOLI e MANTOVANI, 1998; SOUZA; KRAMER, 1991; MYERS, 1991; CAMPOS ET AL., 1993; OLIVEIRA; ROSSETTI-FER[1]REIRA, 1993; MACHADO, 1998; OLIVEIRA, 2002).

A interação a que se referem os autores citados não é uma interação genérica. Trata-se de interação social, um processo que se dá a partir e por meio de indivíduos com modos histórica e culturalmente determinados de agir, pensar e sentir, sendo inviável dissociar as dimensões cognitivas e afetivas dessas interações e os planos psíquico e fisiológico do desenvolvimento decorrente (VYGOTSKI, 1986 e 1989). Nessa perspectiva, a interação social torna-se o espaço de constituição e desenvolvimento da consciência do ser humano desde que nasce (VYGOTSKI, 1991).

Muitas vezes vista apenas como um ser que ainda não é adulto, ou é um adulto em miniatura, a criança é um ser humano único, completo e, ao mesmo tempo, em crescimento e em desenvolvimento. É um ser humano completo porque tem características necessárias para ser considerado como tal: constituição física, formas de agir, pensar e sentir. É um ser em crescimento porque seu corpo está continuamente aumentando em peso e altura. É um ser em desenvolvimento porque essas características estão em permanente transformação. As mudanças que vão acontecendo são qualitativas e quantitativas— o recém-nascido é diferente do bebê que engatinha, que é diferente daquele que já anda, já fala, já tirou as fraldas.

O crescimento e o desenvolvimento da criança pequena ocorrem tanto no plano físico quanto no psicológico, pois um depende do outro. Embora dependente do adulto para sobreviver, a criança é um ser capaz de interagir num meio natural, social e cultural desde bebê. A partir de seu nascimento, o bebê reage ao entorno, ao mesmo tempo em que provoca reações naqueles que se encontram por perto, marcando a história daquela família. Os elementos de seu entorno que compõem o meio natural (o clima, por exemplo), social (os pais, por exemplo) e cultural (os valores, por exemplo) irão configurar formas de conduta e modificações recíprocas dos envolvidos. No que diz respeito às interações sociais, ressalta-se que a diversidade de parceiros e experiências potencializa o desenvolvimento infantil. Crianças expostas a uma gama ampliada de possibilidades interativas têm seu universo pessoal de significados ampliado, desde que se encontrem em contextos coletivos de qualidade. Essa afirmativa é considerada válida para todas as crianças, independentemente de sua origem social, pertinência étnico-racial, credo político ou religioso, desde que nascem.

Por sua vez, a visão da criança como ser que é também parte da natureza e do cosmo merece igualmente destaque, especialmente se considerarmos as ameaças de esgotamento de recursos em nosso planeta e as alterações climáticas evidentes nos últimos anos. Conforme alerta Tiriba (2005), os seres humanos partilham a vida na Terra com inúmeras espécies animais, vegetais e minerais, sem as quais a vida no planeta não pode existir. Essas espécies, por sua vez, interagem permanentemente, estabelecendo-se um equilíbrio frágil e instável entre todos os seres que habitam o ar, a água dos rios, dos lagos e dos mares, os campos, as florestas e as cidades, em nosso sistema solar e em todo o universo. A intenção de aliar uma concepção de criança à qualidade dos serviços educacionais a ela oferecidos implica atribuir um papel específico à pedagogia desenvolvida nas instituições pelos profissionais de Educação Infantil. Captar necessidades que bebês evidenciam antes que consigam falar, observar suas reações e iniciativas, interpretar desejos e motivações são habilidades que profissionais de Educação Infantil precisam desenvolver, ao lado do estudo das diferentes áreas de conhecimento que incidem sobre essa faixa etária, a fim de subsidiar de modo consistente as decisões sobre as atividades desenvolvidas, o formato de organização do espaço, do tempo, dos materiais e dos agrupamentos de crianças. Pesquisas realizadas desde a década de 1970 (HARDY; PLATONE; STAMBACK, 1991) enfatizam que todas as crianças podem aprender, mas não sob qualquer condição.

Antes mesmo de se expressarem por meio da linguagem verbal, bebês e crianças são capazes de interagir a partir de outras linguagens (corporal, gestual, musical, plástica, faz-de-conta, entre outras) desde que acompanhadas por parceiros mais experientes. Apoiar a organização em pequenos grupos, estimulando as trocas entre os parceiros; incentivar a brincadeira; dar-lhes tempo para desenvolver temas de trabalho a partir de propostas prévias; oferecer diferentes tipos de materiais em função dos objetivos que se tem em mente; organizar o tempo e o espaço de modo flexível são algumas formas de intervenção que contribuem para o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças. As iniciativas dos adultos favorecem a intenção comunicativa das crianças pequenas e o interesse de umas pelas outras, o que faz com que aprendam a perceber-se e a levar em conta os pontos de vista dos outros, permitindo a circulação das ideias, a complementação ou a resistência às iniciativas dos parceiros. A oposição entre parceiros, por exemplo, incita a própria argumentação, a objetivação do pensamento e o recuo reflexivo das crianças. (MACHADO, 1998).

Ao se levar em conta esses aspectos, não se pode perder de vista a especificidade da pedagogia da Educação Infantil, como afirma Rocha (1999):

  • Enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e como objeto fundamental o ensino nas diferentes áreas através da aula;
  • A creche e a pré-escola têm como objeto as relações educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito a criança de 0 até 6 anos de idade.

 É importante destacar que essas relações educativas, às quais a autora se refere, na instituição de Educação Infantil são perpassadas pela função indissociável do cuidar/educar, tendo em vista os direitos e as necessidades próprios das crianças no que se refere à alimentação, à saúde, à higiene, à proteção e ao acesso ao conhecimento sistematizado. Este último aspecto torna-se especialmente relevante no caso das creches no Brasil, onde em muitas delas ainda predomina um modelo de atendimento voltado principalmente à alimentação, à higiene e ao controle das crianças, como demonstra a maioria dos diagnósticos e dos estudos de caso realizados em creches brasileiras (CAMPOS; FULLGRAF; WIGGERS, 2004). Essa afirmação evidencia a não-superação do caráter compensatório da Educação Infantil denunciado por Kramer (1987) que ainda se manifesta nos dias atuais, como também a polarização assistência versus educação, apontada insistentemente por Kuhlmann Jr. (1998).

Sabemos que não basta apenas transferir as creches para os sistemas de ensino, pois “na sua história, as instituições pré-escolares destinaram uma educação de baixa qualidade para as crianças pobres, e isso é que precisa ser superado” (p. 208). Assim, a ênfase na apropriação de significados pelas crianças, na ampliação progressiva de conhecimentos de modo contextualizado, com estratégias apropriadas às diferentes fases do desenvolvimento infantil, parece bastante justificada. Da mesma forma que defendemos uma perspectiva educacional que respeite a diversidade cultural e promova o enriquecimento permanente do universo de conhecimentos, atentamos para a necessidade de adoção de estratégias educacionais que permitam às crianças, desde bebês, usufruírem da natureza, observarem e sentirem o vento, brincarem com água e areia, atividades que se tornam especialmente relevantes se considerarmos que as crianças ficam em espaços internos às construções na maior parte do tempo em que se encontram nas instituições de Educação Infantil. Criando condições para que as crianças desfrutem da vida ao ar livre, aprendam a conhecer o mundo da natureza em que vivemos, compreendam as repercussões das ações humanas nesse mundo e sejam incentivadas em atitudes de preservação e respeito à biodiversidade, estaremos difundindo uma concepção de educação em que o ser humano é parte da natureza e não seu dono e senhor absoluto (TIRIBA, 2005).

Os aspectos anteriormente abordados devem ser considerados no processo de discussão e elaboração de diretrizes pedagógicas dos sistemas de ensino e das propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil. Vale ressaltar a relevância da participação dos professores, dos demais profissionais da instituição e da comunidade nesse processo, não só para que os aspectos citados sejam efetivamente considerados no desenvolvimento da proposta como também para cumprir a legislação. Em síntese, para propor parâmetros de qualidade para a Educação Infantil, é imprescindível levar em conta que as crianças desde que nascem são:

  • cidadãos de direitos;
  • indivíduos únicos, singulares;
  • seres sociais e históricos;
  • seres competentes, produtores de cultura;
  • indivíduos humanos, parte da natureza animal, vegetal e mineral.

Por sua vez, as crianças encontram-se em uma fase de vida em que dependem intensamente do adulto para sua sobrevivência (MACHADO, 2001). Precisam, portanto, ser cuidadas e educadas, o que implica:

  • ser auxiliadas nas atividades que não puderem realizar sozinhas;
  • ser atendidas em suas necessidades básicas físicas e psicológicas;
  • ter atenção especial por parte do adulto em momentos peculiares de sua vida.

Além disso, para que sua sobrevivência esteja garantida e seu cresci[1]mento e desenvolvimento sejam favorecidos, para que o cuidar/educar sejam efetivados, é necessário que sejam oferecidas às crianças dessa faixa etária condições de usufruírem plenamente suas possibilidades de apropriação e de produção de significados no mundo da natureza e da cultura. As crianças precisam ser apoiadas em suas iniciativas espontâneas e incentivadas a:

  • brincar;
  • movimentar-se em espaços amplos e ao ar livre;
  • expressar sentimentos e pensamentos;
  • desenvolver a imaginação, a curiosidade e a capacidade de expressão;
  • ampliar permanentemente conhecimentos a respeito do mundo da natureza e da cultura apoiadas por estratégias pedagógicas apropriadas;
  • diversificar atividades, escolhas e companheiros de interação em creches, pré-escolas e centros de Educação Infantil.

A criança, parte de uma sociedade, vivendo em nosso país, tem direito:

  • à dignidade e ao respeito;
  • autonomia e participação;
  • à felicidade, ao prazer e à alegria;
  • à individualidade, ao tempo livre e ao convívio social;
  • à diferença e à semelhança;
  • à igualdade de oportunidades;
  • ao conhecimento e à educação;
  • a profissionais com formação específica;
  • a espaços, tempos e materiais específicos.

2- O debate sobre a qualidade da educação e da Educação Infantil

 Na última década do século XX, o discurso sobre a qualidade da educação ocupou um espaço significativo no debate educacional e direcionou políticas implantadas no quadro das reformas educacionais nos diversos países. Sucedendo a um período de significativa expansão de matrículas na Educação Básica, com a crescente presença de alunos das classes populares nas escolas, houve um deslocamento das preocupações com a democratização do acesso para a ênfase nas questões de permanência. A educação submeteu-se a uma crescente preocupação com medi[1]das de eficiência na gestão dos recursos disponíveis marcadas pela influência dos órgãos de cooperação internacional. Concepções originadas do mundo empresarial foram adotadas, tais como os chamados programas de qualidade total, que procuram substituir os controles externos do trabalho por uma adesão do trabalhador às metas de qualidade das empresas. No lugar de uma estrutura hierarquizada de administração dos sistemas de educação, buscou-se descentralizar responsabilidades e tarefas, ao mesmo tempo em que se montou um sofisticado aparato de avaliação dos resultados de aprendizagem dos alunos, resultados estes considerados produto da educação. Muitos estudiosos têm analisado criticamente essas tendências, o que vem permitindo uma evolução do debate nos anos mais recentes.

Casassus (2002) e Enguita (1994) chamam a atenção para o risco presente nesse deslocamento do discurso que substitui a preocupação com a igualdade pelo foco na qualidade, principalmente em contextos de desigualdade social, nos quais os processos de exclusão acontecem tanto dentro como fora da escola. Nesse sentido, recuperam um debate desenvolvido em décadas passadas, que opunha a preocupação com qualidade à exigência da “quantidade”, ou seja, à democratização do acesso à educação (BEISIEGEL, 1981). Apple (2000) mostra como a importação de critérios de qualidade baseados na lógica do mercado— que incentivam a competição entre escolas, premiam os professores de acordo com os resultados dos alunos e equiparam as famílias a consumidores de produtos e serviços— tende a ampliar as desigualdades nas escolas.

Outros autores argumentam que a qualidade da educação não se mede somente pelos resultados obtidos pelos alunos nos testes de aprendizagem, mas também pelo processo educativo vivido na escola, que envolve aspectos mais amplos de formação para a cidadania, o trabalho e o desenvolvimento da pessoa. Por sua vez, o respeito à diversidade cultural e étnica e a consideração das realidades locais, reivindicados por diversos movimentos sociais, no bojo de um questionamento sobre a imposição de critérios estabelecidos unilateralmente a partir da lógica dos grupos dominantes, reforçam a demanda por processos mais participativos de definição e aferição da qualidade da educação. No Brasil, iniciativas nesse sentido têm sido realizadas por administrações municipais que adotaram a concepção de “qualidade social” e por grupos que militam na área educacional. Um dos exemplos é a Consulta sobre qualidade da educação na escola (2002), pesquisa realizada em dois estados brasileiros com apoio da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que procurou ouvir o que diretores, professores, funcionários, alunos, pais e pessoas da comunidade pensam sobre qualidade da escola.

Outro exemplo é o projeto Indicadores da Qualidade na Educação (2004), realizado por Ação Educativa, Unicef, PNUD e Inep, com participação ampla, que buscou desenvolver um instrumento flexível para ajudar a comunidade escolar a avaliar e a melhorar a qualidade da escola. Em recente seminário na Bolívia, promovido pelo Conselho de Educação de Adultos da América Latina (CEAAL, 2003), foram apresentadas e debatidas diversas abordagens desse tema, entre as quais essa experiência brasileira e documentos de outros países com critérios de qualidade elaborados por centrais sindicais, movimentos populares e organizações não governamentais. No que se refere à Educação Infantil, a origem do debate sobre a qualidade foi marcada pela abordagem psicológica. No início, a preocupação com os supostos efeitos negativos da separação entre mãe e criança pequena levou a um questionamento da creche centrado principalmente nos aspectos afetivos do desenvolvimento infantil.

Em um segundo momento, sob efeito das teorias da privação cultural a partir da década de 1960, houve um deslocamento do foco para o desenvolvimento cognitivo da criança, visando ao seu aproveitamento futuro na escola primária. O uso de testes psicológicos foi incentivado, e os resultados considerados positivos de algumas experiências, principalmente nos Estados Unidos, reforçaram os argumentos em defesa da expansão da oferta de educação pré-escolar para as crianças menores de 6 anos. A continuidade do debate levou a um amadurecimento das abordagens no campo da psicologia do desenvolvimento. Em diversos países ocorreram mudanças de ênfase que contribuíram para novas concepções direcionadas para a melhoria da qualidade. A crítica ao foco exclusivo na separação mãe–criança, a valorização do papel da mulher na sociedade, a mudança de uma preocupação voltada principalmente à escolaridade futura para a valorização das experiências vividas no cotidiano das instituições de Educação Infantil foram fatores importantes nesse processo.

As abordagens de avaliação da qualidade também passaram a conferir maior atenção aos contextos familiares e locais, emergindo desses trabalhos um consenso a respeito da importância da formação em serviço e da participação das famílias. Foram consideradas também nesse debate as diferenças de tradição e as várias modalidades nacionais de oferta de atendimento educacional, as questões das desigualdades sociais e o respeito à diversidade cultural. Na Comunidade Europeia, em 1991, foi publicado o documento Quality in services for young children: a discussion paper (Qualidade dos serviços para a criança pequena: um texto para discussão) (BALA[1]GEUR; MESTRES; PENN, 1992), elaborado por integrantes da Rede Europeia de Atendimento Infantil, coordenada por Peter Moss, pesquisador ligado à Universidade de Londres.

O contexto europeu, caracterizado por uma enorme diversidade de culturas, línguas, identidades nacionais e regionais, exigiu a adoção de uma perspectiva sensível às diferenças de tradição e às várias modalidades nacionais de oferta de atendimento educacional. Por sua vez, as experiências consolidadas e reconhecidas por sua qualidade, como, por exemplo, aquelas desenvolvidas nas regiões do norte da Itália e na Escandinávia, inspiraram e ajudaram a formulação de uma concepção de qualidade mais avança[1]da, atenta para as questões das desigualdades sociais e ao mesmo tempo voltada para o respeito à diversidade cultural. Mais recentemente, foi feita uma revisão dessa experiência, a qual evidencia a crescente inquietação com os grupos sociais de origem étnica, cultural e religiosa diversa dos povos europeus, representados ali principalmente pelos imigrantes dos países em desenvolvi[1]mento. Assim, os problemas decorrentes do confronto entre identidades diferentes contribuem para a ênfase maior na necessidade de uma relativização de perspectivas na definição de padrões de atendimento educacional.

Peter Moss fez uma síntese interessante desse debate durante o II COPEDI Congresso Paulista de Educação Infantil, realizado em 2000. Segundo ele:

1) a qualidade é um conceito relativo, baseado em valores;

2) definir qualidade é um processo importante por si mesmo, oferecendo oportunidades para compartilhar, discutir e entender valores, ideias, conhecimentos e experiências;

3) o processo deve ser participativo e democrático, envolvendo grupos diferentes, que incluem alunos, famílias e profissionais;

4) as necessidades, as perspectivas e os valores desses grupos podem divergir;

5) portanto, definir qualidade é um processo dinâmico, contínuo, requer revisões e nunca chega a um enunciado definitivo. (MOSS, 2002, p. 20-21).

Na mesma linha de reflexão, Anna Bondioli (2004, p. 13-14) sintetiza a natureza da qualidade nos serviços para a “primeiríssima” infância, na perspectiva dos educadores da região da Emília Romanha, na Itália:

  • a qualidade tem uma natureza transacional;
  • a qualidade tem uma natureza participativa;
  • a qualidade tem uma natureza autorreflexiva;
  • a qualidade tem uma natureza contextual e plural;
  • a qualidade é um processo;
  • a qualidade tem uma natureza transformadora.

 No caso brasileiro, a desigualdade apresenta diversas faces, como há tempos aponta Rosemberg (1996, 1999a e 1999b), não se resumindo às diferenças sociais e econômicas, mas expressando-se também nas discriminações de etnia e gênero, nos contrastes entre a cidade e o campo e entre as regiões do país. Em um país marcado por tantas diferenças, o equilíbrio entre a preocupação com a igualdade e a preocupação com o respeito às diferenças nem sempre é fácil de alcançar. O desigual acesso à renda e aos programas sociais está marcado por esses diversos pertenci[1]mentos de classe, de etnia e de gênero, heranças históricas e culturais que também se expressam no acesso à Educação Infantil e na qualidade dos programas oferecidos. Assim, no contexto brasileiro, discutir a qualidade da educação na perspectiva do respeito à diversidade implica necessariamente enfrentar e encontrar caminhos para superar as desigualdades no acesso a programas de boa qualidade, que respeitem os direitos básicos das crianças e de suas famílias, seja qual for sua origem ou condição social, sem esquecer que, entre esses direitos básicos, se inclui o direito ao respeito às suas diversas identidades culturais, étnicas e de gênero.

Ademais, é preciso considerar que não existe ainda um patamar mínimo de qualidade que caracterize a maior parte dos estabelecimentos de Educação Infantil. Assim, o respeito à diversidade e a consideração ao contexto local devem ser relativizados quando condições adversas, presentes nas creches ou nas pré-escolas, afetam os direitos básicos da criança pequena, chegando a significar riscos a seu desenvolvimento físico, psicológico e como ser social. A partir do debate mais geral sobre a qualidade na educação e mais especificamente em relação ao atendimento na Educação Infantil, é possível extrair algumas conclusões:

1) a qualidade é um conceito socialmente construído, sujeito a constantes negociações;

2) depende do contexto;

3) baseia-se em direitos, necessidades, demandas, conhecimentos e possibilidades;

4) a definição de critérios de qualidade está constantemente tensionada por essas diferentes perspectivas.

3- Resultados de pesquisas recentes

Já existe um conhecimento acumulado, a partir de pesquisas empíricas, sobre os fatores associados a resultados obtidos por crianças em seu desempenho cognitivo e socioemocional que estão ligados a características dos estabelecimentos de Educação Infantil frequentados. Essas pesquisas procuram controlar os demais fatores ligados às condições e às características das famílias e do meio social e cultural das crianças e suas características individuais, no sentido de identificar o peso dos fatores escolares na avaliação dos resultados obtidos pelas crianças em diversos momentos, desde o final da etapa pré-escolar até as primeiras séries do Ensino Fundamental. Esses resultados são importantes no sentido de sugerir quais seriam as dimensões de qualidade estratégicas a serem priorizadas para se obter os resultados mais positivos no desempenho presente e futuro das crianças.

Em décadas passadas, foram realizados vários estudos desse tipo, um dos quais bastante divulgado, que acompanhou um grupo de crianças até a fase adulta, realizado nos Estados Unidos, o Perry School Project. Apesar de polêmico, esse estudo até hoje é citado para reforçar o argumento de que investimentos em Educação Infantil de boa qualidade produzem resultados positivos a longo prazo, inclusive do ponto de vista econômico. No Brasil, um estudo promovido pelo Banco Mundial e pelo Ipea (2001) utilizou dados do IBGE para calcular os efeitos da frequência à pré-escola. A pesquisa baseou-se em dados sobre a situação escolar passada de uma amostra da população entre 25 e 64 anos de idade para avaliar retrospectivamente os efeitos dessa variável sobre a escolaridade, o emprego e o estado nutricional dos sujeitos. As conclusões apontam para um efeito significativo da frequência à pré-escola sobre a escolaridade dos indivíduos (série completada e repetências), controlando-se as variáveis de origem socioeconômica.

Foram constatadas também taxas de retorno econômicas positivas para o investimento em pré-escola. A maior parte dessas pesquisas investigou os efeitos de programas pré-escolares, sendo menor o número de estudos sobre a creche. Como já foi comentado em artigo publicado em 1997, que realizou uma ampla revisão sobre investigações realizadas no Brasil e no exterior, inclusive em outros países da América Latina, sobre os efeitos da Educação Infantil, os resultados desses estudos reforçam o fato de que as crianças que frequentam uma Educação Infantil de boa qualidade obtêm melhores resultados em testes de desenvolvimento e em seu desempenho na escola primária, sendo esses efeitos mais significativos justamente para as crianças mais pobres. Resumindo as principais conclusões desses estudos, o artigo aponta para três fatores de qualidade identificados em diferentes países e contextos: a formação dos professores, o currículo e a relação da escola com a família (CAMPOS, 1997).

Alguns levantamentos recentes de grande escala estão procurando esmiuçar melhor esses fatores analisando de perto características dos diferentes tipos de serviços frequentados pelas crianças, por meio de estudos longitudinais, em que também são investigados os diversos efeitos constatados no desempenho das crianças em determinadas fases de seu desenvolvimento. São assim comparadas as diferentes trajetórias de coortes de crianças: aquelas que não frequentam nenhum tipo de creche ou pré-escola, as que são cuidadas apenas pelos pais, as que ficam sob cuidados de outros adultos, e assim por diante, tentando cobrir as várias situações possíveis e testando estatisticamente as associações observadas entre as diferentes experiências e os resultados das crianças, medidos com auxílio de diversas técnicas. Dois grandes projetos de pesquisa, um na Inglaterra e outro nos EUA, investigam atualmente essas questões. Os resultados possíveis de serem acessados, em publicações e pela Internet, são ainda parciais, pelo fato de serem estudos longitudinais com muitos dados ainda em análise.

O projeto britânico incluiu crianças somente a partir dos 3 anos de idade, e o norte-americano selecionou sua amostra desde o momento do nascimento das crianças, apresentando resultados principalmente sobre a frequência a creches e outras modalidades de cuidado a crianças de até 3 anos. O EPPE The Effective Provision of Pre-School Education Project (Projeto sobre a Oferta Efetiva de Educação Pré-Escolar), coordenado pelo Instituto de Educação da Universidade de Londres, contou com financiamento governamental e foi iniciado em 1997, com duração prevista de cinco anos (SYLVIA et al., 1999a e b). No Reino Unido, as crianças iniciam a primeira série do ensino primário no ano em que completam 5 anos de idade. Assim, o estudo seguiu uma amostra de 3 mil crianças de 3 a 7 anos de idade que estavam matriculadas em 140 centros de Educação Infantil, de diversas modalidades, durante dois anos da etapa pré-escolar e três anos de escola primária.

Para fins de comparação, na amostra também foram incluídas mais duzentas crianças que não haviam frequentado pré-escola no momento do seu ingresso na escola primária. Foi coletada uma série de dados sobre as crianças, seus pais, o ambiente doméstico e as modalidades de pré-escola frequentadas, que cobriram os diversos tipos de serviços existentes naquele país, inclusive o chamado playgroup (grupo de brincadeira), um tipo de Educação Infantil informal que utiliza adultos e espaços da comunidade, mas nem sempre oferece atividades em todos os dias da semana. Em relação ao impacto da frequência à pré-escola, a pesquisa aponta que ela favorece o desenvolvimento da criança, a duração da frequência é importante, e o início antes dos 3 anos de idade pode ser relacionado com maior desenvolvimento intelectual. Todavia, a frequência em tempo integral não pode ser correlacionada a melhores resultados para as crianças em comparação com o meio período. Por sua vez, crianças mais pobres podem se beneficiar significativamente de uma experiência pré-escolar de qualidade, especialmente quando frequentam centros que recebem população heterogênea do ponto de vista da origem social.

Quanto à qualidade das práticas nas pré-escolas, foi evidenciado que está diretamente relacionada a melhores resultados no desenvolvimento intelectual e sociocomportamental das crianças e esses efeitos persistem nas avaliações realizadas aos 6 anos e mais. Isso foi constatado, sobretudo, no início da escolaridade formal naquelas crianças que frequentaram, por um longo período, pré-escolas de qualidade. Quanto ao ambiente familiar, a pesquisa confirma dados de outros estudos no sentido de que a educação e a classe social dos pais são importantes preditores do desenvolvimento intelectual e social, mas observa que a qualidade do ambiente de aprendizagem no lar pode promover o desenvolvimento intelectual e social em todas as crianças, superando a influência da classe social e do nível educacional dos pais. No que diz respeito às características dos centros de educação pré-escolar investigados, o estudo encontrou evidências adicionais de que a qualidade pode ser encontrada em todos os tipos de pré-escola, entretanto as de melhor qualidade são aquelas mais formais, que contam com pessoal qualificado e currículo mais sistematizado, combinando educação e cuidado, com um máximo de 13 crianças por adulto e geralmente duas professoras por classe.

 Outros fatores que contribuem para a qualidade são as relações interativas calorosas com as crianças e o entendimento de que o desenvolvimento educacional e o desenvolvimento social são aspectos complementares. Outros fatores são a oferta de ambientes instrutivos de aprendizagem, que contem com recursos pedagógicos adequados e uma formação continuada em serviço. (SYLVIA et al., 1999a e b). A pesquisa constatou também que os centros com maior tradição de vinculação com a área educacional foram os que alcançaram melhor pontuação de qualidade, contando com pessoal mais qualificado e melhor supervisão. Aqueles com uma tradição mais ligada à área de bem-estar social foram os que apresentaram piores resultados, mas são justamente os que contam com pessoal com pior qualificação, pior remuneração, com pouca supervisão e alta rotatividade. Apesar de obtidos em contextos bem diversos dos encontrados no Brasil, esses resultados constituem importantes subsídios para a definição de parâmetros de qualidade, pois muitas de suas conclusões são também confirmadas por estudos realizados em outros países.

Por exemplo, verificou-se uma associação entre condições de vida das famílias e acesso à pré-escola na população estudada, sendo encontrada uma maior proporção de crianças de famílias com piores condições de vida no grupo daquelas que nunca frequentaram pré-escola do que na amostra de alunos de pré-escolas, fato também constatado no Brasil. Outro estudo que vem sendo desenvolvido sobre a qualidade, que constitui um amplo programa que envolve diversas pesquisas sobre o cuidado de crianças até 3 anos de idade e o desenvolvimento juvenil é o SECC (Study of Early Child Care and Youth Development). Sendo coordenado pelo The NICHD – National Institute of Child Health & Human Development (Instituto Nacional de Saúde Infantil e Desenvolvimento Humano) do Ministério da Saúde dos Estados Unidos, conta com a participação de equipes de diversas universidades daquele país. Os resultados disponíveis na Internet desse amplo programa de pesquisas em andamento em dez localidades dos EUA ainda são preliminares, parciais e contraditórios em alguns aspectos.

A pesquisa foi iniciada em 1989 para investigar as relações entre as experiências de cuidado das crianças pequenas e os resultados em seu desenvolvimento. A primeira fase do estudo acompanhou uma coorte de 1.364 crianças escolhidas de acordo com uma amostragem estratificada, desde seu nascimento, em 1991, até os 3 anos de idade; uma segunda fase seguiu um grupo de 1.226 delas, dos 3 anos até a segunda série primária; a terceira fase acompanha 1.100 crianças até a sétima série, em 2005. O estudo utiliza uma grande variedade de estratégias, buscando avaliar a qualidade dos ambientes nos quais as crianças convivem, tanto no âmbito doméstico como no institucional, no caso daquelas que frequentaram creches. De modo geral, na faixa de idade considerada, foi constatado que as variáveis familiares têm um peso significativo sobre o desenvolvimento das crianças. Os efeitos da frequência a creches, quando positivos, mostraram-se complementares às condições do ambiente familiar. A maior parte das pesquisas teve dificuldade em separar os efeitos das experiências na família daqueles ligados às características do tipo de cuidado oferecido à criança fora da família.

Assim mesmo, algumas características dos serviços observados, como, por exemplo, a razão adulto–criança, o tamanho dos grupos, a formação e a qualificação do educador, revelaram-se significativamente associados ao desempenho das crianças em diversos aspectos. Outro estudo confirmou essas conclusões, indicando que existe fundamento empírico para políticas de melhoria nas regulamentações oficiais sobre formação dos educa[1]dores e proporção de crianças por pessoal. Uma das pesquisas examinou de perto grupos de crianças de famílias de baixa renda em três níveis diferentes de pobreza. Como era de se esperar, as piores condições de vida das famílias estavam associadas a desempenhos mais baixos das crianças. Esse estudo conclui que a oferta de creches é essencial para aquelas famílias que tentam permanecer fora do limite de pobreza. Nos grupos mais pobres, uma melhor qualidade da creche se mostrou associada a melhores resultados quanto ao desenvolvimento das crianças.

Apesar de muitos desses resultados não serem ainda conclusivos, a maioria deles aponta para a importância da qualidade do ambiente sobre o desenvolvimento das crianças nessa fase de vida em todas as situações observadas: na família, na creche, em espaços domésticos fora da família. Uma recomendação que poderia ser deduzida desses resultados seria que, especialmente nesses três primeiros anos de vida, a complementaridade entre os cuidados e a educação na família e na creche deve ser buscada, o que mostra a importância de uma boa comunicação entre os adultos que atuam nesses dois espaços. Estudos anteriores realizados nos Estados Unidos já haviam identificado alguns fatores de qualidade de creches associados a bons resultados de desempenho das crianças, confirmados por esses dados mais recentes. O tamanho dos grupos de crianças, a intensidade das interações entre adultos e crianças e o conhecimento dos educadores sobre a educação de crianças pequenas são fatores significativamente associados aos progressos das crianças (CAMPOS, 1997).

4-A qualidade na perspectiva da legislação e da atuação dos órgãos oficiais no Brasil

No Brasil, a partir da década de 1980, no bojo do processo de redemocratização do país, o campo da Educação Infantil ganhou um grande impulso, tanto no plano das pesquisas e do debate teórico quanto no plano legal, propositivo e de intervenção na realidade. Em 1988, a Constituição Federal reconhece o dever do Estado e o direito da criança a ser atendida em creches e pré-escolas e vincula esse atendimento à área educacional. Ressalta-se também a presença no texto constitucional do princípio da igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola, avanços fundamentais na perspectiva da qualidade e da ampliação dos direitos da criança independentemente de sua origem, raça, sexo, cor, gênero ou necessidades educacionais especiais. Em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente ratifica os dispositivos enunciados na constituição.

 O MEC também teve um importante papel, inicialmente na coordenação do Movimento Criança Constituinte, em seguida nos compromissos assumidos internacionalmente na Conferência de Jomtien, e na realização dos debates no âmbito do I Simpósio Nacional de Educação Infantil (1994), preparatório à Conferência Nacional de Educação para Todos. Nesse encontro, realizado no marco do Plano Decenal de Educação para Todos, ao lado de outros temas, foi realizada uma mesa-redonda sobre experiências internacionais de melhoria da qualidade na Educação Infantil (ROSEMBERG; JENSEN; PERALTA, 1994). Entre 1994 e 1996, o MEC realizou vários seminários e debates, com a participação de diferentes segmentos e organizações sociais, buscando contribuir para a construção de uma nova concepção para a educação das crianças de 0 até 6 anos. As discussões realizadas nesses eventos deram origem a uma série de publicações. São elas:

  • Política Nacional de Educação Infantil (Brasil, 1994a);
  • Educação Infantil no Brasil: situação atual (Brasil, 1994b);
  • Por uma política de formação do profissional de Educação Infantil (Brasil, 1994c);
  • Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças (Brasil, 1995a);
  • Educação Infantil: bibliografia anotada (Brasil, 1995b) e Propostas pedagógicas e currículo em Educação Infantil (Brasil, 1996).

Essas publicações contaram com a colaboração de muitos professores e pesquisadores, configurando uma produção intensa e rara entre profissionais ligados à universidade e profissionais com responsabilidades executivas. Dois desses trabalhos merecem destaque por enfocarem diretamente a questão da qualidade na Educação Infantil. O primeiro foi o documento sobre critérios de qualidade, que compunha um conjunto formado também por um cartaz contendo os 12 critérios para a unidade creche e por um vídeo – Nossa creche respeita criança – acompanhado de um folheto com sugestões para discussão em grupos de formação. Seu conteúdo baseou-se em uma experiência de assessoria e intervenção em creches conveniadas do município de Belo Horizonte, que contou com a parceria de diversas instituições e de órgãos da prefeitura. Reflete, assim, a realidade encontrada nessas instituições, que pela primeira vez contavam com uma supervisão sistemática da prefeitura. Procurou abordar os problemas concretos observados nessas creches e as dificuldades que as equipes de educadoras sem formação enfrentavam em seu cotidiano, comum à maioria das instituições que atendem crianças pequenas das classes populares pelo país afora (BRASIL, 1995a).  

Este documento foi reproduzido na edição preliminar deste texto (MEC, s.d.). segundo foi um estudo sobre propostas pedagógicas e currículo que realizou um levantamento nacional dos documentos elaborados por secretarias estaduais e de municípios de capital, desenvolvendo uma metodologia de análise e avaliação desses documentos e fornecendo um modelo orientador para a elaboração e a implementação de propostas pedagógicas ou curriculares para unidades ou sistemas de educação infantil, (BRASIL, 1996). Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) foi promulgada, contribuindo de forma decisiva para a instalação no país de uma concepção de Educação Infantil vinculada e articulada ao sistema educacional como um todo. Na condição de primeira etapa da Educação Básica, imprime-se uma outra dimensão à Educação Infantil, na medida em que passa a ter uma função específica no sistema educacional: a de iniciar a formação necessária a todas as pessoas para que possam exercer sua cidadania. Por sua vez, a definição da finalidade da Educação Infantil como sendo o “desenvolvi[1]mento integral da criança até 6 anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” evidencia a necessidade de se tomar a criança como um todo para promover seu desenvolvimento e implica compartilha[1]mento da responsabilidade familiar, comunitária e do poder público. A avaliação na Educação Infantil é definida a partir dessa concepção de desenvolvimento integrado, e assim deve ser processual acontecendo de forma sistemática e contínua.

Seu acompanhamento e registro têm objetivos de diagnóstico e não de promoção ou retenção, exigindo a redefinição das estratégias metodológicas utilizadas com as crianças de 0 até 6 anos de idade. Em decorrência da inserção da Educação Infantil na Educação Básica, a formação exigida para o profissional que atua com essa faixa etária passa a ser a mesma daquele que trabalha nas primeiras séries do Ensino Fundamental: nível superior em curso de licenciatura, admitindose, como formação mínima, a oferecida em nível médio na modalidade normal. Considerando que o professor tem um papel extremamente importante na garantia da qualidade do trabalho realizado na educação, além de tratar da formação inicial dos profissionais de Educação Infantil, a LDB estabelece que os sistemas promoverão a valorização desses profissionais, assegurando-lhes nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público, ingresso exclusivamente por concurso de provas e títulos, formação continuada, piso salarial profissional, progressão funcional, período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga horária, e condições adequadas de trabalho.

De acordo com os dispositivos constitucionais e com a LDB, cabe aos municípios a responsabilidade pela Educação Infantil. Mas para que o reconhecimento legal do dever do Estado e do direito da criança a ser atendida em creches e pré-escolas possa ser efetivado e para que esse atendimento se vincule efetivamente à área educacional, é necessária uma ação conjunta dos governos, nas instâncias federal, estadual e municipal, e a parceria com a sociedade. Nas disposições transitórias dessa lei, foi estabelecido um prazo de três anos, a contar da data de sua publicação, para que as creches e as pré-escolas existentes ou que viessem a ser criadas se integrassem ao respectivo sistema de ensino. Para que a integração se efetivasse, era necessário que os Conselhos de Educação elaborassem regulamentações para o credenciamento e o funcionamento das instituições de Educação Infantil. A definição e o cumprimento dessas normas teriam, certamente, impacto direto na qualidade do atendimento, na medida em que visavam garantir que as creches e as pré-escolas tivessem espaço físico e materiais adequados, for[1]mação do profissional de acordo com a exigência legal e proposta pedagógica, entre outros aspectos.

Assim sendo, após a aprovação da LDB, o MEC promoveu uma discussão no âmbito do Conselho Nacional e dos Conselhos Estaduais e Municipais de Educação que culminou com a publicação do documento Subsídios para credenciamento e funcionamento de instituições de Educação Infantil (BRASIL, 1998a). Os textos dessa publicação contêm sugestões de critérios de qualidade que servem como referência para a elaboração das regulamentações específicas para a Educação Infantil pelos Conselhos Estaduais e Municipais. Ainda no final da década de 1990, o MEC elaborou e distribuiu às escolas de todo o país o documento Referencial Curricular Nacional para a Edu[1]cação Infantil (BRASIL, 1998b). Em seguida, desenvolveu um programa de formação continuada nos sistemas de ensino que tinha como objetivo principal divulgar e discutir esse documento. O Referencial visa auxiliar o professor na realização de seu trabalho educativo diário com as crianças de 0 a 6 anos. Aponta metas de qualidade para garantir o desenvolvimento integral das crianças, reconhecendo seu direito à infância como parte de seus direitos de cidadania (p. 5, vol. I).

Sendo composto por três volumes, o primeiro apresenta uma reflexão geral sobre o atendimento no Brasil, sobre as concepções de criança, de educação e do profissional; o segundo trata da Formação pessoal e social e o terceiro volume ocupa-se dos diferentes conteúdos incluídos em Conhecimento do mundo. Sua primeira versão foi comentada por um significativo número de pareceristas individuais, evidenciando críticas e polêmica em alguns meios. Contudo, vale ressaltar a importância desse documento, que se constitui na primeira proposta curricular oficial destinada igualmente à creche e à pré-escola. O Referencial havia sido antecedido por um trabalho desenvolvido pelo próprio MEC na década de 1990, os dois volumes de Professor da pré-escola (BRASIL, 1991), os quais continham textos que acompanhavam vinte vídeos com o título geral de Menino, quem foi teu mestre? e apresentavam uma abordagem bastante aberta e pouco estruturada de um currículo para a pré-escola. No âmbito da Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE), de acordo com as atribuições que lhe foram conferidas pela nova legislação6, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, como Resolução CNE/CEB n° 1 de 07/04/1999 (BRASIL, 1999b).

Essas diretrizes têm caráter mandatório para todos os sistemas municipais e/ou estaduais de educação, diferentemente do Referencial, que se constitui apenas em um documento orientador do trabalho pedagógico. A resolução que instituiu essas diretrizes foi precedida por um parecer que trata de várias questões relativas à qualidade (Parecer CNE/CEB nº 22/98, de 17/12/98). Por exemplo, na relação adulto — criança, indica a seguinte proporção:

  • 1 professor para 6 a 8 bebês de 0 a 2 anos;
  • 1 professor para cada 15 crianças de 3 anos;
  • 1 professor para cada 20 crianças de 4 a 6 anos.

Ver Cerisara (1999) e ANPEd (1998). No final de 1996, foi criado o Conselho Nacional de Educação, em substituição ao antigo Conselho Federal de Educação, sendo uma parte dos novos membros indicados por um conjunto representativo de entidades. Tanto o Parecer quanto a Resolução são muito claros ao englobarem na nomenclatura instituições de Educação Infantil creches, pré-escolas, classes e centros de Educação Infantil. Reforçam também a faixa etária de 0 até 6 anos como um todo íntegro e delimitador das matrículas nas instituições de Educação Infantil. Em ambos, a criança ocupa um lugar central como sujeito de direitos.

As Diretrizes definem em seu art. 3º os fundamentos norteadores que devem orientar os projetos pedagógicos desenvolvidos nas instituições de Educação Infantil:

a) Princípios Éticos da Autonomia, da Responsabilidade, da Solidariedade e do Respeito ao Bem Comum;

b) Princípios Políticos dos Direitos e Deveres de Cidadania, do Exercício da Criticidade e do Respeito à Ordem Democrática;

c) Princípios Estéticos da Sensibilidade, da Criatividade, da Ludicidade e da Diversidade de Manifestações Artísticas e Culturais.

O CNE também se ocupou da questão da formação dos professores que atuam com às crianças de 0 até 6 anos. Em 1999, foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de docentes da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, em nível médio, na modalidade Normal (Resolução CNE/CEB nº 2, de 19/04/1999a), que se aplicam aos professores de Educação Infantil, das quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, da Educação de Jovens e Adultos, da Educação nas Comunidades Indígenas e de Educação Especial. Em que pese a dificuldade de contemplar, no mesmo documento, uma orientação para os cursos de formação de professores que trabalham com alunos tão diferentes quanto à faixa etária, contextos sociais e modalidades de ensino que frequentam, o relatório que introduz esse documento traz uma concepção de formação atualizada no que diz respeito aos fundamentos teóricos, abrangente quanto à visão de educação e coerente com os princípios de cidadania definidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.

No ano seguinte, foram aprovadas as Diretrizes Operacionais para a Educação Infantil (Parecer CNE/CEB nº 04/00, de 16/02/00), as quais deliberam sobre a vinculação das instituições de Educação Infantil aos sistemas de ensino e sobre vários aspectos que afetam a qualidade do atendimento: proposta pedagógica, regimento escolar, formação de professores e outros profissionais, espaços físicos e recursos materiais. Essas diretrizes definem também a responsabilidade de autorizar com validade limitada, avaliar e supervisionar as instituições de Educação Infantil. Paralelamente a esses esforços, o debate sobre o Plano Nacional de Educação (PNE) desenvolvia-se nas organizações da sociedade civil e no Congresso Nacional. Antigo sonho dos Pioneiros da Educação de 1932, a definição de um plano que seja compromisso de Estado, e não apenas de um governo, atende à necessidade de conferir prioridade à educação, reconhecendo que os progressos nesse campo necessitam de esforços continuados e coordenados que não alcançam seus resultados em prazo curto. Para definir parâmetros de qualidade para a Educação Infantil, não é suficiente consultar a legislação específica para essa etapa de ensino, especialmente quando se trata de contemplar temas relativos à diversidade étnica, racial, de gênero ou as disparidades entre cidade e campo.

As resoluções e os pareceres do CNE adquirem importância relevante ao tocarem em matérias ainda não suficientemente esclarecidas pela legislação anterior aplicáveis à educação das crianças de 0 até 6 anos. No que se refere às escolas indígenas, em 1999 o CNE elaborou o Parecer n.º 14/99 (BRASIL, 1999c) sobre Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena. Levando em consideração a necessidade de superar a longa história de imposição de modelos educacionais estranhos à cultura dos povos indígenas e as aspirações desses povos por uma educação que respeite e valorize suas identidades étnicas, essas diretrizes partem do artigo 210 § 2º da Constituição, que diz: O ensino regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

A LDB reforça esse direito, definindo em seu artigo 78 que O sistema de ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrantes de ensino e pesquisa para a oferta de educação bilíngue intercultural aos povos indígenas. Ao lado da valorização dessas culturas, a LDB também atribui às escolas indígenas o objetivo de “possibilitar o acesso às informações e aos conhecimentos valorizados pela sociedade nacional” (artigo 78). Considerando-se que a professora ou o professor que atua nas escolas dessas comunidades devem ter conhecimentos específicos, essas diretrizes também contemplam a formação desses professores. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena, foram instituídas em fevereiro de 2002 (Resolução CNE/ CP nº 1, de 18/02/02a). Caracterizam-se por princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na organização institucional e curricular de cada estabelecimento de ensino. Abordam aspectos que tornam essa formação bastante abrangente no que diz respeito àquilo que se espera de um professor de Educação Básica, ao mesmo tempo em que buscam garantir a especificidade da educação que acontece nas várias etapas e modalidades desse nível educacional.

É ressaltado, por exemplo, que na construção do projeto pedagógico dos cursos de formação dos docentes as competências gerais a serem consideradas sejam contextualizadas e complementadas por outras específicas de cada etapa e modalidade de Educação Básica. Além disso, orienta-se para que a prática não fique desarticulada do restante do curso, devendo permear toda a formação do professor. Daí a necessidade de que se fortaleçam os vínculos entre as instituições formadoras e os sistemas de ensino possibilitando que estas trabalhem em constante interação com as escolas de Educação Básica. Em 2002, o CNE aprovou a Resolução nº 1 (BRASIL, 2002b), contendo as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do campo, que visam orientar a adequação do projeto institucional das escolas do campo às várias diretrizes elaboradas no âmbito da educação básica. Essas diretrizes expressam uma concepção de respeito às diferenças e consequente garantia do princípio da igualdade, na medida em que visam ao acesso da população do campo à Educação Básica e, por consequência à Educação Infantil.

Reforçam a qualificação mínima para a docência na Educação Infantil (curso de formação de professores em nível médio, na modalidade normal), o detalhamento de tópicos específicos na formação dos professores que atuam nas escolas do campo, a responsabilidade dos sistemas referente à habilitação dos professores sem formação e o aperfeiçoamento permanente dos docentes, sua remuneração adequada e inclusão nos planos de carreira. Trata-se, portanto, de garantir uma qualidade de atendimento escolar no campo equivalente à das outras localidades: diferente, porém não inferior. No que se refere à cultura afro-brasileira, mais recentemente a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, modificou o texto da LDB para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. O parágrafo 1º do novo artigo 26-A define que a inclusão dessa temática visa resgatar “a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil”. O parágrafo seguinte explica que os conteúdos “serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras”. Posteriormente, em março de 2004, o CNE aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana (BRASIL, 2004b).

Em sua fundamentação, esse documento propõe que se construam pedagogias de combate ao racismo e a discriminações. Suas recomendações estão organizadas nos seguintes princípios:

  • consciência política e histórica da diversidade;
  • fortalecimento de identidades e de direitos;
  • ações educativas de combate ao racismo e a discriminações.

Essas diretrizes são especialmente importantes para os currículos dos cursos de formação de professores, mas também apontam para questões que devem ser contempladas nas programações e nas práticas educativas das instituições de Educação Infantil (BRASIL, 2004b). No que toca ao tema da igualdade de gênero, o documento Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (BRASIL, 2004c), elaborado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, propõe em seu capítulo 2 a educação inclusiva e não sexista e como seu primeiro objetivo “Incorporar a perspectiva de gênero, raça, etnia e orientação sexual no processo educacional formal e informal”. Note-se que, entre suas prioridades, o plano inclui a ampliação do acesso à Educação Infantil, pois a política de inclusão educacional deve também possibilitar melhores oportunidades de inserção igualitária no mercado de trabalho para mães e pais. No que diz respeito às ações mais recentes do MEC na perspectiva da qualidade na Educação Infantil, faz-se necessário citar não só a realização dos seminários regionais Política Nacional de Educação Infantil em Debate como os documentos reformulados a partir das discussões realizadas nesses eventos.

Além do presente tema, foram debatidos os seguintes documentos:

  • Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de 0 até 6 anos à educação (BRASIL, 2005a),
  • Parâmetros Nacionais de infraestrutura para instituições de Educação Infantil (BRASIL, 2005b)
  • Parâmetros Básicos de infraestrutura para instituições de Educação Infantil (BRASIL, 2005c).

O primeiro contém diretrizes, objetivos, metas e estratégias para a área, o segundo e o terceiro apresentam alguns parâmetros básicos de infraestrutura para as instituições de Educação Infantil na perspectiva de subsidiar os sistemas de ensino em adaptações, reformas e construções de espaços de Educação Infantil. As sugestões apontadas não são mandatórias, cabendo a cada sistema de ensino adequá-las à sua realidade, respeitando as características da comunidade na qual a instituição está ou será inserida. Essas ações inserem-se em um processo coordenado pelo MEC de discussão das políticas educacionais em parceria com os sistemas de ensino e a sociedade civil organizada. Essas citações evidenciam o esforço que vem sendo realizado, no âmbito federal, desde a promulgação da Constituição, no sentido de definir uma nova legalidade para a educação da criança de 0 até 6 anos, no mesmo plano da importância conferida aos demais níveis de ensino, o que tem sido especialmente inovador para a instituição creche, até então completamente à margem das análises e das intervenções da área educacional.

Importante também é o reconhecimento de que esses avanços não teriam ocorrido não fosse a ampla mobilização social, desde os movimentos populares nos bairros, até as organizações de âmbito nacional, não só no campo educacional, mas também nos movi[1]mentos pelos direitos das mulheres, dos negros e nos movimentos em defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Desde a década de 1990, os Fóruns de Educação Infantil espalhados por diferentes estados brasileiros e, desde 1999 o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB) são movimentos da sociedade civil que promovem a mobilização da área da Educação Infantil por todo o país, configurando-se como importantes espaços de troca de experiências, debate, amadurecimento de propostas e de vigilância democrática em defesa dos direitos adquiridos pelas crianças brasileiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 É importante destacar que se a Educação Infantil agora constitui a primeira etapa da Educação Básica, a ela se aplicam todos os princípios e diretrizes voltados para a educação de forma geral. Traduzir os princípios legais em transformações na realidade da educação no país torna-se um desafio a ser superado por todos os níveis da Federação. Tanto em relação ao acesso quanto em relação à qualidade do atendimento existente, a distância entre o que a lei prescreve e as demandas sociais, de um lado, e a realidade das redes e das instituições de educação infantil, de outro, ainda é grande, especialmente para a faixa de 0 a 3 anos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) evidenciam o crescimento das matrículas nos últimos anos no país, porém ainda longe de atingir a maioria das crianças entre 0 e 6 anos de idade.

De acordo com o censo escolar, no período de 2001 a 2003, a média anual de crescimento foi de 6,4% na creche e de 3,5% na pré-escola. Entretanto, de acordo com dados da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada em 2003, apenas 37,7% do total de crianças com idade entre 0 até 6 anos frequentam uma instituição de Educação Infantil ou de Ensino Funda[1]mental. Esse percentual diminui para 11,7% quando consideramos apenas as crianças de 0 a 3 anos e aumenta para 68,44% quando são consideradas as crianças de 4 a 6 anos de idade. Um estudo realizado por Kappel (2005), com os dados de 2001, mostra, no entanto, que quando essas porcentagens são examinadas por faixas de renda da população, o acesso é tão maior quanto mais alta a renda familiar per capita; assim, enquanto 94,5% das crianças entre 4 e 6 anos de famílias com mais de três salários mínimos per capita frequentavam pré-escola, essa taxa era de apenas 57,4% dentre famílias de até meio salário mínimo per capita; na faixa de 0 a 3 anos, a diferença encontrada foi de uma taxa de atendimento de 32,6% para o grupo de renda mais alta e apenas 7,3% para os mais pobres (KAPPEL, 2005, p. 195, tabelas 5.7 e 5.8).

Os dados examinados por essa autora também revelam outro tipo de problema nas trajetórias educacionais das crianças: o da retensão de crianças em idade superior aos 6 anos em instituições de Educação Infantil. Em 2001, o IBGE registrava um total de 627 mil crianças entre 7 e 9 anos de idade permanecendo na pré-escola ou em classes de alfabetização e um total de 38 mil crianças com mais de 9 anos na mesma situação. Ou seja, essas crianças encontravam-se impedidas de iniciar sua escolaridade regular obrigatória, completamente fora dos parâmetros legais e, pode-se argumentar, ocupando as vagas que poderiam estar sendo abertas para a faixa etária adequada. Rosemberg (1999, p.23) já havia mostrado que 67,7% dessas crianças eram negras, segundo dados de 1995. A questão inversa é a absorção das crianças com idade inferior aos 6 anos no Ensino Fundamental.

Embora a LDB permita a matrícula das 41 Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil — Volume 1 crianças a partir dos 6 anos na primeira série do Ensino Fundamental, dados de 2001 acusam a presença de 103 mil crianças de 6 anos matriculadas no Ensino Fundamental no Brasil, o que correspondia respectivamente a 25,4% e a 4,8% do total em cada faixa etária (Kappel, 2003, p. 36, tabelas 6 e 6.1). No que diz respeito à qualidade do atendimento existente, ao lado da preocupação do MEC e de grupos específicos ligados a universidades, a centros de pesquisa ou aos Fóruns de Educação Infantil em melhorar os serviços oferecidos às crianças de 0 até 6 anos, temos ainda uma quantidade indefinida de instituições funcionando à margem dos sistemas educacionais, alheias aos mecanismos de supervisão e sequer identificadas nas estatísticas oficiais. Os dados dos últimos censos escolares revelam que uma parte expressiva das instituições não conta com as condições mínimas de funcionamento definidas na legislação.

As informações disponíveis mostram que a qualificação e a escolaridade dos professores são diferenciadas quando se trata de creches ou de pré-escolas. Enquanto na pré-escola tínhamos, no ano de 2004, 62,6% das funções docentes no Brasil com nível médio e 35% com nível superior, na creche, tínhamos 68,9% com nível médio e 23,8% com nível superior (BRASIL, 2004a). Se considerarmos que dentre essas instituições que funcionam à margem dos sistemas educacionais há algumas que sequer participam dos dados estatísticos, não respondendo ao Censo Escolar, concluiremos que o contingente de funções preenchidas por pessoal não habilitado é bem maior. O presente texto pretendeu abordar alguns aspectos relevantes para a definição de parâmetros de qualidade para a Educação Infantil no Brasil. A análise da concepção de criança, de pedagogia da Educação Infantil e da trajetória histórica do debate da qualidade da Educação Infantil, a consideração de alguns dados de pesquisas recentes realizadas dentro e fora de nosso país, os desdobramentos previstos na legislação nacional para a área e o evidenciar de contradições a serem superadas subsidiam a definição desses parâmetros.

Apresentados no volume II da presente publicação e parte integrante dele, os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil para os sistemas educacionais deverão contemplar aspectos unanimemente apontados como relevantes para a melhoria permanente da qualidade do atendimento às crianças, a saber:

  • as políticas para a Educação Infantil, sua implementação e acompanhamento;
  • as propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil;
  • a relação estabelecida com as famílias das crianças;
  • a formação regular e continuada dos professores e demais profissionais;
  • a infraestrutura necessária ao funcionamento dessas instituições.

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Como referenciar os Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil?

Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil. Brasília, 2006b. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil.

Como citar os Parâmetros Curriculares Nacionais ABNT?

Parâmetros curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997. 10v. Os conteúdos do site podem ser citados na íntegra ou parcialmente, desde que seja citado o nome do autor (quando disponível) e incluído um link para o site www.jurisway.org.br.

Como citar as diretrizes curriculares nacionais para a Educação Básica?

Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.

Como citar os PCNs 1997?

BRASIL, Ministério da Educação, (1997). Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. Brasília, MEC/SEF.