O pensamento parece uma coisa à toa mas como é que a gente voa quando começa a pensar

Intérprete: Caetano Veloso

Álbum (Ano): Temporada de Verão (Ao Vivo Na Bahia) (1974)

A música, letra e cifras estão aqui:

Tom de Dó maior • II V7 primário • Dominante primário V⁀ I • Resolução deceptiva do dominante primário (V)

Pode se dizer que, apesar do seu jeito tímido, Lupicínio Rodrigues é intenso. Se sua arte às vezes soa estranha, como estranho é o gaúcho aos olhos de não-gaúchos, mostra também a profundidade de poesias e melodias cheias de sentimento. Sua importância para a música popular brasileira como compositor é inquestionável, para ser sucinto.

O que talvez escape ao conhecimento mais amplo é a sua importância para a música e a cultura gaúcha. Nos conta Mário Goulart, na sua obra biográfica sobre o artista lançada em 1984, que a música “Felicidade”, gravada pela primeira vez em 1947 pelo quarteto Quitandinha Serenaders e interpretada em cena de um filme da “Atlântida”, foi o estopim de um movimento cultural que estava em formação, e que ocasionou uma verdadeira revolução tradicionalista que se desdobrou na construção das centenas de Centros de Tradições Gaúchas (CTG) Brasil afora, tendo como pioneiro o 35 CTG, fundado em 1948 em Porto Alegre.

Ao fazer uma busca, notei que ainda não está disponível na rede a transcrição da letra completa, e como o livro de Mário Goulart também é raro, transcrevo-a abaixo:

“Felicidade foi-se embora / e a saudade no meu peito ainda mora / e é por isso que eu gosto lá de fora / porque sei que a falsidade não vigora / Lá onde eu moro tem muita mulher bonita / que usa vestido sem cinta e tem na boca um coração / cá na cidade se vê tanta falsidade / que a mulher faz tatuagem até mesmo na afeição / A minha casa fica lá detrás do mundo / mas eu vou em um segundo quando começo a cantar / o pensamento parece uma coisa à-toa / mas como é que a gente voa quando começa a pensar / Na minha casa tem um cavalo tordilho / que é irmão do que é filho daquele que o Juca tem / quando eu agarro seus arreios e lhe encilho / sou pior que limpa-trilho / corro na frente do trem”.

“Felicidade” é um clássico do cancioneiro popular. Sua harmonia é totalmente diatônica, com acordes em tríades abrangendo seis graus da escala, com cadências perfeitas, e sua melodia é simples e bela. A representação aqui trazida é baseada na interpretação de Caetano, porém sem a inversão de acordes que ele utiliza. Para quem toca, a inversão de acordes ao longo da música se mostra um recurso quase inevitável e sempre traz bons resultados. É uma das músicas perfeitas para quem quer aprender violão. Uma versão mais antiga de Paulo Diniz ( //www.discogs.com/Paulo-Diniz-Quero-Voltar-Pra-Bahia/master/577296) é tocada simplesmente com dois acordes, tônica e dominante.

Várias curiosidades envolvem essa música. Destaco como principal o fato de ambas as interpretações, do “Quitandinha”, de Paulo Diniz e de Caetano, terem considerado apenas duas estrofes da letra original composta pelo autor, que conta com quatro estrofes. O que resultou dessa redução é o fato de muita gente achar que a música original se resume apenas a esses versos, talvez até o próprio Caetano (acho que não, mas quem sabe?). Entretanto, o que chama nossa atenção é justamente o resultado dessa escolha, que trouxe à obra outro sentido, mais “metafísico”.

O sentido mais óbvio é aquele de cunho regionalista, confirmado pela poesia completa, que cita as alegrias e tristezas de quem se vê fora de seu ambiente de costume. Ao suprimir a segunda e a quarta estrofe da letra, fica mais interessante. Na primeira estrofe, o autor revela uma tristeza comum à todos nós pelo simples fato de estarmos “vivos”. Essa “melancolia”, misto de saudade e tristeza é um sentimento real que tem sua origem na alma, no espírito. Na existência material, este experimenta constrangimentos, necessidades, limitações. “Aqui”, as pessoas conseguem esconder suas intenções verdadeiras atrás da máscara da mentira, aquela “falsidade” que no mundo espiritual não pode vigorar. “Lá fora”, as pessoas são observadas em sua essência energética e niveladas de acordo com sua frequência de vibração. Na terceira estrofe, sutilmente se confirma o sentido metafísico onde ele situa sua “casa” em um lugar longe do alcance material, mas de fácil alcance espiritual. Por ser o pensamento um atributo do espírito, não está sujeito às limitações do tempo e do espaço. E de forma claramente intuitiva situa a música, expressa no ato de cantar, como forma de entrar e permanecer em contato com esses dois mundos, inversos e complementares. Inspiradíssimo, não acha?