Qual a importância das constelações para os povos indígenas

INTRODUÇÃO

Em finais do século XIX e início do século XX etnógrafos e exploradores andaram pela região amazônica e se depararam com uma variedade de conhecimentos e práticas sociais muito significativas. Alguns desses relatos encontram-se disponíveis para pesquisadores e público interessado. (Koch-Grünberg, 1969; Nimuendaju, 1952).

Lévi-Strauss em seu O Cru e o Cozido, reproduz um mapa do céu presente numa publicação de Koch-Grünberg (Lévi-Strauss, 2004; Koch-Grünberg, 1969) onde podem ser notadas constelações correspondentes a populações indígenas de uma ampla região em que Koch-Grünberg esteve presente, incluindo aquela em que ocorreu nossa pesquisa de campo. Comparando os resultados de nossas pesquisas e o mapa desse etnógrafo, percebem-se diferenças e algumas poucas semelhanças (Cardoso, 2017; 2016; 2007). Feitas comparações com outras fontes mais recentes (Silva, 1962; Ribeiro & Kenhiri, 1987), existem pontos em comum que ajudam a traçar semelhanças e diferenças entre as pesquisas de campo realizadas em diferentes temporalidades e situações contextualmente distintas.

Alguns dos resultados dessas pesquisas apontaram para relações que envolviam o céu juntamente com o restante mundo natural e a vida cotidiana, incluindo a espiritualidade, dessas sociedades.

O tema das constelações astronômicas e suas localizações no céu para os povos indígenas brasileiros, para falar numa realidade mais conhecida por nós, não segue necessariamente o mesmo padrão encontrado nas constelações ocidentais. Uma constelação indígena, muito provavelmente corresponderá a uma representação diferente daquela esperada em um conjunto estruturado de pontos, alguns dos quais alinhados, com posições relativas que parecem corresponder às posições efetivas ou coordenadas astronômicas das estrelas no céu. Estes conceitos tipificam as constelações ocidentais, no mínimo, desde a Antiguidade Clássica como vemos, por exemplo, em Ptolomeu (Toomer, 1998), passando por uma enorme expansão e variedade de Mapas do Céu e Cartas Celestes entre 1600 e 1800 (Kanas, 2007), para chegarmos às normatizações ocorridas pela União Astronômica Internacional (IAU–em Inglês), perto de 1930 (Barentine, 2015). Existem distintas concepções do que vem a ser uma constelação quando visitamos outras culturas além da ocidental (Ruggles, 2015). Em alguns casos, essas representações preenchem de “representações que lembram estrelas”, os alinhamentos retos entre as estrelas observadas no céu (Silva, 1962; Magana, 1987). Estamos falando de representações e por isso mesmo elas carregam uma lógica interna, compartilhada, dentro de cada cosmopercepção[2] (Rodrigues, 2020), numa relação entre o concreto, o real e o reconhecível pelos indivíduos que constituem determinado grupo social e suas respectivas formas de interpretação e representação.

Serge Moscovici (1925-2014), psicólogo social romeno, radicado na França, afirmou que “a representação social constitui uma das vias de apreensão do mundo concreto, em seus alicerces e em suas consequências” (Moscovici, 1978). Sua teoria de Representações Sociais, que não será objeto de aprofundamento nesse artigo, mostra como o conhecimento abstrato se concretiza e passa ser compartilhado nos grupos sociais. “De fato, a representação é, fundamentalmente, um sistema de classificação e de denotação, de alocação de categorias e nomes (Moscovici, 2003). Essas representações, cujas dimensões perceptivas se enquadram numa categoria mais ampla do que uma imagem coletivamente compartilhada no ocidente, envolve também a presença de constelações representadas por manchas em regiões observadas como mais escuras (saco de carvão ou parte da área próxima da nossa constelação do Centauro) ou claras da Via Látea – como as áreas próximas da constelação do Sagitário (Epps & Oliveira, 2013; Faulhaber, 2004). Esse conceito não é apenas encontrado em nossa região do planeta, mas também está presente nas tradições, por exemplo, da Austrália, onde pesquisas mostram que as constelações de fundo negro da Via Láctea correspondem a representações aceitas em locais onde essa faixa clara do céu é visível de maneira bastante evidente (Ruggles, 2015; Selin, 2000; Johnson, 2014).

Quando se trata da região ocupada pelo Império Inca (Tawantinsuyu– ou “as quatro regiões do mundo” – formado por vários grupos étnicos distintos que ocupou um extenso território abrangendo países da atualidade como a Colômbia e o Chile, existem registros históricos decorrentes dos documentos produzidos pelos espanhóis quando da chegada na América do Sul e outras formas de documentação como os quipus (um complexo sistema de linhas com nós, usado para contagem ou como instrumento para o cômputo), iconografias do período e algumas vezes as ceques ou alinhamentos nas cidades que estariam supostamente direcionados para a capital do Império, Cusco (Latitude = -13,5º), além da documentação oriunda de escritos na língua espanhola e em variações do quíchua, do período em que os espanhóis já tinham ocupado os territórios sul-americanos. (Kelley & Millone, 2011).

Qual a importância das constelações para os povos indígenas

Figura 1 Mapa de famílias linguísticas do Alto e Médio Rio Negro. Fonte: Mapa-livro povos indígenas do Rio Negro – uma introdução à diversidade socioambiental do Noroeste da Amazônia brasileira (ISA, 2006:14) 

Como a língua e dialetos quíchua seguem, com todas as suas variações, sendo falados pelos habitantes dessa região da América do Sul é possível estabelecer comparações entre evidências atuais, etnográficas e alguns elementos presentes em documentação arqueológica, por exemplo. Em outras palavras, é possível e desejável articular essas duas formas de pesquisa: a arqueológica e a antropológica. Sabemos que a língua se altera nos espaços-tempo ocupados pelos distintos grupos étnicos. Mesmo dotada desse dinamismo, ela serve como elo entre elementos presentes na vida social dessas comunidades e as práticas mais antigas. Investigações realizadas a partir dessa memória linguística, do significado das palavras, expressões e variantes, auxiliaram no registro de constelações dos índios Tukáno[3] do médio Rio Tiquié. Esse rio, por sua vez, é tributário do Rio Uaupés que, por sua vez, desagua no Rio Negro, na Amazônia brasileira. Em toda essa região, existem, segundo os estudiosos que forneceram esses dados ao Instituto Socioambiental (ISA), três grandes famílias linguísticas, a saber: o Tukáno Oriental, o Aruák, o Makú, além da língua geral ou Nheengatú, que abrangem cerca de 23 línguas diferentes, que por sua vez, representam distintos grupos, sendo que a língua Tukáno tem predomínio sobre as outras, ao menos na calha do rio Tiquié (ISA, 2006).

A grande região onde estão os Tukáno é conhecida como “cabeça do cachorro” devido ao formato das divisas entre o Brasil e os países vizinhos. As áreas indígenas nessa região foram demarcadas na década de 1990, mas atualmente, em decorrência da política interna do Governo Federal do Brasil, há uma enorme expectativa com relação aos acontecimentos que envolvem as populações que ocupam o entorno dessas calhas de rios e extensa região.

Nosso trabalho de pesquisa se deu especificamente no médio Rio Tiquié, dentro de uma comunidade dos Tukáno, mas tivemos a oportunidade de conhecer no alto Rio Tiquié, uma comunidade de índios da etnia Tuyúka, que também aportaram contribuições importantes na constituição dos saberes astronômicos compartilhados parcialmente por todos esses grupos. Em oficinas de trabalho ligadas à Astronomia esses e outros grupos estiveram juntos, como Tuyúka e Desána, principalmente. Esse fato possibilitou intensas trocas e, para nossa pesquisa, compreensão com relação às semelhanças e diferenças entre as constelações observadas para cada grupo (Cardoso, 2007). Nosso propósito nesse trabalho não é de tratarmos do tema das diferenças e semelhanças entre as constelações e cosmopercepções desses grupos, especificamente.

Os Tukáno, os Tuyúka e os Desána, entre outros dez povos, compartilham raízes linguísticas comuns. Suas línguas compõem a família Tukáno Oriental e isso faz com que muitas palavras sejam parecidas (o ramo Tukáno Ocidental não fica no Brasil). Uma palavra frequente na astronomia Tukáno[4] é poero – cujo significado em Língua Portuguesa é “enchente”. Em Tuyúka, essa palavra corresponde a poe. A similaridade se estende para muitas outras formas do léxico e, em particular para o caso que nos interessa, para os nomes das constelações (Cardoso, 2007). A língua Tukáno é conhecida e falada entre muitos povos dessa região. O Baníwa, por exemplo, é uma língua diferente, da calha do rio Içana. Não houve investigação de nossa parte sobre as constelações do Içana, mas algumas informações esparsas mostram que as constelações são diferentes no caso dos Baníwa, mas similares no caso dos Desána, por exemplo. (Azevedo & Oliveira, 2010; Fernandes & Fernandes, 2006). Ainda há muito por se fazer para se estabelecer uma comparação adequada entre as constelações desses grupos.

Além da situação linguística, a vida desses grupos é marcada pelos ritmos do mundo natural (oscilações no nível de rios, Igarapés e Igapós), mudanças na disponibilidade de alimentos animais e vegetais bem como seus rituais e festas, que decorrem das relações socioambientais. As constelações e suas posições no céu indicam relações claras com os ciclos da natureza e fazem parte daquilo que reconhecemos e passaremos a considerar como um complexo calendário que assume diferentes representações nos espaços-tempo desses grupos. Sabemos que o termo calendário, em si, se relaciona à expectativa ocidental de medida oficial e convencional de tempo, a saber dias, meses e anos. O termo calendário poderia ser equivocadamente considerado como uma tabela de datas e meses, em última análise, mas não é disso que estamos falando aqui. Em nenhum caso um calendário pode ser reduzido a uma tabela e, portanto, em nosso caso isso está fora de cogitação. Essa relação complexa decorre da própria narrativa histórica das concepções sobre o tempo e suas medidas. Historicamente e antes do que consideramos “História”, o calendário ocidental se baseou em fenômenos astronômicos interpretados ao longo do tempo ou das relações entre as culturas e aquilo que, de maneira abrangente e intuitivamente, chamamos de Natureza. Em linhas gerais, o calendário ocidental poderia ser entendido como o resultado de um conjunto de convenções criadas dentro de uma lógica de subalternação de vários sistemas de medidas de tempo locais (Lippincott, 2000). Se essa é uma criação ocidental, por que podemos chamar de calendário a um sistema de medidas de tempo que se relaciona com o calendário ocidental, mas que não é igual a ele? Porque os povos da região noroeste do Amazonas chamam o arranjo que relaciona o movimento das constelações e as transformações socioambientais locais de “calendário”. Isso acontece possivelmente porque essa estrutura de marcar o tempo em suas próprias construções socioambientais tenha sido relacionada com o conceito de calendário para nós. Impor outra terminologia não tornaria menos impositivo o conceito que se pode traduzir na complexidade desse calendário. Daí, optarmos pelo uso do termo que, de maneira corrente se identifica com um calendário.

A presença de um grupo determinado de aves, de maneira sazonal, a floração e a frutificação de certas espécies vegetais, os peixes que se alimentam dos frutos que caem no rio, por exemplo, se integram com o ocaso helíaco[5] de parte das constelações, com os rituais, com as festas, etc. Aí está a complexidade do que chamamos de calendário. Existe uma delicadeza nesse arco narrativo que se utiliza do espaço-tempo para sustentar, construir e representar a realidade. Daí a postura de investigar com o mesmo respeito, ética e cuidados os elementos constitutivos dessa percepção de mundo.

METODOLOGIA EMPREGADA NA INVESTIGAÇÃO

Desde o início do planejamento da pesquisa, junto ao Instituto Socioambiental (ISA), sabíamos que seriam desenvolvidas oficinas de astronomia, com a finalidade de que os mais jovens, estudantes da escola e da comunidade Tukáno, tivessem contato com as constelações de seu povo, bem como com os mitos e organizações narrativas que estabeleciam as conexões entre a vida cotidiana e o céu como um todo. Havia uma mescla de possíveis razões para que as oficinas acontecessem dentro da escola. As lideranças da comunidade entendiam que, parte dos jovens se afastavam cada vez mais dos conhecimentos e dos conhecedores tradicionais em face dos interesses crescentes em assuntos externos à comunidade. Entendia-se que a escola poderia reunir conhecedores e comunidade para o compartilhamento de parte dos conhecimentos e sensibilização de alguns jovens para se iniciarem nas práticas de seus antepassados e anciãos da comunidade. Assim, o processo de escolarização poderia ganhar mais significado para a comunidade como um todo. Em vez de entender apenas a Matemática, as Ciências e outros saberes ocidentais, a oportunidade aproximava diferentes atores sociais que estavam se distanciando cada vez mais. Foi, portanto, uma estratégia que as lideranças entenderam como positiva para revalorização de conhecimentos tradicionais. Conhecedores e anciãos tinham pouco contato com o ambiente escolar da comunidade para trazer esse conhecimento aos jovens e as oficinas ocorreram também com esse propósito. Na Escola Yupuri, estariam crianças e jovens numa única sala de aula. Esse tipo de organização de sala de aula, com alunos de diversas series distintas, chama-se classe multisseriada. Nesse caso, não apenas os alunos estariam presentes, mas também representantes da comunidade, como sabedores ou conhecedores indígenas e os mais velhos da comunidade. Foram três oficinas, no total, com a participação de outros profissionais como antropólogos e técnicos especializados em desenvolvimento de soluções ligadas às questões socioambientais (Cardoso, 2007). Parte do que foi desenvolvido nas oficinas seguiu pelos semestres até 2007 e posteriormente. Leituras adicionais com trabalhos de astronomia nas culturas de outros pesquisadores ao redor do mundo e referências em antropologia auxiliaram na consolidação de outros modelos metodológicos (Boas, 2007; Selin, 2000; Malinowski, 1986; Holbrook, 2008) e algumas outras referências estavam voltadas mais especificamente para as Américas, em especial a América do Sul (Reichel-Dolmatoff, 2008; Hugh-Jones, 2017; 1979; Magaña, 1987; Aveni, 1977).

Da teoria para a prática, foram organizados conjuntos de cartas celestes confeccionadas a partir de material usado pela Sociedade Brasileira para o Ensino da Astronomia (SBEA). Eram cartas celestes de dois tipos distintos. Um grupo de cartas celestes contava com projeções feitas para latitudes ao sul da linha do Equador, com as constelações que eram observadas no céu, no período das oficinas (novembro de 2005). O segundo conjunto de cartas celestes não trazia alinhamentos entre as estrelas e foi reproduzido em fotocópias, em formato A3 para que os estudantes e conhecedores indígenas pudessem fazer desenhos neles. O trabalho de investigação das constelações dos Tukáno partiu originalmente da tentativa de utilizar essas reproduções de cartas celestes com e sem linhas entre as estrelas. Pretendia-se com isso que os conhecedores indígenas pudessem reconhecer alguns padrões espontaneamente e a partir deles desenhar imagens que resultassem em algum padrão que correspondesse às imagens mentais que tinham das constelações. Essas imagens seriam referendadas em outras pesquisas como aquelas realizadas nas observações de campo coletivas ou aquelas realizadas individualmente, com alguns sabedores indígenas. Os resultados, apesar de todo o esforço prévio, foram ruins. Essa, talvez, tenha sido a etapa de pesquisa que menos funcionou nesse trabalho de campo. Os conhecedores e anciãos da comunidade não conseguiam fazer uma transferência das imagens mentais que tinham em suas memórias para os pontos pretos dispersos aparentemente ao acaso no papel em branco, exibidos numa escala de distâncias diferente e dispostos sem levar em conta as deformações de projeção.

Cartas celestes, sem o acompanhamento de observação e reconhecimento ou contemplação do céu, não traduzem a realidade sensível da experiência de conhecer e ver o que realmente está presente no céu. Experiências com a observação contemplativa, a olho nu, do céu da Natureza ou feitas com projeções em planetários, por exemplo, não correspondem à mesma experiência, isso é claro, mas são equivalentes, do ponto de vista metodológico. Dentro de um planetário a experiência imersiva se assemelha àquela experimentada no lugar onde o céu é efetivamente observado. Projetar também a paisagem vista no horizonte do lugar dentro da sala de projeções de um planetário, aproxima ainda mais essa experiência com aquela que corresponde à real.

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Fonte: SBEA

Figura 2 Tipo de carta celeste que foi usada originalmente na pesquisa 

Os melhores resultados de investigação obtidos por nós, do ponto de vista metodológico, corresponderam ao uso de projeções do céu (programa stellarium ou starry night, por exemplo) de maneira concomitante com a observação do céu. Reunindo ao grupo de conhecedores indígenas obtivemos avanços incríveis quando comparamos os resultados com outras metodologias. Aprende-se muito sobre o céu com os conhecedores, ao longo do tempo de observação e nos dias seguintes, quando se volta ao assunto ou quando voltamos a usar as projeções. Mesmo no dia ou dias seguintes os participantes que conhecem o céu apontaram constelações. Essa técnica é bastante satisfatória, mas deve ser usada de maneira articulada com outras técnicas de investigação como cadernos de campo, construção de cartas celestes indígenas e desenhos feitos com giz sobre cartolina preta. Conseguimos chegar a um bom conjunto de resultados, colocando em prática essas técnicas de reconhecimento do céu em conjunto com depoimentos de conhecedores indígenas, como veremos a seguir. Em outras palavras, aplicar uma técnica só não parece eficiente, quando se pensa em descrição de constelações.

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Foto do autor (2006)

Fig.3 Representação da Constelação da Jararaca em papel pardo  

Depois da etapa de expectativas frustradas com as cartas celestes em papel, resolvemos testar uma estratégia que consistia em narrar alguns mitos das constelações ocidentais, mostrando na sala de aula imagens de representações clássicas de constelações ocidentais. Paralelamente, pedimos que eles representassem as nossas e as constelações deles.

Aos poucos as imagens mais comuns foram aparecendo. Foi assim que surgiu a cabeça da jararaca, corpo desse animal, bolsa de ovos e rabo. A imagem da jararaca no céu também foi apontada pelos conhecedores e anciãos, desde o início da pesquisa de campo.

Num primeiro momento, deixamos de lado a pretensão de indicar a qual região do céu correspondia essa ou aquela parte da constelação. Simplesmente, eles representaram como quiseram. O resultado dessa primeira representação parecia ser justamente a constelação mais importante para eles. Esse mês era o de novembro de 2015. A constelação que marca o início do ano Tukáno está justamente perto do Horizonte do Oeste, após o ocaso do Sol, que é a constelação da jararaca (aña). Tecnicamente poderíamos considerar um “por helíaco vespertino”, mas devido à altura das copas das árvores, podemos dizer que parte da constelação já havia desaparecido ao anoitecer. O ocaso helíaco, nesse caso, é uma aproximação.

As constelações descritas por eles estavam numa sequência, mas ainda era bastante difícil encontrar as estrelas que correspondiam aos desenhos que eles tinham feito no papel pardo ou craft, como vimos na imagem anterior. Precisávamos entender duas coisas distintas: onde estariam aquelas constelações representadas no papel pardo? Estariam em qual sequência e como, bem como quando poderiam ser vistas no céu? Havia que se fazerem mais observações concretas do céu noturno e paralelamente refinar os processos de determinação da posição das constelações no céu. Nas descrições orais e apontamentos do céu noturno usando lanternas de foco bem definido e lasers verdes (mais potentes), entre os participantes da pesquisa, apareciam descrições de várias constelações que não coincidiam entre todos os conhecedores do céu. Há várias possíveis razões para isso como disputas de narrativas ou referências que não são as mesmas, necessariamente para cada conhecedor. O uso de várias estratégias de investigação ajuda a refinarmos esse tipo de busca. Em compensação, havia muitas das constelações que eram comuns nas narrativas de vários deles. Dava para trabalhar a partir de cada constelação conhecida e apontada por quase todos, assim que anoitecia. De Aña (“a jararaca”) se podia encontrar a segunda constelação de uma sequência, que sofreria ocaso, depois de Aña. Assim, surgiu na pesquisa a pequena constelação de Pamõ (“o tatu”), entre as nossas constelações ocidentais do Golfinho e da Águia. Depois de cada parte da constelação da jararaca passar pelo ocaso helíaco vespertino, era a “vez” da constelação do Tatú. A constelação da jararaca é dividida em cabeça, glândula de veneno, corpo, saco de ovos e rabo, de um modo geral. Cada parte dessa constelação, ao cabo de alguns dias, vai desaparecendo no horizonte Oeste, praticamente com o ocaso do Sol. Depois que o rabo da jararaca desaparece é a vez do Tatú que é dividido em osso do tatú e corpo. Trata-se uma constelação menor, com menos tempo de ocaso helíaco vespertino. Por que essas constelações têm durações diferentes de ocaso? Porque esses eventos marcam alterações ambientais que geralmente são associadas com períodos de elevação e descida do nível dos rios, com variações ambientais concomitantes como já indicamos em outros de nossos trabalhos. Não é a passagem do Sol ou da Lua por alguma constelação que funciona como indicador da passagem do tempo, mas o intervalo de tempo de cada parte de uma constelação passando por seu ocaso helíaco vespertino e os fenômenos naturais locais, associados a esses acontecimentos.

Ocorreram, a partir desse ponto da pesquisa, as primeiras observações coletivas e individuais (dos conhecedores, conosco) em relação ao céu. Aquelas que ocorriam individualmente resultavam do agendamento de encontros com conhecedores indígenas, no início da noite, para localização das principais constelações no céu. Em particular aquelas que estavam mais para os lados do ocaso. As constelações são importantes em cada parte do céu, mas aquelas que são vistas se pondo, logo após o ocaso do Sol, têm importância central. É dessa sequência que estamos falando aqui, todas as vezes que estivermos tratando da observação de constelações no início da noite.

Na Amazônia, esses encontros podem durar um par de horas ou muito pouco, nesse caso, por causa das chuvas ou dos insetos. Todas as vezes que um projetor ou mesmo uma lanterna são acesos, têm-se sensação de que foi enviado um convite para todos os insetos noturnos participarem do evento. E eles levam o “convite” a sério...

Parecia claro que era necessário utilizar estratégias que permitissem a observação do céu real ou da Natureza, com os conhecedores indígenas, isto é, receber informações que viessem daqueles que cultivavam práticas e conhecimentos que envolviam as constelações. Em termos de estratégia metodológica de pesquisa, dividimos a investigação em dois grupos. O primeiro contava com observações individuais no início das noites, com alguns conhecedores separados dos outros, em datas e ou noites e épocas diferentes. Essas observações eram seguidas nos dias seguintes de entrevistas não estruturadas. Nas observações individuais, procedíamos a perguntas abertas enquanto eles nos mostravam as constelações ou quaisquer outras curiosidades sobre o céu. Poderia ser uma história, uma narrativa mítica ou uma lembrança pessoal, dentre outras. Geralmente as narrativas eram interrompidas pela chegada de outros observadores e quando isso acontecia, não interrompíamos os trabalhos. Nos anos de 2005 e 2006, utilizávamos uma lanterna de foco bastante forte que servia como apontador para o céu. Daí surgia também os insetos que apareciam em hordas. Os informantes gostavam de segurar a lanterna e apontar longamente para o céu, como se quisessem desenhar cada constelação. Em 2007, levamos um laser verde, amplamente utilizado nas observações de contemplação do céu entre os aficionados da astronomia. Nesse ano, o número de depoimentos aumentou bastante, mas a maioria das pessoas repetia o que outros já tinham dito e descobrimos que segurar e apontar com o laser parecia ser mais interessante para eles do que propriamente mostrar o quanto cada um conhecia do céu. O importante nessa estratégia era repetir com os mesmos sujeitos de pesquisa a observação do céu e o reconhecimento das constelações a partir de locais de observação diferentes. Em alguns casos mais raros, a mesma pessoa mostrava determinada constelação em três ou quatro posições distintas, em horários diversos. Se não havia contradições severas entre os apontamentos, essas observações ganhavam mais relevância. Na maior parte das vezes, as pessoas que passavam por esse processo também coincidiam entre si, em relação às constelações.

O segundo tipo de observação se dava de maneira coletiva, em que os conhecedores passavam conhecimento para os outros de maneira informal. Agendávamos as observações e acompanhávamos alguns deles, para depois comparar os resultados com as informações conseguidas individualmente nas entrevistas e observações do céu. Esses momentos constituíam importantes acontecimentos em que eram encontradas pessoas de toda a comunidade e aqueles que enxergavam as constelações (sabedores, conhecedores, astrônomos indígenas e assim por diante, como eram chamados) compartilhavam com os outros que ainda sabiam pouco sobre o céu.

Essas observações coletivas, desde o início, contaram com uma estratégia de pesquisa que era a projeção do céu a partir de um software que simulasse o aspecto celeste naquela latitude, o que me permitia entender a quais estrelas eles estavam se referindo no céu. Esse tipo de programa chama-se popularmente de planetário porque é um simulador do céu. Depois do apontamento com a lanterna ou com o laser verde, as projeções numa tela branca, do lado de fora da maloca, possibilitavam comparações entre as formas que eram vistas no céu e aquelas (em escala) que eram vistas na projeção. Nem todos entendiam o que estava acontecendo com as projeções, mas os que entendiam realmente mostravam, tanto no céu quanto na tela, as constelações que estavam sendo observadas. Uma estratégia como essa se mostrou metodologicamente muito útil para nós. Para colocar uma estratégia dessa em prática, o pesquisador precisa conhecer bem o céu e acompanhar individualmente e coletivamente a descrição de cada constelação.

Uma importante estratégia de pesquisa desenvolvida nas observações coletivas e individuais é que perguntávamos mais de uma vez em ocasiões diferentes para o mesmo conhecedor as posições das constelações. Isso acontecia em noites e horários diferentes para podermos saber se as imagens construídas coincidiam com aquelas que tinham sido apontadas em noites anteriores.

As entrevistas individuais ocorreram em vários momentos diferentes. Na maior parte do tempo, foram formais, com horário e local determinado. Sempre começávamos com questões amplas e gerais, sem relação direta com o tema. Falávamos sobre as origens dos nomes das pessoas, das plantas e rios. Quantos dias de rabeta para se chegar a tal lugar ou outro, de lembranças da infância, da presença dos padres salesianos e da escola de Taracuá (Amazonas). Somente depois de conversarmos sobre alguns temas mais gerais que conversávamos sobre as constelações. Sempre partimos do conhecimento do entrevistado de maneira espontânea, sem induzi-lo. A grande maioria começava pela constelação de Aña (“jararaca”). Essa constelação, que compreende grande parte da constelação ocidental do escorpião, parte do sagitário e coroa austral, e em alguns casos, é praticamente unanimidade sua identificação entre os índios dessa região. Ela não é apenas uma constelação importante porque é fácil de ser reconhecida, mas porque inicia um novo ciclo anual para os Tukáno. Isso acontece em meados do nosso mês de novembro, quando a cabeça da constelação da jararaca se aproxima do horizonte Oeste perto do por do sol. Desse modo, são marcados os principais eventos do calendário dos Tukáno e de todos os outros povos dessa região como Desána, Tuyúka, Tapirapé e demais grupos que, algumas vezes usam outras constelações para iniciar os seus ciclos anuais. As constelações têm a ver com a história desses povos e suas narrativas, além de representarem ciclos naturais de floração, frutificação, trabalho na terra, plantio, colheita, coleta, pesca etc. (Cardoso, 2017; 2012).

Na segunda etapa de oficinas, que ocorreu em 2006, já havia passado tempo suficiente para que o céu, logo após o ocaso do Sol, já tivesse se modificado. Era possível ainda ver o final da constelação de Aña desaparecendo no horizonte e depois dela, a constelação de Pamõ, em português, tatu. Nessa segunda etapa da pesquisa, nós tínhamos levado cadernos de desenho para desenvolver com os estudantes os cadernos de observação do céu ou cadernos de registros das constelações. Os conhecedores já nos conheciam e foi mais fácil agendarmos observações individuais. As constelações de Mhuã (“peixe jacundá”), Darsiew (“camarão”), Yaí (“onça’), Ñhorkoatero (“conjunto de estrelas – Plêiades”), Waikhasa (“moquém – Hyades”), Sioyahpu (“enxó”) e Yhé (“garça”) foram sendo descritas uma a uma, numa faixa do céu que não se afastava muito da linha da cumeeira da maloca, isto é, da projeção do Equador Celeste sobre a maloca como vemos na imagem seguinte[7].

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Figura 4 Maloca com orientação Leste-Oeste. No detalhe o movimento diário do Sol nos equinócios e solstícios, marcando sua passagem pelo Equador Celeste, cujo plano passa pela cumeeira da maloca 

Essas observações individuais facilitaram os reconhecimentos coletivos e, numa manhã de trabalho, quando chegamos à escola que funcionava na casa comunal, também conhecida como maloca, tivemos uma visão muito interessante e reveladora. Alguns alunos tinham colocado desenhos das constelações pendurados no teto da maloca, internamente. Eu já havia feito algumas medidas de orientação das malocas Tukáno e Tuyúka e as portas dessa construção de teto em duas águas mostravam-se praticamente alinhadas com os pontos cardeais Leste e Oeste (Cardoso, 2016). Considerando que essa comunidade se encontra praticamente no Equador Terrestre, o Equador Celeste passa pela cumeeira da construção e assim, o teto da maloca ou cada uma de suas divisões ou águas funciona como uma projeção de hemisfério celeste. Tendo a cumeeira como linha separadora do Equador Celeste, as constelações poderiam ser separadas entre aquelas que ficavam no hemisfério celeste norte e sul, de maneira correspondente. Isso deu origem às cartas celestes Tukáno, que produzimos com os estudantes, juntamente com os mais experientes da comunidade.

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Fonte: Autor

Figura 5 Carta Celeste (escola Yupuri) 

Na próxima etapa da pesquisa, já tínhamos as constelações descritas e sabíamos as localizações das mesmas. Precisávamos entender melhor suas localizações e variações para cada grupo de estudantes que vinham de igarapés diferentes. Foi a hora de introduzirmos os cadernos de desenho. Passamos a criar novas estratégias como as de cadernos de campo, já descritas detalhadamente em outros trabalhos (Cardoso, 2017). Os cadernos de campo seguiram alguns acordos que foram combinados com os estudantes da escola Yupuri. O primeiro deles foi o de observar o céu da mesma posição, noite após noite, para garantirmos a visada do mesmo horizonte. Anotar hora da observação, presença da Lua, objetos brilhantes além das estrelas e manter uma proporção entre as distâncias das estrelas no céu e aquelas que estavam sendo representadas foi outro critério combinado. Usamos os dedos das mãos, e as próprias mãos para medir ângulos no céu. Apesar da imprecisão, ao esticarmos a mão e fecharmos um dos olhos, podemos ver o ângulo formado com vértice em nossos olhos e distância angular da espessura do dedo, por exemplo.

Esse trabalho começou durante as oficinas, mas prosperou com os estudantes em suas comunidades de origem. Na estrutura da escola Yupuri, os alunos ficavam 15 dias em aula e no restante do mês voltavam para suas comunidades. Nas suas comunidades, tinham a oportunidade de trocar com os mais velhos e aprender mais sobre as constelações e seus ocasos helíacos vespertinos aproximados. Como já dissemos antes, nesse texto, as copas das árvores criam um horizonte observacional distinto daquele, da astronomia fundamental. Nem todos os velhos de todas as comunidades conseguiam sair e se deslocar aonde a oficina estava acontecendo. Mesmo usando os cadernos de campo, ainda restava um tipo de atividade importante que serviria para descrever as constelações no céu e, ao mesmo tempo, ser mais uma estratégia de descrição das constelações no céu.

Todos os trabalhos com os índios Tukáno foram registrados a partir de cadernos de campo ou de pesquisa, juntamente com gravações em áudio, produção de cadernos de campo e pesquisa pelos estudantes, fotografias e registros de entrevistas com os velhos da comunidade que narravam as origens das constelações.

Resumimos no quadro a seguir (Tabela 1) as ações que foram realizadas com os seus principais resultados correspondentes. Iniciamos os trabalhos usando cartas celestes com representações de constelações fotocopiadas em papel. Havia cartas celestes com linhas entre as estrelas marcando as constelações ocidentais e cartas celestes apenas com as estrelas em suas posições relativas. Levamos essas cartas para as oficinas e distribuímos entre os participantes. Algumas representações de constelações apareceram, mas, em pouco tempo percebemos que elas eram fruto de livre associação entre concepções dos participantes e a disposição dos pontos que representavam as estrelas, nas cartas celestes. Os participantes não podiam representar as constelações sem suas referências de contemplação do céu, o que já era esperado. A transposição certamente não ocorreria de maneira simples, sem contato observacional com o céu. Os resultados foram bastante conflitantes quando comparados às outras metodologias.

Tabela 1 Quadro com os diferentes tipos de investigações para as constelações 

Qual a importância das constelações para os povos indígenas

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Outra metodologia foi a representação de constelações a partir de narrativas que foram iniciadas com as constelações ocidentais. Ao longo das oficinas e depois das narrativas de constelações ocidentais, os participantes passaram a contar alguns de seus mitos celestes e, em particular, algumas de suas constelações. Essa técnica narrativa levou os participantes a representarem as constelações em folhas de papel manilha ou craft. Apesar de ser o início de um trabalho com bons resultados, não havia referência de localização dessas constelações no céu. As outras metodologias contaram com observação do céu, uso de cadernos de campo, criação de cartas celestes locais – usando a cumeeira da maloca como referência e reunião dos dados para produção de uma representação circular dinâmicas de calendário.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Consideramos que os resultados desta pesquisa ocorreram a partir da possibilidade de podermos empregar e comparar os resultados parciais de diferentes estratégias e metodologias. Nenhuma das estratégias individualmente realizadas se mostrou suficiente para se chegarmos às conclusões da pesquisa. E mesmo assim, a pesquisa não resulta em algo definitivo visto que estamos descrevendo uma realidade específica, de uma comunidade que se encontra na região média do rio Tiquié. Por outro lado devemos considerar que muito do que foi desenvolvido ocorreu em oficinas frequentadas por várias etnias dessa região. Devemos levar em conta que, principalmente os Tuyúka estavam em contato com um grupo Tukáno da região de Valpés, na Colômbia e que, parte do que foi discutido e construído nas oficinas, resultou da soma desses conhecimentos e de outros, dos anciãos de cada igarapé, principalmente com os cadernos de campo ou de desenho dos estudantes. Os resultados do campo possibilitaram comparações entre as entrevistas individuais e coletivas, considerando os cadernos de campo e as cartas celestes. Os resultados abriram a possibilidade para mais comparações e com elas foi possível iniciar a construção daquilo que foi definido como um calendário circular dinâmico, que não detalharemos neste trabalho por ele estar presente em outros artigos, já publicados (Cardoso, 2016). Nosso foco aqui foi a descrição das estratégias metodológicas que possibilitaram chegar a uma lista de constelações em sequência. Essas constelações marcam, em seus ocasos helíacos vespertinos, eventos do mundo natural que foram apropriados de maneira complexa pelas sociedades indígenas do Alto Rio Negro amazônico. Apesar de utilizarmos as referências de constelações do povo Tukano, especificamente na pesquisa do grupo que habita o médio rio Tiquié.

Quando comparados com as fontes históricas (Lévi-Strauss, 2004; Koch-Grünberg, 1969; Silva, 1962) os resultados não permitem concluir definitivamente que as constelações descritas por esses etnógrafos e pesquisadores correspondam àquelas que descrevemos durante o período das oficinas de astronomia. No entanto, podemos considerar que existam variantes dessas constelações em toda essa região. Trabalhos que empregam essas e outras metodologias serão importantes para continuarmos a realizar esse levantamento e entendermos a construção coletiva de cartas celestes e descrições da passagem do tempo, associadas às relações céu-terra e às construções dessas paisagens complexas.

CONSIDERAÇÕES

Qual a real importância das constelações para as populações indígenas do Alto Rio Negro? Para os índios Tukáno, muitos dos quais se consideram Yepá Mahsã (“Gente do Universo”), parece que o céu estrelado tem grande importância. As observações do céu e reconhecimento de constelações e asterismos por parte dos pesquisadores em Astronomia nas Culturas, que realizam suas pesquisas com as populações amazônicas, ainda pode ser considerado um passo importante na constituição nas relações céu-terra desses povos ou ainda nas percepções a respeito do universo, ditas aqui, cosmopercepções, que os cercam. Estabelecer comparações com fontes históricas e testar estratégias metodológicas para pesquisa dessa natureza também se torna algo necessário, quando isso é possível. Nem sempre existem fontes históricas disponíveis e quando isso acontece a leitura deve ser feita com estratégias metodológicas da História da Ciência. Esse tipo de trabalho aponta para equipes multidisciplinares ou para trabalhos interdisciplinares, conforme o caso. Uma iniciativa dessa não invalida ou diminui as metodologias de campo em Antropologia ou, mais especificamente da Etnografia. Dado que o conhecimento astronômico tem suas características ou mesmo especificidades, consideramos que outras formas de investigação, levando em conta conhecimentos de Astronomia, podem aportar instrumental metodológico de pesquisa nesse campo de investigação eminentemente antropológico. Os cadernos de campo, as conversas individuais e questionários não estruturados, os desenhos em papel manilha e cartão preto com giz, são apenas algumas estratégias que se somam em circunstâncias determinadas, quando se pode aplicá-las. Nem sempre isso é possível e algumas vezes, talvez nem seja desejável do ponto de vista estratégico.

Neste trabalho, sugerimos algum tipo de planejamento para a pesquisa, fazendo uso de estratégias metodológicas diferentes e articuladas, como entrevistas não estruturadas, observações com conhecedores e anciãos, individualmente e juntamente com outras pessoas da comunidade, trabalhar a técnica de cadernos de campo para pesquisar as constelações a partir da observação dos participantes da pesquisa, assim como o uso de desenhos em suportes diversos. Nesse caso, contribuímos com o desenvolvimento de parte do trabalho em ambiente escolar indígena. Desenvolver cartas celestes com o céu indígena permite que comparações possam ser realizadas entre elas e as constelações ocidentais. No caso específico das cartas celestes dos Tukáno, essa comparação pode ser feita porque puderam ser obtidas cartas em projeção inspirada na projeção de Mercator[8]. De fato, não haveria qualquer necessidade de que fosse assim, mas a coincidência de posição geográfica da comunidade assim o permite. Com isso não se deseja diminuir a importância das constelações indígenas ou submetê-las a uma espécie de condição subalterna de representação. Deseja-se com isso que uma área de diálogo possa ser estabelecida, sem que necessariamente estejamos dentro do domínio desse ou daquele campo simbólico de representações. A ideia é que estudantes de escolas indígenas e não indígenas possam se valer desses conhecimentos para poder compará-los e deles tirar a melhor situação possível de aprendizagem e respeito, bem como valorização da cultura do outro. Assim, esse tipo de trabalho também tem a ver com os saberes escolares e escolarizados, dentro de uma perspectiva respeitosa e descolonial (Santos, 2019).

Cada curva de rio tem um céu diferente e torna-se cada vez mais importante valorizar o diálogo entre conhecimentos, sem que um deles precise desaparecer ou ser subalternizado em relação a outro. A Astronomia nas Culturas e seus processos de constituir valores éticos, estéticos e políticos tem essa contribuição vital nesse diálogo entre as heranças encontradas nas variadas sociedades atuais.