Quando se pode dizer que duas raças passam a construir espécies diferentes?

Ovo faz mal ou bem? É preferível utilizar manteiga ou margarina? o parto natural é sempre melhor do que um parto cesáreo? Para tantas questões podemos responder sim, não, talvez ou depende! A Ciência é uma atividade humana, cuja produção é vinculada diretamente à existência de questões e incertezas que temos. Neste texto discutiremos alguns aspectos relacionados à história e filosofia da Ciência, que se estenderão da classificação dos seres vivos até as diferentes maneiras como nós, seres humanos, fomos e continuamos sendo estudados pela ciência.

Segundo o professor de história e filosofia da ciência, Alan Chalmers (2009), a alta estima pelas atividades científicas está presente na vida cotidiana, na mídia, no meio acadêmico e também no mundo escolar. Quando dizemos que um saber é científico, estamos dizendo que ele foi produzido a partir de certos critérios para estabelecer respostas para determinadas questões; por vezes, denominamos esta diversidade de procedimentos de “método científico”, algo inerente ao “fazer ciência” ou à atividade do cientista propriamente dito. Contudo, na perspectiva da história e filosofia da ciência, Chalmers (2009) afirma que “não existe método que possibilite às teorias científicas serem provadas verdadeiras ou mesmo provavelmente verdadeiras”. Esta afirmação pode ser corroborada ao percebemos que a ciência muda ou que, em muitos casos, uma teoria científica é modificada.

O movimento para definir se um organismo é pertencente à determinada categoria ou não, por exemplo, remete às mudanças nas formas de se produzir conhecimento científico. O ato de classificar ou agrupar objetos, algo considerado importante na compreensão da produção de conhecimento científico, particularmente em relação aos seres vivos, é comumente resgatado nas Ciências naturais, a partir da construção do Sistema Natural, proposto por Carlos Lineu em 1735.

Lineu organizou o mundo natural em três reinos: Animal, Vegetal e Mineral. Mais tarde, em 1758, Lineu estabeleceu regras para dar nome aos seres vivos. Muitas destas regras são utilizadas até hoje. 

Você sabia, por exemplo, que diversas palavras utilizadas em nosso cotidiano, tais como animais, vegetais, minerais e especificamente outros termos, como insetos, vertebrados, invertebrados ou mesmo flores foram mais popularizados no meio científico na segunda metade do século XVIII?  E isso aconteceu, sobretudo, em função das obras de Lineu. Mas as formas de classificar seres vivos são anteriores e estão presentes em diversos locais.

Quando se pode dizer que duas raças passam a construir espécies diferentes?

Ilustrações de Insetos na obra de Linné do séc. XVIII.

O filósofo grego Aristóteles (384  a.C.  –  322  a.C.) é considerado, no ocidente, o primeiro  propositor de métodos para investigar os seres vivos, separando e classificando animais e plantas.  Segundo a Doutora em Filosofia Anamaria Feijó (2005), os escritos relacionados à biologia, e particularmente à zoologia, correspondem a mais de uma quinta parte da obra de Aristóteles,  envolvendo trabalhos sobre reprodução, fisiologia e classificação dos seres vivos. Uma classificação utilizada por Aristóteles considerava o ambiente percorrido pelos animais, que poderia ser a terra, a água ou o ar. Classificar ou agrupar animais, contudo, não é uma atividade restrita a notórios filósofos e naturalistas. O Antropólogo brasileiro Julio Melatti publicou, em 1975, no Informativo FUNAI, um artigo intitulado “Sistemas de classificação de animais e plantas pelos índios”8 no qual faz referência aos sistemas de classificação propostos  por  alguns  grupos  de índios  brasileiros  que  utilizam  critérios  (forma  e hábito de vida) que podem se assemelhar aos observados na denominada ciência moderna e, independente disso, que sugerem um bom atendimento à comunidade que  deles  lança  mão,  sobretudo  quando  se  deseja  explicar  a diversidade  de  seres vivos observados.

Nos espaços formais de educação, particularmente no ensino de Ciências, referimo-nos comumente a classificação dos seres vivos em categorias taxonômicas, que são níveis hierárquicos nos quais os seres vivos são classificados/agrupa-dos em uma série ascendente. As principais categorias são espécie, gênero, família, ordem, classe, filo e reino.

Quando se pode dizer que duas raças passam a construir espécies diferentes?

 Categorias taxonômicas. Arquivo dos Autores.

Da espécie ao reino, aumenta a quantidade de organismos em cada nível, na mesma medida em que a similaridade biológica entre eles diminui. Por exemplo, no Reino Animal existem muitos organismos, mas eles podem ser muito diferentes – aves e peixes são animais, porém, possuem forma e fisiologia bem distintas, ao passo que na categoria espécie apenas um tipo de organismo constitui o grupo: por exemplo, todas as galinhas e galos pertencem à espécie Gallus gallus e devem ter alto grau de similaridade biológica, inclusive, que possibilite sua reprodução.

Esse assunto pode parecer não ter relação com os anos inicias de escolaridade, mas saibamos que quando falamos de animais vertebrados ou invertebrados e plantas com flores ou sem flores, estamos nos referindo, em certa medida, aos critérios propostos por Lineu para agrupar e organizar os seres vivos, desde a categoria mais geral, que seria o reino (animal, vegetal...) até a categoria mais básica, que seria a de espécie. E por falar nisso, uma forma de se iniciar trabalhos com classificação dos seres vivos nos anos iniciais é apresentar aos alunos figuras de animais ou plantas que podem ser recortadas de revistas, jornais etc. pedindo-lhes que organizem as figuras estabelecendo seus próprios critérios. Em geral, não veremos nossos alunos agrupando “répteis”, “mamíferos” ou “dicotiledôneas”, mas, provavelmente, critérios baseados na forma, no habitat ou comportamento podem surgir na sala de aula e isso não será muito diferente dos procedimentos que muitos cientistas adotaram ao longo dos anos para classificar os seres vivos. Continuando nossa conversa sobre critérios, você sabia que o termo espécie, assim como muitos outros nas Ciências, tais quais, energia, genes, átomo etc. é um conceito importante, na mesma medida em que não é um conceito bem definido na comunidade científica?

Segundo o biólogo Carl Zimmer (2011), existe uma estimativa de que circulam (ou já foram publicados) pelo menos 26 conceitos diferentes de espécie. A multiplicidade das definições de espécie, contudo, não inviabiliza a produtividade científica, isto é, não impediu ou impede que haja trabalhos revisando, descrevendo e (re)apresentando espécies e novas espécies. os diferentes conceitos de espécies engendram diferentes perspectivas e maneiras de se eleger critérios para tornar um conhecimento científico. Em alguns casos, estes critérios podem ser compatíveis e em outros díspares, sobretudo nos espaços acadêmicos dirigidos à discussão do tema.

Pensar nos critérios utilizados para considerar nossa condição humana na biologia é um bom exemplo para vermos mudanças na ciência, por exemplo: os seres humanos pertencem à espécie Homo sapiens e em outras definições biológicas, nós, seres humanos, somos animais, mamíferos, primatas, da família hominídea e do gênero Homo. Para cada classificação são considerados critérios específicos, por exemplo, por termos glândulas mamárias somos mamíferos; primatas são caracterizados por ter um cérebro relativamente grande, face achatada, privilegiando a visão ao invés do olfato, unhas nas mãos e pés... além de outras características. A família hominídea abriga os maiores primatas e o gênero Homo os que possuem os maiores tamanhos de cérebro, além do bipedismo (capacidade de caminhar de forma permanente sobre os membros posteriores). Nessa perspectiva, podemos dizer todos os seres humanos são biologicamente iguais, mas nem sempre foi assim...

Nas Ciências Naturais, Carlos Lineu se apropriou do termo raça para classificar espécies vegetais, transformando-o posteriormente em categoria taxonômica, que se estendeu ao estudo dos animais (zoologia) e consequentemente aos seres humanos. Neste caso, as classificações de Lineu possuíam viés hierárquico claro e expresso, sobretudo, na forma como eram governados os integrantes de cada raça e em suas características psíquicas ou de “temperamento” (MUNANGA, 2003).

Africanos eram considerados inferiores aos Europeus e, para isso, critérios como a forma de se vestir (características culturais) ou formato do crânio (características biológicas) se fundiam, possibilitando um olhar demasiadamente distinto para os grupos humanos. os Europeus eram comumente considerados pelos naturalistas como pertencentes a uma categoria supostamente mais evoluída e capaz de dirigir o destino de outras populações humanas. A partir dessas ideias, práticas de segregação, descriminação, racismo e até genocídios foram ratificados por muitos discursos científicos da época.

O professor da Universidade de São Paulo (USP), Kabengele Munanga (2003), afirma que as diferenças raciais concebidas na vertente biológica começaram a mudar a partir dos anos 1970, graças aos progressos realizados na genética humana, na bioquímica, etc., e que fizeram desacreditar na realidade científica da raça. Contudo, pode se discordar que tais progressos tenham colocado o ideário científico racial em definitiva suspeição. Para os biólogos Nélio bizzo (1995) e Guido barbujani (2007), o discurso de que há grandes diferenças biológicas entre seres humanos esteve bastante ativo nas décadas seguintes.

Para o filósofo francês Michel Foucault (2005), a ideologia do racismo só pôde ser formulada a partir da aceitação e convencimento da existência de “pureza” entre raças, antes concebidas na criação divina e acolhidas na religião e depois no movimento biológico moderno, precisamente no ambiente que fez surgir a principal obra do naturalista inglês Charles Darwin – A Origem das Espécies9, em 1859.

Embora Darwin não tenha se detido muito nas explicações sobre raças humanas em A Origem das Espécies, fez isso em 1871, em A Origem do Homem, obra que evidencia, coerentemente com os pressupostos da seleção natural, a existência de raças humanas e de gradientes evolutivos entre elas. Tais proposições sustentaram o racismo científico e possibilitaram, no cenário mundial, políticas norteadas pela dominação racial, que atingiram seu auge na primeira década do século XX.

Em termos mundiais, o movimento de crítica às políticas raciais surge após a II Guerra Mundial, nas conferências promovidas pela organização das Nações Unidas (oNU), que passam a estabelecer e defender que todos os seres humanos são iguais e devem ter os mesmos direitos independentemente de suas características físicas (RAYo, 2004). Vale ressaltar que os dizeres da oNU sobre a inexistência de raças humanas ocorrem neste período, mais por necessidade política do que por refutação científica. Assim, as diferenças entre as raças humanas, por algum tempo, não foram contestadas com base em estudos realizados por cientistas vinculados às Ciências biológicas, aliás, podemos considerar que isso só ocorrerá no final do século XX.


9 A Origem das Espécies é o livro que propõe e fundamenta a Teoria Evolutiva por meio da Seleção Natural, isto é, as espécies evoluem a partir da seleção de características biológicas favoráveis em relação ao ambiente em que vivem.

Stephen Jay Gould (2004) afirma que a história dos pareceres ocidentais sobre raça é um relato de negações às evidências das semelhanças entre os seres humanos. Embora contemporaneamente a divisão dos grupos humanos em raças não encontre base  científica, observamos a presença do termo para marcar diferenças entre as pessoas com a mesma força/impacto que teve décadas atrás.Quando uma criança nasce em um hospital no brasil, emite-se uma Declaração de Nascido Vivo (DNV). Esta declaração traz informações sobre dia e hora do nascimento, peso ao nascer...  e a “Raça/Cor da Mãe” que deve ser obrigatoriamente assinalada em uma das cinco alternativas: 1-Branca; 2-Preta; 3-Amarela; 4-Parda; 5-Indígena.

Quando se pode dizer que duas raças passam a construir espécies diferentes?

Alguns itens para preenchimento da Declaração de Nascido Vivo. Arquivo dos Autores.

A raça está associada à cor da pele já em nossos registros de nascimento; é uma maneira de caracterizar/descrever o corpo humano e que estará presente em outras etapas de nossa vida, como em questionários relacionados aos estudos populacionais ou em cadastros que buscam delimitar perfis sociais.

Conceber a cor da pele como “apenas” uma característica física não deveria trazer maiores problemas. A questão preocupante é quando se associa a cor da pele a outras características, inclusive comportamentais como fez Lineu. Neste caso, existe o perigo eminente de se associar aspectos físicos e psíquicos, estabelecendo gradientes entre seres humanos e predizendo suas aptidões e seu futuro no instante em que uma das alternativas é escolhida para descrever aquele corpo que acaba de nascer. Você acha que isso é racismo? Um significado relativamente comum para o termo racismo é concebê-lo como sistema que afirma a superioridade de um grupo racial em relação aos outros, preconizando, em particular, o isolamento destes no interior de um país (segregação racial) ou até visando à eliminação de outros grupos. Para entender melhor essas diferenças, podemos nos apropriar de alguns dados disponibilizados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em relatório divulgado no ano de 2011 e que apontava o crescimento da parcela de negros e pardos no total de desempregados em Território Nacional.

No ano de 2006, 54,1% do total de desempregados eram negros e pardos e em 1995, os negros e pardos correspondiam a 48,6% desse total. Em relação aos que estão empregados, as diferenças também são claramente perceptíveis: em 2006, o rendimento médio mensal real dos homens brancos equivalia a R$ 1.164,00 valor 56,3% superior à remuneração obtida pelas mulheres brancas (R$ 744,71), 98,5% superior à conseguida pelos homens negros e pardos (R$ 586,26) e 200% à obtida pelas mulheres negras e pardas. Podemos discutir se vivemos em um País racista ou não, mas não podemos deixar de constatar que existem desigualdades raciais no brasil e que o primeiro critério para marcar as diferenças continua sendo a cor da pele.

Segundo Pereira (2002), há uma necessidade de se fixar a identidade racial como construção histórica e não dado biológico. Nesta perspectiva, o que define uma raça são as interpretações socioculturais dadas às características fenotípicas (características relacionadas aos aspectos físicos de nossos corpos como formato do nariz e lábios ou cor da pele, cabelo e olhos, etc.). Em nossas salas de aula, desde os primeiros anos de escolaridade, somos convidados a “reconhecer” o corpo humano ou um determinado padrão de corpo humano que muitas vezes ocupa um “lugar” previamente atribuído pela “sociedade”. Não seria necessário discutir aspectos de nossos corpos para além de nossas tradicionais (re)apresentações, tais quais, “cabeça”; “tronco” e “membros”? Existem preconceito e descriminação racial no brasil? Existem raças de fato?

Nossos alunos sempre têm perguntas sobre nosso corpo, muitas das quais se referem ao que observam e comparam entre si – Por que João é mais alto do que o Pedro? Por que Sofia tem os olhos mais claros do que Fernanda? As crianças aprendem muito sobre o corpo olhando para si e para seus colegas e observando situações cotidianas e relativamente simples, como lágrimas após uma queda ou alguma dor abdominal durante uma sessão de gargalhadas. É fala contumaz nas escolas que os estudantes formulam hipóteses ou explicações para o que observam em seus (e em outros) corpos. Assim, podemos ser todos iguais por causa da cor vermelha de nosso sangue ou podemos ser muito diferentes em função da cor de nossas peles. Diante de tais situações, será papel do professor ajudá-los a construir explicações factíveis e próximas ao escopo científico sobre os diversos temas relacionados ao corpo humano. E por falar nisso, você sabia que discussões sobre as relações etnorraciais são recomendadas no primeiro ciclo do Ensino Fundamental desde 2012?

O Ministério da Educação (MEC), no documento intitulado “Elementos Conceituais e Metodológicos para Definição dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento do Ciclo de Alfabetização (1.o, 2.o e 3.o anos) do Ensino Fundamental”, estabelece áreas e eixos sobre temas como raça, racismo ou discussões consideradas de cunho étnico. Na área de Ciências Humanas o eixo “Identidade e Diversidade” estabelece a necessidade de introduzir e aprofundar a construção da identidade como sujeito individual e coletivo; o desenvolvimento da noção de pertencimento, a partir das semelhanças e diferenças dos grupos de convívio de que participa e a necessidade de respeitar as diversidades socioculturais, políticas, etnicorraciais e de gênero que compõem a sociedade atual.

Na perspectiva da área de Ciências Naturais, o ser humano é considerado como produto de sua história e da cultura em que está imerso, especificamente no eixo “Ser Humano e Saúde” recomenda-se que o estudo do corpo humano ultrapasse a abordagem biológica do corpo, voltando-se principalmente para suas formas de expressão, percepção e identidades; com efeito, ainda no Ciclo de Alfabetização, deve se reconhecer e respeitar as diferenças individuais de etnia, sexo, idade e condição social.

A forma deste “reconhecimento” pode ser semelhante à de Lineu, ou pode ser semelhante à estabelecida pela ONU. É provável que seja a escola e o professor que irão proporcionar aos alunos o primeiro contato formal com esses temas e é consenso que tais discussões não ocorram tardiamente entre os cidadãos brasileiros; ainda assim, devemos admitir que nos anos iniciais não se espera que os alunos compreendam todas estas explicações em detalhe, mas é importante que comecem a perceber como as explicações científicas podem ajudar a entender nossas características físicas.

Nos anos iniciais é importante que o corpo seja percebido em totalidade, com funções diversas e desempenhadas por alguns órgãos específicos, além de se relacionar aspectos de seu bom funcionamento aos hábitos saudáveis associados com higiene, alimentação, atividade física e repouso. Discussões relacionadas à etnia, sexo e condição social podem ser introduzidas a partir do convite para se pensar em termos de igualdade e diferença. os corpos femininos são diferentes dos corpos masculinos? Em quais aspectos? Dois corpos femininos são semelhantes em que termos? e diferentes em quais? Discutir o corpo humano não é uma tarefa simples, mas, por ser um tema interessante e curioso, dispensa por vezes estratégias que demandam recursos excepcionais ou materiais didáticos pouco acessíveis – Uma boa conversa sobre corpo humano pode ser suficiente para promover aprendizagem de qualidade! Ainda que uma boa conversa dependa fundamentalmente de um professor que tenha clareza em relação a determinadas questões e que saiba planejar estratégias para essas interações.

Questões simples e frequentes podem incorrer em embaraço ou em erros conceituais na perspectiva científica hegemônica e atual. Um exemplo, é a possibilidade de respostas para uma pergunta como: Professora, por que minha irmã tem a pele mais escura do que a minha? A possibilidade de respostas é vasta, pode se responder “porque sim!” ou dizer que “embora vocês sejam irmãs, a quantidade de melanócitos e melanina em vocês difere”. E agora? Qual meio termo deverá ser encontrado para satisfazer a curiosidade de uma criança? É fato que a cor da pele pode variar e que isto pode ser considerado natural, sem que haja motivo para estranhamentos. Então sim, é diferente. Mas se isto não nos satisfaz, posto que não é uma resposta que engendra explicações, discorrer sobre melanócitos e as variabilidades genéticas observadas na reprodução sexuada provavelmente não será adequado aos anos iniciais.

A cor da pele pode ser explicada a partir da constatação de que esta “cor da pele” difere até em quem consideramos com mesma “cor de pele”. Todos os “brancos” não são “brancos” da mesma forma e nem todos os “negros” são “negros” da mesma forma. Um conceito para se lançar mão, nos anos iniciais, em relação à estas questões é o de diversidade: ninguém é totalmente igual e até gêmeos univitelinos apresentam pequenas diferenças.

Nossas impressões digitais, nosso cabelo, formato do rosto, cor dos olhos, tonalidade da pele, enfim, nosso biotipo (forma biológica) é único e diferente, a cor continua sendo um detalhe. As crianças podem ser convidadas a entender esses biótipos e suas singularidades; alguns podem ter necessidades  específicas  como o uso de óculos ou de uma cadeira de rodas, mas, se isso torna um corpo diferente do outro, não deve em circunstância alguma tornar um ser humano melhor ou pior do  que  outro.  Compreender  a  diferença  entre  os  corpos  também  é  trabalhar  com a  mudança  nestes  corpos  -  quem  não  utiliza  óculos  hoje  pode  começar  a  utilizar em algum tempo e quem não tem uma característica que enseja uma necessidade específica poderá tê-la, temporariamente ou definitivamente. A cor da pele pode ser diferente tanto quanto qualquer outra coisa em nossos corpos!  

Quando se pode dizer que duas raças passam a construir espécies diferentes?

Ilustrações que remetem à diversidade humana já são

encontradas com frequência, e podem ser utilizadas por

nós, professores, para trabalhar na escola.

O ideário científico da primeira metade do século XX não apregoava esta necessidade de nos vermos “diferentes” e “iguais” em um só tempo. A questão da “raça” e das diferenças profundas entre as denominadas “raças” foi uma verdade científica endossada por diferentes teorias e que provavelmente atingiu seu apogeu na Alemanha Nazista. Segundo Cornwell (2003), a Alemanha teve um desenvolvimento científico próspero nas duas primeiras décadas do século XX. Entre 1901 e 1923, muitos cientistas alemães foram agraciados com o Prêmio Nobel: Wilhelm Röntgen pela descoberta dos raios X; Adolf von Bayer por seu trabalho com corantes orgânicos; Ostwald pelo estudo do equilíbrio químico; Max Planck pela descoberta da energia dos quanta; Fritz Haber pela síntese da amônia, dentre outros, incluindo Albert Einstein que foi agraciado com o prêmio em 1921 pela descoberta do efeito fotoelétrico. O fato de a Alemanha ser a “Meca da Ciência” não impediu que algumas décadas depois aquele país se tornasse um dos maiores responsáveis pela imputação de crimes contra a humanidade.

Desenvolvimento científico não é sinônimo de melhoria das condições sociais ou das relações humanas. Para que isso ocorra, é necessário problematizar as nuances relacionadas ao “fazer ciência” e isto inclui a tessitura de condições históricas para que um objeto seja mais estudado do que outro, ou para que uma teoria seja aceita no lugar de outra, além da produção de resultados proporcionada por uma forma específica de fazer ciência. Estudos com microbiologia produziram vacinas e salvaram vidas, mas também deram possibilidade para o desenvolvimento de armas biológicas, energia Nuclear, combustão a gás, clonagem... Toda e qualquer possibilidade científica deve ser socialmente discutida e, para isso, o aprendizado em Ciências deve considerar, além da participação social, a apropriação de conceitos científicos e tecnológicos.

Da mesma forma que este texto está propondo pensar-se a Educação em Ciências a partir de alguns elementos históricos e epistemológicos relacionados à classificação dos seres vivos e de nossos corpos, a Alemanha nazista formou/instruiu professores para que trabalhassem com os jovens a ideia de que havia grande diferença entre os grupos humanos, diferenças tão grandes que seria legítimo pensar que alguns grupos poderiam de fato ser considerados como “não humanos”. o Holocausto da 2.o Guerra Mundial foi possibilitado, dentre outros fatores, por uma atmosfera constituída por práticas educativas que estabeleciam a superioridade de uma raça em detrimento de outros grupos populacionais.

Atualmente, não se conce-be a existência de diferenças relevantes entre os grupos hu-manos, pelo menos, do ponto de vista biológico. Isto não é “apenas” um discurso “politica-mente correto”; existem pesqui-sas atuais e aceitas pela comu-nidade científica para chegar nesta conclusão e seria bom pensarmos que quanto antes os resultados destes trabalhos al-cançarem nossas salas de aula, maiores são as chances de se promover educação de qualida-de e com responsabilidade so-cial, inclusive, desarticulando essas reminiscências racistas.

Quando se pode dizer que duas raças passam a construir espécies diferentes?

“Operários” de 1933, de Tarsila do Amaral, ilustra a diversidade da população brasileira.

O biólogo Alan Templeton e seus colaboradores realizaram mais de oito mil análises em amostras genéticas, colhidas de pessoas aleatoriamente em todo o mundo, o que resultou em um trabalho que foi amplamente divulgado no final do século XX, inclusive no Brasil10.

Suas conclusões obtiveram grande repercussão e são mencionadas até hoje quando se debate o significado do termo “raça” na perspectiva científica. Para os pesquisadores contemporâneos, as informações genéticas que determinam o tipo físico são apenas antigas adaptações biológicas para determinadas regiões geográficas; assim, afirmar a existência de raças biológicas entre os seres humanos é  atribuir (erroneamente)  importância  a  diferenças  genéticas  insignificantes.  A diversidade é inerente à espécie humana.

A construção de conhecimento nas Ciências Naturais busca estabelecer teorias ou proposições que tenham grau cada vez maior de assertividade em relação aos seus objetos de estudo. Nesta perspectiva, podemos dizer que as Leis de Newton devem “valer” em qualquer local de nossa atmosfera terrestre ou a vacina para poliomielite deve ter “efeitos” exitosos na maioria das pessoas. Contudo, isso não significa que a atividade científica sempre produza resultados eficazes ou explicações satisfatórias. Em muitos casos, fazer ciência é buscar incessantemente os “erros”, daí a importância de se testar ou experimentar as teorias quantas vezes forem necessárias. Trabalhar com questões contextualizadas e significativas continua sendo uma boa estratégia para o ensino de Ciências e é válido estimular os alunos para que perguntem sobre fenômenos naturais, funcionamento do corpo, modo de vida dos seres vivos... Também é importante reconhecer que não sabemos tudo e que muitas perguntas podem motivar pesquisas, promovendo a construção de respostas coadunadas aos dizeres científicos atuais.

E agora? Somos todos iguais?

Sim”, pertencemos à mesma espécie e do ponto de vista biológico as diferenças em nossos corpos são insignificantes; mas, “Não” também somos todos diferentes se entendermos que cada corpo é único, assim como nossas impressões digitais, e é do fato de sermos diferentes em cada corpo que constituímos uma mesma unidade biológica. A ciência é assim em grande parte de suas respostas? Está aí uma questão para o início de sua próxima aula!

Referências

BARBUJANI, Guido. A invenção das raças. São Paulo: Contexto, 2007.

BIZZO, Neilo Marco Vincenzo. Curva em Sino: ensino curvo? In: I CICLO DE DEBATES SOBRE O ENSINO DE BIoLOGIA. Anais... Florianópolis: CCB-UFSC, 1995a. p. 67 - 101.

CHALMERS, Alan Francis. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 2009.

CORNWELL, John. Os Cientistas de Hitler. Rio de Janeiro: Imago, 2003.

FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos. Utilização de animais na investigação e docência: uma reflexão ética necessária. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GOULD, Stephen Jay. O Sorriso do Flamingo. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: 3.o SEMINÁRIO NACIONAL SOBRE RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃOs e Educação, 2003. Palestra proferida. Disponível em: <www.toodoc.com/etnia-munanga2003-ebook.htm>. Acesso em: março de 2015.

PEREIRA, João Baptista Borges. o negro e a identidade racial brasileira. In: SEYFERTH, Giralda et al. Racismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Petrópolis, 2002. p. 65-71.

RAYO, José Tuvilla. Educação em direitos humanos: rumo a uma perspectiva global. 2. ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 2004.

ZIMMER, Carl. o que é uma espécie? Scientific American Brasil – aula aberta, São Paulo, ano 2, n. 8, 2011.

Quando se pode dizer que duas raças passam a constituir espécies diferentes?

Hibridação –> surgimento de uma nova espécie, a partir do cruzamento de duas espécies diferentes, presentes no mesmo local. Especiação –> Surgimento de uma nova espécie a partir do isolamento geográfico de populações de uma mesma espécie.

Por que existem diferentes espécies?

Segundo esta teoria, as espécies se originam à medida que os organismos se reproduzem e repassam suas caracterísitcas a seus descendentes. Indivíduos que possuem características mais adequadas sobrevivem e, portanto, têm maior chance de produzir descendentes.

O que significa dizer que os dois organismos são de espécies diferentes?

Diante disso, espécies diferentes não conseguem se reproduzir ou, se conseguirem reproduzir-se e deixarem descendentes, estes não serão férteis. Segundo o conceito biológico, indivíduos de uma mesma espécie são capazes de se reproduzir e originar descendentes viáveis e férteis.

Quais são os fatores responsáveis pela formação de novas espécies?

Além da mutação, temos a reprodução sexuada, a deriva genética e o fluxo gênico como fatores que influenciam na variedade de alelos de uma espécie. Mutação: está relacionada diretamente com o aumento da variabilidade genética.