ResumosO objetivo deste artigo é apresentar como as ideias de «Liberdade, Igualdade e Fraternidade» evoluíram para «Liberdade e Justiça» no pensamento político de Antero de Quental, poeta, filósofo e militante socialista português do século XIX. Show
Le but de cet article est de présenter comment l’idée de « Liberté, Égalité et Fraternité » ont évolué à « Liberté et Justice » dans la pensée politique de Antero de Quental, poète, philosophe et militant socialiste portugais de XIXe siècle. The purpose of this paper is to present how the idea of “Liberty, Equality and Fraternity” have evolved to “Liberty and Justice” in the political thought of Antero de Quental, poet, philosopher and 19TH century Portuguese Socialist militant. Topo da página Notas da redacçãoTexto adaptado de capítulo da pesquisa de pós-doutoramento apresentada ao Departamento de História do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE/IUL), em janeiro de 2012, com o título Senso moral e política: uma história da ideia política de fraternidade nos socialismos do século XIX, realizada sob a orientação da professora Fátima Sá e Melo Ferreira. Texto integral
«Antero porém que desembarcara em Lisboa, como um Apóstolo do Socialismo, a trazer a Palavra aos gentílicos, em breve nos converteu a uma vida mais alta e mais fecunda (...) e começamos à noite a estudar Proudhon, nos três tomos da Justiça e a Revolução na
Igreja, quietos à banca, com os pés em capachos, como bons estudantes». 1Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla cujo objetivo era apresentar uma história da ideia política de fraternidade nos socialismos do século XIX. Para isso, usamos uma metodologia de pesquisa histórica que aproxima as Escolas de Bielefeld e Cambridge, ou seja, um método que contempla as ideias, os conceitos e seus respectivos contextos históricos. Para compreender a trajetória dessa ideia, tão incisiva durante a Revolução Francesa e que se esvaiu durante a modernidade, ao contrário de liberdade e igualdade, selecionamos algumas obras de autores clássicos da filosofia política e cujos pensamentos ajudaram a formar o conjunto de ideias do que hoje é chamado de socialismo. Em seguida, voltamos nossos olhos ao mundo lusófono e, particularmente em Portugal, nos dedicamos a investigar a obra política de Antero de Quental – poeta, filósofo e militante político socialista português do século XIX –, com o objetivo de verificar como ali estão registradas e compreendidas as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. O artigo é dividido em duas partes: na primeira nos dedicamos a recuperar a trajetória política de Antero. Na segunda, investigamos como a tríade proposta pela Revolução Francesa aparece em sua obra. A trajetória política de Antero de Quental
2Os últimos anos da década de 1860 na Europa são marcados pela crise do segundo Império na França, pela campanha pela unificação da Itália, pela resistência da Irlanda contra os ocupantes ingleses e pelo movimento dos polacos contra o czarismo. Em 1871, a Comuna de Paris culmina toda essa cadeia de acontecimentos e marca definitivamente a geração de intelectuais portugueses, mais conhecida como a Geração de 702. Os interesses e indagações dos estudantes de Coimbra são diretamente influenciados pelas transformações em curso na Europa mais adiantada. Nomes como os de Victor Hugo (1802-1885), Jules Michelet (1798-1874), León Gambetta (1838-1882) e, particularmente, Giuseppe Garibaldi (1807-1882) se transformam em símbolos desses novos tempos.
3Inspirada pela ideia de evolução – antropológica, biológica, humana –, esta geração de intelectuais portugueses será influenciada pelo contato com os textos de autores franceses, ingleses e alemães. Em 1859 Charles Darwin (1809-1882) publicara a Origem das espécies; Jules Michelet, em La Bible de l’Humanité, disseminava uma visão otimista da humanidade: «E a Bíblia da Humanidade narrava o gradual cumprimento da promessa feita aos homens, segundo a qual eles realizarão, um dia, um destino verdadeiramente divino»3. 4Na filosofia destacam-se o positivismo de Auguste Comte (1798- -1857) e a síntese filosófica do novo conhecimento feita por G. W. F. Hegel (1770-1831).
5Inspirado pelas obras de Ludwig Feuerbach (1804-1872) (Essência do cristianismo – 1841) e de Ernest Renan (1823-1892) (Vida de Jesus – Origens do cristianismo – 1863), a religião e o cristianismo passam a ser alvos do pensamento crítico.
6No pensamento social, os textos de Pierre-Joseph Proudhon (1809- -1865) serão leituras obrigatórias dos socialistas portugueses da segunda metade do século XIX.
7Mas, o contato com os textos de autores estrangeiros não impuseram a esta geração o total rompimento com os autores portugueses da geração anterior. Ao menos dois deles, Almeida Garret (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877) – particularmente este último, não apenas por ser o autor da História de Portugal, mas tambémpor suas atitudes de inconformismo com o estado de coisas imposto pela Regeneração –, continuam sendo considerados mestres locais de uma parte considerável da Geração de 70.
8Quase ao fim da vida, em 1887, Antero escreverá carta autobiográfica, dirigida a Willhelm Storck (1829-1905), na qual confessa que o fato mais importante da sua existência nessa época foi a espécie de revolução intelectual e moral que nele ocorreu, quando sai da proteção quase patriarcal da sua província e passa a viver na agitação de um centro de grande atividade cultural como Coimbra7.
9No entanto, Antero de Quental (1842-1891) não se intimida com isso. Ao contrário, em outubro de 1860, com apenas 18 anos, publica em O Cisne do Mondego números2 e 3 «A Ilustração e o operário»: «Mas se a todos é necessidade ilustrar-se, ao operário, mais que a ninguém. Se o rico pode em parte suprir pelo ouro a ciência que lhe falece, ele, pobre e deserdado, só nela pode contar, como amiga única e dedicada»8.
10Em fins de 1860/inícios de 1861 publica «A influência da mulher na civilização» em A Estreia Literária, segunda série, números 1, 2, 4 e 11: «A mulher, eis aí a obra-prima da criação, o ente que sobre todos tem na mão os destinos da Humanidade, porque foi ela que Deus escolheu para depositária, apóstolo e defensor da sua ideia!»9. 11Em abril de 1861 participa da fundação da Sociedade do Raio, uma sociedade secreta que se dedica a lançar desafios blasfemos a Deus durante a ocorrência de trovoadas. Em novembro, no primeiro número da revista Tira-Teimas, de Coimbra, publica «O que toda a gente vê ou A política numa lição», com o pseudônimo de Vasco Vasques Vasqueanes, que termina assim:
12Em abril/maio de 1862 publica em O Grêmio Alentejano números 26, 27 e 31 o artigo «A indiferença em política»: «Um dos piores sintomas de desorganização social, que num povo livre se pode manifestar, é a indiferença da parte dos governados para o que diz respeito aos homens e às cousas do governo (...)»11.
13Ainda no número 27 desse mesmo impresso publica o artigo «A questão romana», a favor da unificação da Itália e contra a política do Vaticano: «A questão romana é duma importância universal, porque é o pleito entre o obscurantismo, a intolerância e a tirania, universais inimigos do homem, e a ilustração, a tolerância e a liberdade, alvo eterno e universal de todas as nobres e generosas aspirações da humanidade»12.
14Em 21 de outubro é escolhido para saudar, em nome da Academia, o príncipe Humberto de Sabóia (1844-1900) de passagem por Coimbra. Antero saúda-o não como representante da Casa de Sabóia, mas como filho de Vitor Manuel, um dos libertadores da sua pátria, amigo de Garibaldi. O texto da saudação foi publicado nos jornais Braz Tisana (do Porto), no Conimbricense e no Tribuno Popular (de Coimbra): «(...) a mocidade liberal portuguesa saúda, em nome da liberdade do mundo católico, o filho do amigo de Garibaldi, o filho de Vítor Manuel»13.
15Em dezembro, participa de manifestação organizada pelos estudantes que se retiraram da Sala dos Capelos, durante cerimônia acadêmica, em protesto aos atos repressivos praticados pelo reitor Basílio Alberto de Souza Pinto (1793-1881). Em reação à acusação de amotinados, Antero redige e publica, em folha volante, Manifesto dos estudantes da Universidade de Coimbra à opinião ilustrada do País, assinado por 314 estudantes: «(...) depois fora, no meio da praça – deram-se vivas à liberdade, porque não sabíamos ainda aqui que esta palavra tivesse sido riscada, por ordem do Geral dos Jesuítas, do dicionário político desta nação»14.
16Em dezembro de 1863 conclui Odes Modernas que serão publicadas apenas em 1865. Em abril de 1864 participa da «Rolinada», movimento no qual os estudantes de Coimbra protestam contra medidas tomadas contra eles pela reitoria e que culmina com uma greve dos estudantes e o envio de tropas a Coimbra. Durante os incidentes, cerca de 500 estudantes partem em êxodo para o Porto. Pinto Osório, sob o pseudônimo de Pedro Eurico, no livro Figuras do passado, publicado em Lisboa, em 1915, atribui a Antero a seguinte convocação: «Quem tiver no peito um coração de homem livre, volta as costas ao militarismo e sai de Coimbra! E vai para onde? Para a terra que foi o berço da liberdade portuguesa: vai para o Porto!»15.
17Em maio é anistiado pelo reitor, retorna a Coimbra, onde, em julho, forma-se em Direito com um aproveitamento acadêmico mediano, sem nada que fosse digno de nota: «(...) não foi o estudo do Direito que me interessou e absorveu durante aqueles anos, tendo sido e ficado um insignificante legista. É o único diploma que tenho: não pertenço a Sociedade, Academia ou Instituto algum»16.
18Em janeiro de 1865, na Imprensa Literária de Coimbra, publica Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a chamada opinião liberal – Considerações sobre este documento: «É um protesto contra a falta de lógica com que as folhas liberais atacavam o Syllabus, declarando-se ao mesmo tempo fiéis católicos»17. 19No mês de abril publica no Diário do Povo de Portugal e Possessões, do Porto, o que se considera ser o seu primeiro ensaio filosófico «O sentimento da imortalidade – Carta ao Sr. Anselmo de Andrade». 20Em 1865, solicitado a apadrinhar com um posfácio o Poema da mocidade de Pinheiro Chagas (1842-1895), Antonio Feliciano de Castilho aproveitou a ocasião para, sob a forma de uma carta ao editor Antônio Maria Pereira, propor a candidatura do poeta apadrinhado à cadeira de Literaturas Modernas no Curso Superior de Letras, e censurar um grupo de jovens de Coimbra, que acusava de exibicionismo e de tratarem temas que nada tinham que ver com a poesia. Os escritores mencionados Teófilo Braga (1843-1924), futuro presidente de Portugal e autor dos poemas Visão dos tempos e Tempestades sonoras (também candidato a ministrar a mesma cadeira de Literatura); Antero de Quental, que então já publicara as Odes modernas e José Cardoso Vieira de Castro (1837-1872), escritor em prosa a quem Castilho aliviava a crítica dirigida sobre a escola coimbrã. 21A Questão Coimbrã é considerada como o primeiro sinal de renovação literária e ideológica patrocinada pela Geração de 70, onde se enfrentaram os defensores do status quo literário e um grupo de jovens escritores estudantes de Coimbra. Em torno de Antônio Feliciano de Castilho formou-se um grupo (escola do elogio mútuo, segundo Antero) em que o academicismo e o formalismo pontificavam. 22Embora nosso foco neste trabalho seja o pensamento político de Antero, não podemos deixar de assinalar o lançamento das Odes modernas. Nesse livro Antero rompe com toda a poesia tradicional portuguesa: são banidos de suas páginas o romantismo, o sentimentalismo e a religiosidade lírica. Ao contrário disso, nas suas poesias já surgem com muita força as ideias de liberdade e justiça.
23Em janeiro de 1866, Antero resolve alistar-se no exército de Garibaldi e ajudar na tentativa de cercar Roma e combater o poderio do Estado Pontifício. Em carta escrita em Lisboa e dirigida a Antônio Azevedo Castelo Branco, convida-o a abandonar a vida ordinária em que viviam e a alistarem-se no voluntariado garibaldino. Termina a carta com a seguinte frase: «Un bel morir tutta la vita onora...»18.
24Aos 24 anos, parecia a Antero ter chegado a hora de deixar Portugal, viajar ao estrangeiro e participar de outras experiências. Como sua heroica empreitada italiana não obteve sucesso, a exemplo de seus mestres Michelet e Proudhon, em julho/agosto de 1866 resolve aprender arte tipográfica na Imprensa Nacional em Lisboa. Em meados de novembro, instala-se em Paris onde exerce a atividade de operário tipográfico de 1866 a 1868. A experiência parisiense é um enorme fracasso. Já no primeiro mês escrevia carta a Alberto Sampaio (1841-1908) em que dizia: «Há um mês e meio que caminho no meio de desilusões (...). Este trabalho é triste como todo o trabalho moderno, forçado, partido e dividido, desnatural e injusto (...). Se pudesse saía amanhã mesmo de Paris»19. Apesar da frustração em se tornar operário das artes gráficas, como consolo, Antero assiste aulas no Collège de France e conhece Jules Michelet pessoalmente.
25Após retornar a Ponta Delgada, em novembro de 1868, é convidado pelo partido de Emílio Castellar y Ripoll (1832-1899), após o fim da Monarquia na Espanha, para colaborar na fundação de um jornal democrático e ibérico. Em dezembro de 1868, publica o folheto Portugal perante a Revolução de Espanha – Considerações sobre o futuro da política portuguesa no ponto de vista da democracia ibérica, pela Tipografia Portuguesa, de Lisboa, no qual advoga a União Ibérica por meio de uma República Federativa. Aqui já fica patente a influência das ideias de Proudhon no pensamento político de Antero «Duas idades em tudo o mais hostis, o passado feudal e o presente democrático, nesta só coisa puderam concordar, apontando-vos como caminho da justiça, da paz, da força, da liberdade, do progresso, um único caminho: a federação»20.
26Em meados de 1869 viaja com destino à América do Norte. Em março de 1870 tem encontro marcante com Oliveira Martins (1845-1894) e inicia intensa atividade política: «Verdade é que, se Portugal, nesta geração, tivesse tido força para produzir 8 ou 10 homens como Oliveira Martins, não precisava de quem o salvasse, porque esse fato só por si era o indício da força e fecundidade do espírito nacional, da sua vitalidade e saúde perfeita»21.
27Ao lado de Jaime Batalha Reis (1847-1935) e José Fontana (1841- -1876) passa a ser um dos editores do jornal República Federal. Em maio, ao lado de Oliveira Martins, Jaime Batalha, Manuel de Arriaga (1840-1917) e Antônio Enes (1848-1901), funda e dirige o jornal A República – Jornal da Democracia Portuguesa22.
28Em agosto publica, anonimamente, o artigo «Democracia» no primeiro número da revista Almanak para a democracia portuguesa, Lisboa: «Como a definiremos [a democracia]? É a igualdade social e econômica, tendo por instrumento a liberdade política. É a partilha justa, entre todos os membros da sociedade, dos bens materiais, como garantia duma igual distribuição dos bens morais entre todos»23. 29O ano de 1871 foi intenso. Instalado em Lisboa, em contato per- manente com velhos amigos de Coimbra e com os novos de Lisboa, An- tero participa ativamente da formação de um grupo que se denominou Cenáculo – de que faziam parte, Teófilo Braga (1843-1924), Manuel de Arriaga (futuro presidente da República), Eça de Queiroz, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guilherme de Azevedo (1839-1882) e Guerra Junqueiro (1850-1923), entre outros. Do exterior respirava-se o ambiente exaltado da Primeira República espanhola (1873- -74), da queda de Napoleão III e da Comuna de Paris. No plano interno é o ano em que a Associação Internacional dos Trabalhadores chega a Portugal, com a cooperação de Antero e a participação de José Fontana (1841-1876), empregado da livraria Bertrand que passa a ter contato com o Cenáculo.
30Das discussões do Cenáculo surge o ambicioso projeto das Conferências. Em abril é publicado o primeiro anúncio na Revolução de Setembro das futuras Conferências do Casino. Em carta a Teófilo Braga Antero define o espírito que inspirou a organização das Conferências: «Temos um programa, mas não uma doutrina: somos associação mas não igreja: isto é, liga-nos um comum espírito de racionalismo, de humanização positiva das questões morais, de independência de vistas, mas de modo nenhum impomos uns aos outros opiniões e ideias...»24.
31Em maio é publicado em folha volante o programa das Conferências Democráticas estabelecidas na sala do Casino, Largo da Abegoaria. Tal programa sublinha que não é possível um povo viver e desenvolver-se isolado das grandes questões intelectuais do seu tempo e resume as principais intenções das Conferências: abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam esse movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; ligar Portugal com o movimento moderno fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; procurar adquirir a consciência dos fatos que nos rodeiam na Europa; agitar na opinião pública as grandes questões da filosofia e da ciência moderna; estudar as condições da transformação política, econômica e religiosa da sociedade portuguesa25. 32Entre as cinco Conferências proferidas destacaram-se as de Antero, Eça de Queiroz e Francisco Adolfo Coelho (1847-1919). Em 22 de maio Antero inaugura o ciclo de Conferências com «O espírito das Conferências». Em 27 de maio profere a segunda conferência «Causas da decadência dos povos peninsulares nos três últimos séculos», logo publicada em folheto. Para Antero, as causas da decadência dos povos peninsulares eram três: a reação religiosa consumada pelo Concílio de Trento; a centralização política realizada pela monarquia absoluta, com a consequente perda das liberdades medievais e o sistema econômico da rapina guerreira que, obstruindo o desenvolvimento da pequena burguesia, impedirá Portugal de acompanhar o desenvolvimento econômico do resto da Europa. Na realidade, Antero apresenta como causas da decadência algumas ideias semelhantes às de Alexandre Herculano, mas como solução as ideias de Proudhon, tais como a de um princípio político federalista, com a formação de uma federação de associações dos peninsulares, até à organização econômica, que seria formada por uma federação de associações de produtores.
33Eça de Queiroz, sob o título de «A nova literatura», versou sobre o Realismo como nova expressão da arte. Combinando os pensamentos de Taine e Proudhon, Eça defendeu uma teoria da arte que a considera condicionada a fatores permanentes como o clima, solo, raça e a outros eventuais ou históricos, como cultura, etc. Francisco Adolfo Coelho dedicou-se à educação. Propõe a organização de um ensino totalmente científico e laico, baseado na separação entre a Igreja e o Estado, e defende o desenvolvimento das ciências sociais, históricas e filosóficas. Entre a segunda conferência de Antero e a de Eça, Augusto Soromenho discorreu sobre a literatura portuguesa. 34Nos finais de junho Antonio José d’Ávila, marquês de Ávila e Bolama (1807-1881) presidente do Conselho de Ministros, assina portaria mandando encerrar as Conferências do Casino. Talvez não por acaso, a censura às Conferências deu-se no dia em que seria proferida aquela dedicada aos “Historiadores críticos de Jesus”, por Salomão Sáragga, que se propunha tratar das reflexões de Renan, com quem colaborara como especialista em estudos hebraicos. Logo em seguida são publicados nos jornais protestos contra o encerramento das Conferências. Em 30 de junho, Antero publica «Carta ao Ex.mo Sr. Antonio José d’Ávila, Marquês de Ávila, Presidente do Conselho de Ministros», onde faz contundente protesto contra o encerramento das Conferências:
35Em 28 de maio de 1871 a Comuna de Paris é derrotada, depois de 40 dias de poder comunal. A derrota da Comuna provocou comoção e diferentes reflexões entre os militantes socialistas de todo o mundo. Em carta a Antônio de Azevedo Castelo Branco escrita em finais de 1871, Antero comenta: «A Comuna de Paris foi sublime na sua cegueira, como um elemento, uma força natural. Eu cá por mim admiro-a, e mal me atrevo a discuti-la»28. 36Em junho chegam a Portugal os representantes da Associação Internacional dos Trabalhadores, os espanhóis Anselmo Lorenzo (1841-1914), Gonzaléz Morago (?-1885) e Francisco Mora (?), com o objetivo de organizar a seção portuguesa da Associação. Note-se que as ideias de Proudhon tiveram ótima acolhida entre os sindicalistas espanhóis. Antero, ao lado de Jaime Batalha Reis e José Fontana, reúnem-se clandestinamente, num bote ancorado no Tejo, com os emissários da Internacional.
37Certamente como consequência do encontro com os anarquistas espanhóis, em meados de novembro, publica anonimamente o folheto de propaganda política O que é a Internacional, Lisboa, Tipografia do Futuro. O produto da venda destinou-se à criação do jornal O Pensamento Social. Em carta endereçada a Oliveira Martins Antero comenta: «Aí vai o primeiro folheto de Propaganda. Não sei se conhecerá que foi escrito por mim, por isso lho declaro (debaixo de sigilo internacional). V. sabe das minhas pretensões a Economista – por isso escusado é dizer-lhe a importância que dou às primeiras vinte páginas»29. 38Em fevereiro de 1872, com Oliveira Martins, Jaime Batalha Reis, José Fontana e Nobre França, funda e lança o primeiro número do jornal O Pensamento Social. Durante este ano publica anonimamente no Pensamento Social os artigos «A organização social», «Guerra de classes», «As duas democracias», «A política do socialismo», «O Congresso Internacional na Haia» e «Teoria do socialismo», este último uma breve recensão do livro Teoria do socialismo: evolução política e econômica das sociedades da Europa, de Oliveira Martins.
39Em fevereiro de 1873 publica anonimamente no Pensamento Social «A república e o socialismo». Em março publica no Diário Popular uma resenha ampliada do livro Teoria do socialismo de Oliveira Martins. Neste mesmo mês de março pretende fundar um novo partido político chamado União Democrática Portuguesa, cujo programa redige e envia por carta a Oliveira Martins. Seu prólogo começava assim: «Funda-se a União Democrática com o fim de reunir num corpo organizado e ativo todos os homens de boa vontade, que, professando os princípios fundamentais do Credo filosófico e social da Democracia moderna, estejam dispostos a trabalhar na defesa e propaganda desses princípios (...)»31.
40Fernando Catroga observa que Antero jamais pensou a república longe da ideia de socialismo, uma vez que apenas a razão, a justiça e uma ética pautada por valores comunitaristas, dos indivíduos (e dos grupos sociais), «a cidadania poderia se afirmar como autogoverno sem cair na luta de todos contra todos»32. 41Na carta autobiográfica, escrita para Willhelm Storck, Antero revela o nome dos autores que mais contribuíram para sua formação intelectual nos campos da filosofia e da política:
42Ainda em fevereiro de 1873, em carta a Sebastião de Magalhães Lima (1851-1928), Antero reafirma suas fortes ligações com o pensamento de Proudhon: «Há 8 anos que estudo Proudhon, e cada dia acho mais que aprender nele. Não me fala só à inteligência; fala-me a todas as minhas potências humanas»34.
43Em abril morre Fernando Quental, pai de Antero, em Ponta Delgada. Em julho Antero herda o patrimônio da família e torna-se proprietário rural ao receber 5 hectares de terra na Vila da Ribeira Grande. Segundo Saraiva e Lopes, esse fato assinala o fim da fase entusiástica de Antero e dá início a uma fase pessimista do seu pensamento35. 44Em 1874 Antero adoece em Ponta Delgada, de mal grave e de difícil diagnóstico, mesmo para médicos e cientistas como José Tomás de Sousa Martins (1843-1897) e Jean-Martin Charcot (1825-1893), a quem Antero foi consultar em Paris em 1877. A doença o obrigava a manter-se deitado de costas, enfraquecido, irritável, deprimido e desesperançado pela ineficácia dos tratamentos a que se submete tanto em Portugal quanto depois na França. Salvo a redação da parte fundamental do Programa para os trabalhos da Geração Nova, projeto ambicioso que será destruído pelo próprio Antero antes de terminado, passa o ano em consultas médicas e dedicado ao estudo do budismo, dos comentadores franceses de Arthur Schopenhauer (1788-1860) e, principalmente, de E. von Hartman (1842-1906), autor de Filosofia do inconsciente, em que Hartman defende a existência de um inconsciente criador do mundo, anterior e mais abrangente que a ideia absoluta de Hegel e a vontade absoluta de Schopenhauer.
45Em janeiro de 1875 é nomeado para fazer parte da comissão que elabora o programa do Partido dos Operários Socialistas, recém fundado. Em fevereiro funda, com Jaime Batalha Reis, a Revista Ocidental. Em outubro redige os estatutos da Associação Protetora do Trabalho Nacional.
46Em novembro de 1876 morre, em Lisboa, sua mãe Ana Guilhermina da Maia Quental. Em carta de dezembro de 1876 enviada ao seu grande amigo Germano Meireles (1842-1877), lamenta-se: «Morreu minha mãe, e tenho estado muito triste. A minha vida é agora ainda mais erma, e a saudade daquela excelente mulher, que era quase o único amparo da minha existência de doente incurável, tem obscurecido o meu horizonte e quase mo representa lúgubre»37. 47Em junho de 1877 adere ao Partido dos Operários Socialistas de Portugal.
48Em outubro de 1878 é convidado a apresentar candidatura a deputado republicano-socialista, mas declina do convite. Em outubro de 1879 é candidato pelo Partido Operário Socialista à eleição geral para deputado pelo círculo 98, de Lisboa. Em novembro publica o Manifesto-Circular aos eleitores dos círculos 94, 97 e 98 pelo Partido Operário Socialista, Tipografia Progressista, Lisboa: «Numa palavra, a classe trabalhadora compreendeu que sem socialismo toda a política é vã e superficial: fez do socialismo a pedra-de-toque dos programas dos partidos, e achou-os a todos igualmente sem valor»39. 49Em fins de 1879 Antero adota as meninas Albertina Meireles (1876- -1974) então com 3 anos e Beatriz Meireles (1878-1973) então com 18 meses, filhas de Germano Meireles, amigo, companheiro de Coimbra e da Geração de 70, que falecera precocemente, em 1877, e deixara as duas filhas órfãs de pai.
50Em setembro de 1880 Antero escreve o Manifesto aos eleitores do Círculo 98, onde comenta os 135 votos que obteve como candidato a Deputado nas eleições parlamentares: «Esses cento e tantos votos dados às candidaturas socialistas representam outras tantas consciências leais, a quem uma convicção se impõe com a soberania do dever»40.
51O ano de 1881 foi um dos de mais intensa propaganda e atividade socialista, entre elas a participação ativa no comício anti-jesuítico realizado em março no Teatro de D. Fernando. Em agosto de 1881 Antero é, mais uma vez, candidato a deputado pelo Partido Socialista. No final do ano, nas eleições administrativas, tem seu nome indicado para a Junta Geral do Distrito de Lisboa41. Em outubro publica no jornal A Voz do Operário o artigo «O povo»: «O século XIX é o século das grandes reivindicações (...) convenceu-se finalmente [o povo proletário] que não era dessas classes interessadas na sua miséria que deveria esperar o livramento, mas só de si, do seu esforço, da sua virtude e união!»42. 52Em 30 de março de 1884 é inaugurado monumento a José Fontana, um dos precursores, ao lado de Antero, do movimento operário e socialista em Portugal. Seus restos mortais foram trasladados do Cemitério Ocidental de Lisboa para o referido monumento. Segundo o jornal Lisboa n. 7 de 1884, tomaram parte nesta manifestação cerca de 20.000 pessoas, 12 jornais e 71 organizações populares diversas (César Nogueira, s/d, p. 145). Em junho de 1884 Antero publica na Revue Universelle Internationale, de Jules Lermina (1839-1915) e Ladislas Mickiewicz (1838-1926), o artigo «Le Portugal Contemporain – Oliveira Martins».
53Em 1885 organiza a edição de Sonetos completos. Em carta dirigida à filóloga Carolina Michaëlis (1851-1925), escrita em Vila do Conde, em 7 de agosto de 1885, escreve sobre a obra: «Posso dizer que está ali o melhor da minha vida, aquela parte mais alta da nossa vida, que, justamente por ser já humana e não só individual, temos como que o direito de impor à atenção dos outros»43.
54Também em agosto publica, no primeiro e único número da revista Beja Creche, o artigo «Socialismo e filantropia»: «No meio de muitos sintomas de enfraquecimento e desordem moral que a sociedade contemporânea apresenta, e que, no pensar de muitos, parecem indicar uma degeneração dos elementos mais íntimos da civilização, há um fato consolador e que contrasta singularmente com aquelas tendências mórbidas: é o desenvolvimento extraordinário que a Caridade tem tomado por toda a parte (...)»44. 55Em 4 de maio de 1887, em carta escrita em Ponta Delgada e dirigida a Oliveira Martins, Antero comenta o desencanto de seu amigo com a política, fala de jornalismo e também da morte.
56Em 1887 escreve a célebre carta Autobiográfica, já citada aqui algumas vezes, a Wilhelm Storck, tradutor alemão de Camões e Antero. Em setembro desse mesmo ano faz alusão à carta Autobiográfica em outra missiva dirigida a Storck: «Quanto à minha Autobiografia, usou V. Ex.a dispondo dela como dispôs, de um direito que plenissimamente lhe assistia, e por modo certamente muito lisonjeiro para mim»46.
57Em janeiro de 1889 publica no primeiro número do jornal O Trabalhador, o artigo «O socialismo e a moral»: «O problema do Socialismo é essencialmente o problema da organização do trabalho: ora, a organização do trabalho depende antes de tudo da capacidade moral dos trabalhadores, isto é, da sua capacidade de ordem, disciplina e justiça»47.
58Em agosto, começa a escrever, para a Revista de Portugal, a convite de Eça de Queiroz, Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX. Em carta a Oliveira Martins, escrita em Vila do Conde, em 26 de novembro de 1889, Antero comenta seu projeto sobre filosofia: «Para mostrar o meu afeto ao nosso Queiroz, comecei a escrever com destino à Revista, um artigo sobre as tendências gerais da Filosofia na atualidade (...)»48.
59Dois meses depois, exatamente a 28 de janeiro de 1890, Eça de Queiroz escreve a Oliveira Martins sobre o trabalho apresentado por Antero: «Como sabes, o nosso Antero ressurgiu para a vida ativa, através da filosofia. Temos dele um primeiro artigo neste número da Revista – que sairá, não sei quando, mas ainda neste século. É extraordinário. Está todo o original na imprensa desde o fim do mês passado!»49. Nos números de janeiro, fevereiro e março de 1890, o texto completo de Tendências é publicado na Revista de Portugal.
60Em 11 janeiro de 1890 Portugal recebe o Ultimatum inglês, que consistiu num telegrama enviado ao governo português pelas autoridades inglesas. A Inglaterra exigia a retirada imediata das forças militares portuguesas instaladas nos territórios entre Angola e Moçambique. Caso a exigência não fosse obedecida por Portugal, a Inglaterra avançaria com uma intervenção militar. Em 26 de janeiro, em número extraordinário do jornal A Província, Antero reflete sobre o Ultimatum com um texto que tem por título «Expiação»: «Reconhecer os erros passados será já um começo de emenda: e temos muito que emendar. O nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo, falso e criminosamente vaidoso, pode afirmar o contrário»50.
61Segundo Luís de Magalhães (1859-1935), nos primeiros dias seguintes ao conflito diplomático com a Inglaterra o governo perdera o controle da situação, a linguagem da imprensa era descabida e a anarquia era completa. As manifestações públicas repetiam-se no Porto, em Lisboa e em outros centros do país. Numa dessas manifestações surgiu a ideia vaga e indefinida de se organizar uma Liga Patriótica. Mas, era necessário que à frente dessa Liga se pusesse uma direção incontestável, um nome que a todos inspirasse confiança e respeito. O nome de Antero de Quental foi lembrado naturalmente51. Em fevereiro, eleito presidente da Liga Patriótica do Norte, Antero escreve o artigo «O Grande Movimento Nacional que começou no dia 11 de janeiro», publicado no número único de Anátema, jornal de Coimbra e que termina assim:
62Em seguida, publica na Província, o artigo «Representação sobre a necessidade de ser retirado o exequator ao cônsul inglês do Porto», dirigida a Antônio de Serpa Pimentel (1825-1900), presidente do Conselho de Ministros, onde a comissão instaladora da Liga deu respaldo ao protesto dos estudantes do Porto contra carta escrita pelo Sr. Oswald Crawford, cônsul de S. M. Britânica que «insulta da maneira mais insólita e com todas as agravantes possíveis a briosa mocidade acadêmica desta cidade».
63Em março publica-se em folha volante «Discurso lido na sessão de 7 de março da Liga Patriótica do Norte pelo seu presidente Antero de Quental»: «O protesto contra o insulto e a vilania da Inglaterra, e o propósito de nos libertarmos de sua aviltante dependência, implica um esforço viril e persistente para sermos de fato independentes, o que hoje ainda não somos nem política, nem economicamente»53. 64Em 22 de julho de 1890, em carta escrita em Vila do Conde a Henrique das Neves, Antero comenta o fim melancólico da Liga: «A Liga morreu afinal de pura inanição porque ninguém, no fundo, queria saber nem de colônias, nem de desforra, nem de reformas sociais. O que passou durante este Inverno é a prova mais cabal do estado de prostração do espírito público entre nós». 65Antero passa o ano de 1891 em viagens entre Vila do Conde, Lisboa e Ponta Delgada. Em 29 de agosto escreve carta a Oliveira Martins comunicando-lhe que partirá de Ponta Delgada com destino a Lisboa no Açor do dia 18 de setembro. Em 11 de setembro, Antero de Quental às 18:00 compra um revólver e às 20:00 suicida-se no Campo de São Francisco, em Ponta Delgada. É sepultado no dia 12 de setembro, no Cemitério de São Joaquim, às 17 horas.
66O republicanismo português, apesar de sua complexidade, pode ser compreendido por suas relações próximas com o liberalismo. É principalmente originário, no contexto político europeu, da tríade Liberdade, Igualdade e Fraternidade proposta pela Revolução Francesa em 1789 e que se tornou palavra de ordem inspiradora das lutas progressistas durante o século XIX. Na França, Espanha e em Portugal, o ideário burguês de destruição do antigo regime passou a ser a aspiração das experiências republicanas. A monarquia constitucional revelou-se incapaz de se contrapor ao avanço do liberalismo, ou da esquerda liberal, que procura enfrentar os problemas nacionais inspiradas pela tríade revolucionária. Tal se dá na França em 1848 e 1870; Espanha em 1868; e em Portugal a partir de 1848-1851, quando dá-se início à regeneração do regime liberal institucionalizado, por meio da República, vista como solução política para enfrentar os problemas do País. Segundo Joaquim de Carvalho, o sentimento republicano nasce em Portugal como reação ao imobilismo ideológico e político do cartismo e das estreitezas da política cartista54. Não é contra o liberalismo que o republicanismo se apresenta, mas contra certa interpretação dele: «Na verdade, a institucionalização da liberdade burguesa não promovera por si mesma, a igualdade real dos cidadãos, e daí que a prescrição da fraternidade se condenasse a assumir caráter de utopia»55. 67Os da Geração de 70, particularmente Antero de Quental e Oliveira Martins, que migrariam rapidamente da aspiração republicana ao socialismo, apenas superficialmente considerariam que a proposta republicana fosse a mais adequada à consecução do ideal democrático que os inspirava. No entanto, as origens iluministas do ideário liberal sintetizado na tríade Liberdade, Igualdade, Fraternidade permanece no horizonte dos homens da sua época, apesar das adaptações do seu conteúdo provocadas pelos necessários ajustes ideológicos, pelo crescimento econômico, pela mobilidade social ou pela cultura. 68Antero usa a palavra fraternidade poucas vezes em toda sua obra política. No primeiro momento isso acontece no opúsculo apócrifo O que é a Internacional, publicado em 1871:
69Em 1880, em texto sobre Lopes de Mendonça (1826-1865) publicado no jornal O Operário, Antero refere-se à fraternidade duas vezes:
70No texto sobre a Internacional, Antero usa a palavra fraternidade como antônimo de egoísmo. «O princípio falso do egoísmo» em contraponto com o «santo princípio da fraternidade». No texto sobre Lopes de Mendonça fraternidade aparece como antônimo utópico do individualismo: «corrigir o egoísmo das reclamações do direito individual com os preceitos morais e poéticos da fraternidade». Em seguida, usa a palavra fraternidade como um recurso político frágil, que não foi capaz de desatar os nós que levarão a Europa inexoravelmente à guerra social. 71No entanto, aproximando-nos um pouco mais do objeto dessa pesquisa, remetemo-nos ao texto «A república e o socialismo», publicado originalmente em O pensamento social número 34, de 8 de dezembro de 1872, onde Antero escreve:
72Aqui percebe-se com clareza que estamos diante de um deslocamento semântico por proximidade59, onde Antero opta por uma Justiça na qual a ideia política de fraternidade estaria subsumida. Dessa forma, no pensamento político-social de Antero a tríade da Revolução Francesa foi subvertida. A Liberdade e a Igualdade permanecem, mas a Fraternidade teria que ser repensada e transformada em Justiça para que pudesse revelar todas as suas qualidades. Já em janeiro de 1872, no texto «A política do socialismo», publicado no número 16 de O pensamento social, Antero falava de uma «Fraternidade em ação»:
73A «Fraternidade em ação» seria de fato o Socialismo que, por sua vez, era a expressão da Justiça nas relações entre os homens. Fernando Catroga reforça nosso argumento quando observa:
74Não por coincidência, mas como comprovação da influência das ideias de Proudhon sobre os principais integrantes da Geração de 70, na obra Portugal e o socialismo, publicada em 1873, Oliveira Martins, companheiro e interlocutor de todas as horas de Antero e de Eça, em trecho no qual refuta o liberalismo individualista e o democratismo, escreve que «o Socialismo não é a Cobiça, porque é a justiça» e complementa: «O Socialismo, repitamo-lo ainda e sempre, é uma revolução moral, da Justiça, da Liberdade e da Igualdade»62. Aqui, tal como em Antero, a ideia política de fraternidade encontra-se subsumida em Justiça. A única e relevante diferença é que enquanto Antero proclama a Justiça ao final da sua tríade, Oliveira Martins o faz logo no início. 75Sendo assim, ainda nos resta um caminho a trilhar: pesquisar em que sentidos a palavra Justiça foi empregada na obra política do poeta açoriano. 76Se considerarmos isoladamente os termos que compõem a tríade revolucionária francesa e seu uso na obra política de Antero, Fraternidade, como já o dissemos, surge pouquíssimas vezes, Igualdade é usada um pouco mais que Fraternidade, mas Liberdade estará sempre presente em seus textos políticos. O curioso é que, sob o ponto de vista meramente quantitativo, a incidência do vocábulo Justiça está presente no texto político anteriano com a mesma intensidade de Liberdade. Liberdade e Justiça. 77Em «A indiferença em política», texto publicado pelo Grêmio Alentejano, Coimbra, em 1862 (de maio a junho), números 26, 28 e 31 Antero, aos 20 anos de idade, usa o termo Justiça em quatro ocasiões:
78No final do Capítulo V de Portugal perante a Revolução de Espanha, publicado em Lisboa, em fins de 1868, Antero defende a ideia da federação: “Duas idades em tudo o mais hostis, o passado feudal e o presente democrático, nesta só coisa puderam concordar, apontando-vos com o caminho da justiça, da paz, da força, da liberdade, do progresso, um único caminho: a federação!” (grifo nosso). 79Em 1870, em texto anônimo intitulado «Democracia», publicado em Almanak para a democracia portuguesa, Antero usa o termo justiça seis vezes:
80Em maio de 1870 em texto intitulado «A República» escrito e publicado anonimamente no primeiro número de A República - Jornal da Democracia Portuguesa, Antero emprega a palavra justiça quatro vezes. Logo na primeira vez, adianta-nos o que seria sua síntese política para se passar do liberalismo republicano ao socialismo democrático e que afirma ser a grande aspiração do século XIX:
81No opúsculo O que é a Internacional, também publicado anonimamente em Lisboa, em fins de 1871, a ideia de justiça está presente pontuando o texto em diversos momentos:
82Em mais um texto anônimo, de título «O pensamento social», publicado em fevereiro de 1872 em O Pensamento Social, Antero emprega mais algumas vezes o termo justiça:
83Aos poucos, tal como já acontecera com a ideia de Fraternidade, a ideia de Igualdade também é subsumida na ideia de Justiça.
84Em março de 1872, mais uma vez em O Pensamento Social, Antero publica um texto que tem como título «Organização» e também ali justiça se faz presente: «Filosoficamente, procuramos, afirmamos e proclamamos o que é justo. Praticamente, procuramos realizar aquela soma de justiça que desde já é possível realizar-se»68 (grifo nosso). 85Em «Guerra de classes» também publicado em O Pensamento Social, em março de 1872, Antero estabelece claramente o paralelo entre Socialismo e Justiça:
86Em fins de 1872, em O Pensamento Social, Antero publica resenha sobre o livro Teoria do socialismo de Oliveira Martins. Como não poderia deixar de ser, a ideia de justiça aparece com intensidade no texto:
87No mês de março de 1873, com a pretensão de fundar a União Democrática Portuguesa, Antero redige o seu programa e o envia por carta a Oliveira Martins. Ali, já no preâmbulo escreve: «A União aspira a constituir, no terreno da Razão e da Justiça, em que levanta o seu programa, um partido (...)». Na seção «Credo filosófico e social», logo no item 1: «A autonomia da Razão e da Consciência humanas, capazes por virtude própria e independentemente de qualquer revelação, culto ou autoridade espiritual, de descobrir a Verdade, determinar a Justiça e praticar a Lei moral, imanentes na natureza humana como suas normas eternas e infalíveis». Na seção «Programa de reformas Políticas e Econômicas», no item 6: «Administração gratuita da justiça e extinção dos emolumentos dos magistrados»71 (grifo nosso).
88Finalmente, depois de longos anos sem se referir com frequência à ideia de justiça nos seus textos políticos, Antero escreve «Socialismo e filantropia», texto publicado em abril de 1885, no primeiro e único número da revista Beja-Creche, onde retoma o tema: «A Filantropia é do mundo: é prática e secular. A sua irmã não é a Poesia, é a Justiça»72 (grifo nosso). Após esse rápido levantamento das citações de Antero sobre a ideia de Justiça, pode-se perceber que se no primeiro momento é apenas a Fraternidade que passa a estar contida em Justiça, em seguida, a ideia de Igualdade também é subsumida pela ideia de Justiça. Desta forma, em Antero a tríade clássica da revolução burguesa, converge para Liberdade e Justiça como sendo as reivindicações básicas para a realização do socialismo.
89Inspirado em Proudhon, a Justiça (Fraternidade/Igualdade) é a meta a ser alcançada e a Liberdade, iluminada pela Ciência e a Razão, é o método que sempre e em qualquer circunstância permitiria trilhar esse caminho. Liberdade que deve estar presente nas consciências daqueles que vão intervir direta ou indiretamente para promover a justiça social, que serão chamados a pôr em execução fraternalmente uma reforma social capaz de provocar o fim da exploração capitalista e o acesso pleno dos explorados à dignidade humana. Em suma, se a Justiça (Fraternidade/Igualdade) é o objetivo a ser alcançado, segundo o pensamento político anteriano ela só terá sentido se for complexamente articulada na sociedade com a Liberdade esclarecida, isto é, a partir do momento em que cada um de nós seja capaz de pensar e incorporar em nossos corações e mentes, que a superação das desigualdades sociais deve ser o motor de uma transformação radical da sociedade. Caso isso não aconteça, a indagação de seu mestre Proudhon continuará sem resposta: «A fraternidade hoje em dia, como sempre, espera por um princípio que a produza: o socialismo concebido como sistema econômico e político, está apto a preencher esta condição, de pregar a fraternidade?»73. Topo da página Notas1 Eça de Queiroz, «Um gênio que era um santo», in Martins, Ana Maria de Almeida (2008), Antero de Quental – Fotobiografia, Lisboa/Ponta Delgada, INCM/C. M. Ponta Delgada, p. 141. 2 Formada por Antero de Quental, Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Jaime Batalha Reis, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Guilherme de Azevedo, Teófilo Braga e Manuel de Arriaga, entre outros. 3 Catroga, Fernando (2001), Antero de Quental – História, socialismo, política, Lisboa, Notícias Editorial, p. 19. 4 Coimbra, Leonardo (1991), O pensamento filosófico de Antero de Quental, Lisboa, Guimarães Editores, p. 103. 5 Santos, Leonel Ribeiro dos (2002), Antero de Quental – Uma visão moral do mundo, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 125. 6 Catroga (2001), Antero de Quental..., p. 173. 7 Catroga (2001), Antero de Quental..., p. 16. 8 Quental, Antero (2008), Fotobiografia, org. de Ana Maria de Almeida Martins, Lisboa/Ponta Delgada, INCM /C. M. Ponta Delgada, p. 74. 9 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 74. 10 Quental, Antero de (1994), Obras Completas – Política, Introdução e notas de Joel Serrão, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, p. 74. 11 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 75. 12 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 82. 13 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 84. 14 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 92. 15 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 97. 16 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 103. 17 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 110. 18 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 121. 19 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 129. 20 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 105. 21 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 149. 22 Segundo Carlos Manoel Coelho Maurício o jornal A República foi fundado por Oliveira Martins, na companhia de Antero, Batalha Reis e Eça, e em boa parte foi redigido por ele. Antero teve participação mínima no jornal, que terminou quando Martins se mudou para a Espanha. Ver: Mauricio, Carlos «Uma cronologia de J. P. Oliveira Martins», in: Marinho, Maria José (org. e invent.), Espólio Oliveira Martins (Esp. E20). Inventário, Lisboa, IBNL, 1995, p. 38. 23 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 129. 24 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 250. 25 Saraiva, Antonio José e Oscar Lopes (s/d), História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, p. 843. 26 Catroga (2001), Antero de Quental..., p. 150. 27 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 174. 28 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 181. 29 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 248. 30 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 168. 31 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 185. 32 Catroga (2001), Antero de Quental..., p. 223. 33 Quental, Antero (1989), Cartas II, Organização, introdução e notas de Ana Maria Almeida Martins. Lisboa: Universidade dos Açores/Editorial Comunicação, pp. 833-834. 34 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 204. 35 Saraiva e Lopes (s/d), História da Literatura Portuguesa, p. 862. 36 Quental(1989), Cartas II..., pp. 833-834. 37 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 239. 38 Nogueira, César (s/d), Notas para a História do Socialismo em Portugal (1871-1910), Lisboa, Portugália Editora, p. 74. 39 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 200. 40 Nogueira (s/d), Notas para a História do Socialismo..., p. 112. 41 Nogueira (s/d), Notas para a História do Socialismo..., p. 131. 42 Nogueira (s/d), Notas para a História do Socialismo..., p. 131. 43 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 318. 44 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 205. 45 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 208. 46 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 328. 47 Quental, (1994), Obras Completas..., pp. 214-215. 48 Quental, (2008), Fotobiografia..., p. 348. 49 Queiroz (2008), «Um gênio…», p. 348. 50 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 220. 51 Magalhães, Luís de (2008), «A vida de Antero», in Ana Maria de Almeida Martins, Antero de Quental – Fotobiografia, Lisboa/Ponta Delgada, INCM/C. M. Ponta Delgada, p. 358. 52 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 222. 53 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 228. 54 Carvalho, Joaquim de (1932), «Formação da ideologia republicana», in Luiz de Montalvor. História do regimen republicano em Portugal, vol. I. Lisboa, p. 211. 55 Serrão, Joel (1969), Do Sebastianismo ao Socialismo em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, p. 67. 56 Quental, Antero de (1980), O que é a Internacional, Lisboa, Ulmeiro, p. 7. 57 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 196 e 199. 58 Quental, (1994), Obras Completas..., pp. 170-171. 59 Ver: Javier Fernandez Sebastián (2007), «Liberalismos nascientes en el Atlántico Iberoamericano. ‘Liberal’ como concepto y como identidad política, 1750-1850». Texto apresentado durante o Sexto Panel del Congreso Internacional «El lenguage de la modernidad em Iberoamérica. Conceptos políticos en la era de las independencias», mimeo, 2007, p. 11. 60 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 159. 61 Catroga (2001), Antero de Quental..., p. 167. 62 Martins, Oliveira (1990), Portugal e o Socialismo, Lisboa, Guimarães Editora, 99. 63 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 117. 64 Quental, (1994), Obras Completas..., pp. 129-130. 65 Quental, (1994), Obras Completas..., pp. 131-132. 66 Quental, (1994), Obras Completas..., pp. 134-146. 67 Quental, (1994), Obras Completas..., pp. 147-149. 68 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 150. 69 Quental, (1994), Obras Completas..., pp. 152-154. 70 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 168. 71 Quental, (1994), Obras Completas..., pp. 185-186. 72 Quental, (1994), Obras Completas..., p. 206. 73 Proudhon, P.-J. (1962), Justice et liberté, Textes choisis par Jacques Muglioni, Paris, PUF, pp. 198-199. Topo da página Para citar este artigoReferência do documento impressoFernando Sá, «Liberdade, Igualdade e Fraternidade no pensamento político de Antero de Quental», Ler História, 64 | 2013, 111-162. Referência eletrónicaFernando Sá, «Liberdade, Igualdade e Fraternidade no pensamento político de Antero de Quental», Ler História [Online], 64 | 2013, posto online no dia 11 novembro 2014, consultado no dia 08 novembro 2022. URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/275; DOI: https://doi.org/10.4000/lerhistoria.275 Topo da página AutorFernando SáPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor e coordenador editorial da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É investigador de pós-doutoramento do Centro de Estudos de História Contemporânea do ISCTE-IUL. Qual o significado do lema Liberdade Igualdade e Fraternidade no contexto do século XVIII?O slogan Liberté, Egalité, Fraternité ("Liberdade, igualdade, fraternidade" em francês) é uma menção ao slogan usado durante o processo de Revolução Francesa, que buscava entre outras coisas o fim dos privilégios das classes mais altas que dominavam a França.
Que significado o lema Liberdade Igualdade e Fraternidade tem?Liberté, Egalité, Fraternité (Liberdade, igualdade, fraternidade, em português do francês) foi o lema da Revolução Francesa. O slogan sobreviveu à revolução, tornando-se o grito de ativistas em prol da democracia liberal ou constitucional e da derrubada de governos opressores à sua realização.
Quais as ideias de liberdade e igualdade defendida no contexto da história?"Liberdade, Igualdade e Fraternidade", esse foi o lema dessa luta que marcou a história e que determinou as diretrizes do que hoje entendemos por justiça e democracia. Os fatores que desencadearam a Revolução Francesa, no final do século XVIII, são fundamentalmente de ordem ideológica e econômica.
Que significados o lema Liberdade Igualdade e Fraternidade tem para você reflita a partir de suas vivências e Faça um comentário?Resposta. união, afeto de irmão para irmão.
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