Qual foi o momento histórico em que houve uma mudança muito significativa na Contabilidade?

Marco Aurélio Gomes Barbosa. Contador público no Brasil, Especialista em Auditoria e Perícia Contábil, Mestre em Contabilidade e Controladoria e Doutor em Ciências Contábeis. Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Contabilidade da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Membro da Academia de Ciências Contábeis do Rio Grande do Sul, Membro da Comissão de Educação da AIC. / @contadornahistoria

Há algum tempo conversava com um grande amigo sobre nossas caminhadas pessoais, o quanto somos frutos dos esforços de nossos pais, muitos vindos de outras partes do mundo. Sentimo-nos orgulhosos por lembrar da trajetória que nos sucedera, bem como da vida que estávamos construindo, sempre buscando deixar um legado positivo para nossos filhos e netos. Creio que este tipo de conversa faça parte do cotidiano da vida de muitos, pois, de fato, é necessário conhecer e valorizar todo o empenho dos que labutaram antes de nós, daqueles que conquistaram muitos dos bens e direitos que hoje usufruímos.

O conhecimento das origens remete à prévia identificação e estudo dos mais variados elementos presentes na construção social, quer na busca por informações pessoais, quer na busca por informações institucionais. Ao passo que se conhece a construção histórica de algo ou alguém pode-se estabelecer o merecido reconhecimento, por vezes esquecido ou perdido no tempo. É esta busca por estabelecer a verdade, ainda que parcial, trazendo à tona nomes de pessoas e instituições, que motiva a busca por elementos da origem e da evolução da Contabilidade e do seu ensino. Estou certo que devemos buscar a origem e a evolução da profissão contábil da mesma forma que nos orgulhamos de nossa origem familiar, bem como de todos esforços envidados.

Ao longo de minhas investigações tenho a felicidade de me deparar com grandes fontes de informações acerca da história da Contabilidade em periódicos, livros, revistas e documentos, considerando também as fontes orais quando possível. Porém, pelo menos em grande parte, as informações referem-se majoritariamente a Europa e a América do Norte. De fato, estas regiões foram contempladas com grandes pesquisadores na área, como o Canadense Richard Mattessich e o espanhol Esteban Hernandez-Esteve, entre outros.

Richard Mattessich, falecido em 2019, atuou por anos na Universidade da Columbia Britânica, onde desenvolveu uma série de estudos, dentre os quais alguns representativos dedicados à história da Contabilidade, como Management Accounting: Past, Present and Future, em 1980, Modern Accounting Research: History, Survey and Guide, em 1984, Two Hundred Years of Accounting Research: An International Survey of Personalities, Ideas and Publications, em 2008.

O Professor Hernandez-Esteve atuou como intendente da Escuela de Altos Estudios Mercantiles de Barcelona e Professor da Universidad Complutense de Madrid, sendo o Patrono do Encontro de História da Contabilidade, promovido pela Associación Española de Contabilidad y Admonistración de Empresas – AECA. Tem publicado, ao longo de décadas, diversos estudos relevantes, como Pedro Luis de Torregrosa, primer contador del libro de Caxa de Felipe II: Introducción de la contabilidad por partida doble en la Real Hacienda de Castilla (1592), em 1985, Some reflections on the orientations and volume of accounting history research in the 21st century, em 2008, Accounting history, a privileged way to approach historical research. An illustrative case: The war of France and the holy see against Spain, 1556-1559, em 2010, e Rafael Donoso Anes y su contribución a la Historia de la Contabilidad española, em 2014.

Elementos da Historicidade Contábil Mundial

Porém, algumas pesquisas contribuem para o conhecimento da rigem e evolução da Contabilidade em âmbito mundial. Considerando as mais remotas origens, o brasileiro Paulo Schmidt apresenta grande contribuição, relatando um remoto sistema tautológico, representativo de bens, como algumas espécies de animais, materializando o patrimônio em tokens (fichas) de barro, numa verdadeira relação de débito e crédito em 8,000 a.C. (Schmidt & Santos, 2018). Este sistema de fichas foi localizado em Uruk, antiga cidade da Suméria, e representa o mais antigo sinal de um controle patrimonial.

Imagem 1 – Tokens de barro

Qual foi o momento histórico em que houve uma mudança muito significativa na Contabilidade?

Schøyen (2017)

Ao longo da evolução das práticas humanas outras evidências emergem em diversos povos. Pode-se suscitar que esta evolução se deve à própria vocação da Contabilidade, promover informações por meio do controle e da gestão patrimonial. De forma resumida, a Tabela 1 apresenta parte deste processo.

Tabela 1: A contabilidade nos povos antigos

Índia

Fabricante e exportadora de tecidos, adornos de marfim, papel e algodão. Os registros eram feitos através de códigos, dentre os quais se destaca o de Manu (séculos XVI e VI a.C.), que tratava de coletores de impostos e dos controles administrativos efetuados por um ministro do rei.

China

Fabricava seda em diversas cores e estampas, além de cerâmica, louça e papel. Existem títulos de créditos e moedas do século VIII a.C..

Egito

Devido à sua burocracia, composta por diversos funcionários públicos com a função de controlar o tesouro, os celeiros e o patrimônio real, a contabilidade era exercida e ensinada a quem quisesse algum destes cargos. Dado seu avanço econômico, a contabilidade era indispensável para as atividades públicas.

Fenícia

Dedicado, basicamente, ao comércio internacional. Fundou várias colônias na Europa, Ásia e África, exercendo domínio nas atividades comerciais até o século V a.C. No museu de Londres existem duas lâminas com inscrições de despesas da administração pública.

Israel

Existiam doze tribos em seu território, cada uma com uma função diferente. Cabia a uma delas (a dos Levitas) efetuar a administração da beneficência pública, além de realizar atividades financeiras. Até hoje, depois de trinta séculos, existem anotações das normas que estabeleciam a guarda dos valores e os registros dos negócios.

Pérsia

Não possuindo terras propícias à agricultura e pecuária, dedicou-se ao fabrico de móveis e tapetes e à conquista de terras através de guerras. Entre 521 e 485 a.C. houve um inventário do patrimônio do Império para a cobrança de impostos de igrejas, dos comerciantes, entre outros.

Assíria

Possuía uma indústria bastante desenvolvida e diversificada, além de terras férteis. O código do rei Hamurabi (2123-2081 a.C.) regulava o comércio e a relação entre patrões e empregados, sendo estes incumbidos de registrar as operações na contabilidade. Existia, ainda, no reinado de Nabucodonassor, comércio bancário (Egibi e Filhos).

Grécia

Diversas são as fontes que comprovam a existência da contabilidade neste país. O rei Felipe e, mais tarde seu filho Alexandre, conquistaram diversas áreas e riquezas, contabilizadas à época. No século VIII a.C. o comércio bancário se desenvolveu, realizando várias operações financeiras. Além disso, existiam coletores de impostos e revisores de contas.

Roma

O império romano teve três sistemas de governo, a monarquia, a república e o império. A contabilidade romana desempenhou diversas evoluções, e pode ser identificada como de excelente qualidade, oriunda de outros povos, muito embora haja poucas provas.

Adaptado de Silva e Martins (2007)

Saltando séculos, a partir da Idade Moderna, a Contabilidade passa a apresentar uma proeminente evolução. Elementos como o final da Idade das Sombras, a superação da peste negra, a deflagração das investidas cristãs no oriente e, principalmente, o crescimento comercial italiano, em especial na região de Veneza, e a invenção da Prensa de Gutenberg, promoveram um evoluído ambiente comercial e financeiro, alavancando a necessidade de controles patrimoniais mais evoluídos.

Desde deste período até o atual, Idade Contemporânea, várias foram as contribuições de diversas regiões e pensadores para a consolidação da Contabilidade, tanto no mercado quanto na academia. A Tabela 2 sintetiza parte das contribuições das respectivas fases, chamadas de Escolas do Pensamento Contábil.

Tabela 2: Evolução do Pensamento Contábil

Escola Contista

Preocupava-se com os registros contábeis através das contas, surgimento da Teoria das Cinco Contas proposta por Edmundo Degranges em 1795.

Escola Administrativa

Acrescenta à contabilidade propriedades administrativas, deixando de ser apenas um método de escrituração.

Escola Personalista

Foca nas relações de direito intrínsecas às aziendas. Cria o Pensamento Logismográfico, no qual a contabilidade deve agregar os fatos econômicos, administrativos e contábeis.

Escola Controlista

Divide a administração em geral e financeira, classificando a contabilidade como ciência do controle econômico.

Escola Norte-Americana

Caracteriza-se pela organização dos profissionais e pela preocupação com a evidenciação das informações contábeis.

Escola Matemática

Reduz a contabilidade a uma ciência exata, servindo de instrumento auxiliar a outros ramos do conhecimento.

Escola Neocontista

Determina que o valor passa a ser o fundamento das contas, concentrando-se na Teoria Positiva das contas.

Escola Alemã

Centrava-se nos estudos das economias das empresas e de alguns fundamentos contábeis, com especial atenção aos elementos de custos.

Moderna Escola Italiana

A contabilidade passa a estudar todos os fatos da gestão patrimonial das aziendas.

Escola Patrimonialista

Define que o objeto da contabilidade é o patrimônio.

 Adaptado de Schmidt (2000)

Estas contribuições de países europeus e do norte da américa apresentam fortes traços no nosso desenvolvimento profissional atual. Inegáveis contribuições tiveram para a formação do que somos hoje, como profissionais, como classe associativa e, principalmente, como agentes de transformação social. Mas cabe, no mínimo, um questionamento: Não há contribuição significativa dos países latino-americanos?

Traços da História Contábil Latino-Americana

Existe, em alguns países, significativas investigações realizadas acerca da história da Contabilidade. Destes estudos se retira preciosas informações, mas insuficientes para estabelecer as verdadeiras – e por certo extensas – contribuições de instituições e profissionais do continente. Sem a intenção de abranger todos os países, bem como todas as obras publicadas, temos o cenário descrito a seguir.

Na Argentina, Carrizo (2013) aborda a questão da Contabilidade e das associações de socorro mútuos em face do centenário da Associação Espanhola de Socorros Mútuos de Comodoro Rivadavia. Já em outra obra, de 2015, apresenta um estudo evolutivo sobre a profissão de contador público e das instituições de ensino do país, em especial da Patagônia. Já na Colômbia, Clarke (1967) e César & Mattos (2009) apresenta um apanhado de elementos históricos, desde o período da conquista.

Bátiz-Lazo, Borreguero, Maixé-Altés & Torrado (2012) trazem do México as primeiras evidências da introdução do Método de Partidas Dobradas no país no começo do século XIX, estabelecendo um paralelo com o mesmo processo na Espanha, enquanto Eastman (2009) examina a educação contábil no país e nos Estados Unidos. Na Bolívia, Kehoe, Machicado & Peres-Cajías (2019) estudaram o enfoque fiscal no período de 1960 a 2017, com atenção ao déficit internacional e suas reservas.

No Brasil, além deste autor, outros investigadores dedicam-se há algum tempo ao estudo da história da Contabilidade. A partir destes estudos se pôde conhecer parte do impacto causado pela chegada da Família Real Portuguesa à cidade do Rio de Janeiro no ano de 1808, que promoveu significativas mudanças nos cenários econômico, político e de regulação, e que motivaram a evolução da Contabilidade como um instrumento necessário ao controle das finanças públicas.

O que ainda pode ser feito?

O controle patrimonial é inerente ao ser humano, desde os mais remotos tempos, ainda que como forma de manutenção da subsistência. Isso remete, inclusive, ao período pré-colonial da América Latina. Já no processo de colonização, havia um forte interesse no controle dos recursos existentes em nossos países, de forma organizada, para suprir os reinos europeus. A partir do século XIX temos uma organização formal, estruturada, tanto em procedimentos quanto em hierarquia de executores. Já no século seguinte, surge a tecnologia e seus inegáveis benefícios.

Por ser uma ciência de natureza social, a Contabilidade está presente em todas as atividades laborativas e associativas da sociedade. Para a melhor compreensão do processo evolutivo, estudar instituições e personalidades que contribuíram para o avanço da Contabilidade na América Latina se torna algo não apenas desejável, mas sim necessário. Precisamos mostrar para o mundo os relevantes feitos dos profissionais de outrora do nosso continente.

Busque investigar a origem e a evolução do ensino contábil, as histórias de associações, institutos, colégios profissionais, conheça os processos regulatórios que impactam a atividade contábil, como por exemplo o processo de adoção das normas internacionais de contabilidade ou as primeiras leis regulatórias dos mercados de capitais.

Obviamente este tipo de estudo remete a um esforço quase que arqueológico, apresentando limitações, sendo a maior delas a falta de preservação da cultua e da memória. Todavia, a investigação histórica em Contabilidade trará grandes feitos à luz do conhecimento e, por certo, propiciará a todos um imenso orgulho da trajetória profissional que nos sucedera.

Referências

Bátiz-Lazo, B.; Borreguero, J.; Maixé-Altés, J. & Torrado, M. (2012). Adoption of Double Entry Bookkeeping in Mexico ans Spain. Am. Lat. Hist. Econ. 19(3), p. 164-205.

Carrizo, W. (2013). Contabilidad y asociaciones mutuales. Cien años de la Asociación Española de Socorros Mutuos de Comodoro Rivadavia en la Patagonia argentina (1910 – 2010). De Computis, 18, 81-110.

Carrizo, W. (2015). Contabilidad y profesión: la evolución de la profesión de contador público y de las instituciones de enseñanza de la contabilidad en la República Argentina (1794-1960): Particularidades de la región patagônica. De computis, 23, 6-29.

César, C; Mattos, C. (2009). Evolución histórica de la contabilidad em Colombia a partir de la conquista: Un análisis a la luz del método dialéctico. Universidad Libre Sede Cartagena.

Clarke, A. (1967). Historia de la Contabilidad en Colombia. Dovel.

Eastman, J. (2009). An examination of accounting education in Mexico and the United States. Senior Honor Projects. Paper 143. Disponível em http://digitalcommons.uri.edu/srhonorsprog/143

Galassi, G. (2017). Prof. Richard Mattessich at 95: His research methodology. De Computis, 24, 131-152.

Kehoe, T.; Machicado, C.; Peres-Cajías, J. (2019). The Monetary and fiscal history of Bolivia, 1960-2017. Mational Bureau of Economic Research, disponível em https://www.nber.org/papers/w25523.pdf

Schmidt, P. (2000). História do pensamento contábil. Bookman.

Schmidt, P.; Santos, José L. (2018). Identificação e descrição das primeiras ferramentas de controle contábil através da ciberarqueologia. Sociedade, Contabilidade e Gestão, 13(1), 16-39.

Schøyen, M. (2017). An academic & educational resource from the private collection – Neolithic counting tokens. Disponível em https://www.schoyencollection.com/mathematics-collection/pre-literate-counting/complex-counting-tokens-ms-4522-1

Silva, A. C. R.; Martins, W. T. S. (2007). História do pensamento contábil: com Ênfase na história da contabilidade brasileira. Juruá.

Em que momento da história a Contabilidade mais evoluiu?

Já se utilizavam, de forma rudimentar, o débito e o crédito, oriundos das relações entre direitos e obrigações, e referindo-se, inicialmente, a pessoas. O aperfeiçoamento e o crescimento da Contabilidade foram a conseqüência natural das necessidades geradas pelo advento do capitalismo, nos séculos XII e XIII.

Qual acontecimento histórico representou novo impulso ao desenvolvimento da Contabilidade?

O grande impulso para o desenvolvimento normativo da contabilidade se dá nos Estados Unidos, após a quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929.

Qual foi a primeira grande inovação dada pela Contabilidade?

Uma inovação dessa escola foi à criação da conta de capital, que determinava a dívida da empresa para com os proprietários. A criação de inúmeras sociedades por ações nessa época gerou a necessidade desta separação do patrimônio da empresa do dos proprietários.

Como a Contabilidade evoluiu ao longo do tempo?

A Contabilidade surgiu há 2.000 a.C com a necessidade controlar o patrimônio. Os primeiros exemplos de contabilização foram encontrados na Suméria e Babilônia, que hoje é nomeado Iraque, também no Egito e China. Sua evolução foi lenta até o aparecimento da moeda.