"O Programa Saúde da Família destaca-se como uma tentativa de transformar as práticas da atenção à saúde em potencial estratégico, com o propósito de centrar a atenção na saúde..."
O Programa Saúde da Família destaca-se como uma tentativa de transformar as práticas da atenção à saúde em potencial estratégico, com o propósito de centrar a atenção na saúde, com ênfase na integralidade das ações, focando no indivíduo como um sujeito integrado à família e à comunidade.
Segundo o Ministério da Saúde, o principal propósito do PSF é o de reorganizar a prática da atenção à saúde em novas bases e substituir o modelo tradicional, levando-a para mais perto da família e, com isso, melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Prioriza as ações de prevenção, promoção e recuperação da saúde do indivíduo de forma integral e contínua, sendo o atendimento prestado na UBS ou no domicílio, pelos profissionais que compõem as equipes de Saúde da Família.
Essas equipes são estruturadas pelos seguintes profissionais: no mínimo, por um médico, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e de quatro a seis agentes comunitários de saúde. Juntos, eles atuam na promoção, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais frequentes, assim como na manutenção da saúde da comunidade, conforme Departamento de Atenção Básica, do Ministério da Saúde. Posteriormente, foi acrescentada a Equipe de Saúde Bucal, sendo composta por odontólogo e auxiliar ou técnico em saúde bucal.
A exemplo dos odontólogos, outros profissionais como assistentes sociais e psicólogos poderão ser incorporados às equipes ou formar equipes de apoio, segundo as necessidades e possibilidades locais. Cada unidade básica de saúde da família pode atuar com uma ou mais equipes, dependendo da concentração de famílias no território sob sua responsabilidade.
As equipes de saúde da família têm como base de trabalho as unidades de saúde. O atendimento é direcionado às famílias cadastradas de uma área delimitada, através da unidade de saúde e acompanhamento domiciliar, o que favorece a aproximação e o maior conhecimento da equipe profissional com a comunidade. Cada equipe do PSF atende entre 600 a 1.000 famílias, aproximadamente 3.500 pessoas, em média.
A ESF prevê que o profissional tenha compreensão das várias disciplinas para lidar com a complexidade do ser humano, relacionadas, em seu contexto pessoal, à dinâmica familiar, às suas características sociais, culturais, demográficas e epidemiológicas. Isso requer dos profissionais uma atitude diferenciada, pautada no respeito, na ética e no compromisso com as famílias pelas quais são responsáveis, mediante a criação de vínculo de confiança e de afeto, atuando de forma participativa na construção de ambientes mais saudáveis no espaço familiar.
Esse novo modelo de assistência supõe envolvimento dos integrantes das equipes com a população de seu território de abrangência, para que seja criado um vínculo entre a família e a equipe, de modo que as equipes possam planejar e executar ações que tenham como objetivo resolver os problemas dos usuários.
A necessidade de uma equipe multidisciplinar e interdisciplinar tem demandado a incorporação de outras categorias ao PSF: educador físico, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social, nutricionista e fonoaudiólogo.
As categorias que não a de médico, enfermeiro e odontólogo não têm ainda uma proposta acordada, seja local ou nacionalmente, do que fazer na Atenção Primária de Saúde, como modelo de atenção estruturante. O trabalho da equipe da saúde da família requer a compreensão das várias disciplinas para lidar com a complexidade do ser humano em atenção primária, pois ele enfoca a saúde em seu contexto pessoal, familiar e social.
O processo de trabalho desses profissionais considera o indivíduo na família e na comunidade como um todo integrado, onde em que os problemas devem ser detectados pela interação e resolvidos com a participação de todos.
"O trabalho em grupo é um desafio para a equipe multiprofissional da Saúde da Família, levando à reflexão da necessidade de repensar a formação acadêmica e o preparo dos profissionais que atuarão no PSF..."
O trabalho em grupo é um desafio para a equipe multiprofissional da Saúde da Família, levando à reflexão da necessidade de repensar a formação acadêmica e o preparo dos profissionais que atuarão no PSF, como profissionais preparados para serem generalistas e interagirem com a comunidade.
O papel dos Agentes Comunitários de Saúde
O papel dos agentes comunitários no Brasil foi institucionalizado em 1996 no Programa de Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Porém, somente em 1999, com o decreto presidencial no. 3.189, de 4 de outubro, é que a estratégia de saúde da família e o PACS se tornaram programas de interesse público. No Canadá, o PACS foi implementado entre nos anos 1980 a 1990. Avaliações das transformações dos papéis dos agentes comunitários em saúde têm sido realizadas tanto no Canadá como no Brasil. Essas análises críticas têm demonstrado que o sucesso do PACS depende de múltiplos fatores e são aplicados à realidade e aos contextos próprios onde em que estão inseridos.
Ações orquestradas entre a iniciativa pública e privada, com as lideranças das equipes multidisciplinares de saúde são essenciais para o alcance de resultados positivos. Transformações sociais também precisam ocorrer, de forma a fazer com que o capital social aplicado à saúde sirva às necessidades sociais, à promoção da justiça social e ao empoderamento da população, e não aos interesses político-partidários ou aos interesses econômicos capitalistas.
Uma revisão sistemática evidenciou que as modalidades socioeducativas empregadas pelos ACS no Brasil têm sido muito mais impositivas do que integrativas. O papel dos ACS tem-se confundido com o de auxiliares de enfermagem. Existe um direcionamento maior das atividades desenvolvidas para o rastreamento de doenças, para a prevenção de riscos e agravos pelo controle do calendário vacinal, das condições de higiene e saneamento das moradias, da orientação sobre pré-natal, aleitamento materno, nutrição e vigilância do uso adequado de medicamentos; do que das questões propriamente relacionadas à promoção de saúde. Pouca valorização da cultura local, pouco estímulo às atividades de lazer e solidariedade, poucas modalidades nas quais o autor e ator das ações sejam os próprios membros da comunidade e pouca “escuta” se revelam nos resultados dos programas adotados.
O papel dos ACS deveria ressaltar o valor de cada indivíduo na comunidade e aproveitar o que emerge do contexto social. Um estudo comparativo entre o PSF no Canadá e na Jordânia demonstrou que os modelos nesses países são semelhantes em relação aos cuidados com alimentação, saúde mental, trabalho, violência e qualidade de vida. Entretanto, diferem no modo de responsabilização, na recomendação para a prática de atividade física e na abordagem dos problemas que envolvem os relacionamentos interpessoais. Condições socioculturais brasileiras com certeza apresentam, com certeza, diferenças significativas na adoção de medidas de promoção da saúde que precisam ser melhor identificadas.
O nível educacional do ACS brasileiro, do qual só se exige saber ler e escrever e se paga um salário mínimo, produz uma limitação no desenvolvimento das intervenções socioeducativas por eles realizadas. É necessária uma condição cognitiva mínima para que os ACS possam ser capacitados para cumprir adequadamente seu papel. Outro problema que perpetua a condição pouco aderente envolve a falta de clareza do supervisor sobre a promoção da saúde no nível de atenção primário. O papel de supervisor geralmente é desempenhado por um enfermeiro que possui uma formação no modelo biomédico e reproduz automaticamente o padrão adotado nos níveis de atenção secundária e terciária. Como desempenha um papel de maior responsabilidade e liderança, o enfermeiro deve ser o primeiro a refletir sobre as orientações a atitudes frente aos agentes comunitários de saúde para que o PACS possa atingir sua principal meta de transformação social.
Barreiras para o êxito do PSF
Vê-se, assim, que as condições de saúde e doença são vivenciadas e encaradas de forma diferente por homens e mulheres, por negros e brancos, por profissionais, por agentes e pela comunidade. (link para artigo anterior) A própria sociedade espera condutas diversas face às enfermidades (quer acometam a si mesmos, quer a familiares e amigos). É possível inferir, diante disso tudo, que as questões de gênero e etnia constituem mais um determinante social de saúde e de cidadania.
Ademais, extrapolando-se a análise de gênero para uma análise mais ampla, de toda a rede social de um indivíduo, Gutierrez e Minayo dizem que a relação entre essa rede e a saúde individual pode representar um círculo virtuoso ou um círculo vicioso. Virtuoso porque, tanto o apoio da rede ajuda a proteger a saúde das pessoas como a pessoa saudável fortalece e amplia sua rede.
Vicioso porque, tanto a doença afasta a pessoa de sua rede quanto uma rede ausente piora as condições de saúde da pessoa. Nesse sentido, “a pobreza relativa das relações sociais constitui um fator de risco para a saúde comparável a fumar, a pressão arterial elevada, a obesidade e a ausência de atividade física”.
O PSF cumpre parcialmente sua função de facilitar o acesso da população à assistência em saúde. As experiências de maior sucesso são aquelas em que o atendimento básico é capaz de prestar a assistência necessária sem auxílio externo. Ao passo que os casos de maior complexidade podem ou não ser encaminhados com sucesso a unidades de níveis mais complexos.
Pode-se reafirmar que os princípios propostos pelo SUS para o modelo do PSF no Brasil, em tese, respondem às declarações universais e recomendações da Organização Mundial da Saúde para o cuidado biopsicossocial da saúde que deveria fortalecer os direitos humanos e a cidadania. Entretanto, na prática, o PSF se sustenta como mais um elemento de segregação social, envolvendo problemas que se perpetuam na sociedade brasileira, como a incompreensão do papel do agente comunitário, limitações das equipes multiprofissionais, discriminações sobre responsabilidades do cuidado pelos gêneros e etnias e a distinção do cuidado às diferentes classes socioeconômicas.
Leia também:
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Princípios norteadores do SUS e do Medicare
O papel da comunidade na atuação do SUS
Qual o papel da União dos Estados e Municípios nas políticas de saúde?
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