Uma das questões geográficas e históricas mais polêmicas no espaço brasileiro é a dos territórios indígenas. Sabemos que, antes da chegada dos povos europeus no continente sul-americano, existiam milhares de povos indígenas habitando aquilo que é hoje considerado como o território do Brasil. Desse total, existem ainda cerca de 305 etnias atualmente, com cerca de 180 línguas distintas, a maioria delas filiada ao Tupi e ao Jê.
Diante disso, existe uma profunda questão a ser resolvida com esses povos, que é a demarcação das suas terras, ou seja, a delimitação legal das áreas indígenas. A Constituição Federal define as Terras Indígenas como todas as áreas permanentemente habitadas pelos índios, sendo elas utilizadas para suas atividades produtivas e também para a preservação de suas culturas e tradições. Portanto, mais do que simplesmente a área de moradia direta, as terras indígenas devem envolver todo o espaço usado pelos índios para garantir sua sobrevivência, incluindo áreas de caça e extrativismo.
As áreas indígenas do Brasil são de propriedade da União, de forma que os recursos naturais existentes dentro de seus limites são de pertencimento único e exclusivo dos índios que habitam esse território. Além disso, somente com autorização legal da Fundação Nacional do Índio (Funai), é possível chegar a essas áreas não sendo um membro pertencente às etnias indígenas, sendo, vedado, portanto, o acesso irrestrito.
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- 1 - Como ocorre a demarcação de terras no Brasil?
Como ocorre a demarcação de terras no Brasil?
No Brasil existem aproximadamente 544 terras indígenas*, sendo a maior parte localizada na área da Amazônia Legal. Desse total, 426 estão regularizadas, 38 estão delimitadas, 66 estão declaradas e 14 estão homologadas, havendo ainda mais 129 locais em estudo. As fases do processo de demarcação de terras obedecem à seguinte ordem:
1º – São realizados estudos de identificação e delimitação pela Funai, envolvendo pesquisas geográficas, antropológicas, territoriais, ambientais e outras;
2º – É feita a delimitação, que é repassada via Diário Oficial para o Ministério da Justiça, responsável pela sua declaração de limites;
3º – Com a autorização, as terras tornam-se declaradas após a realização de novos estudos, de forma que a área torna-se de uso exclusivo dos índios e a demarcação é autorizada. A demarcação física fica a cargo da Funai;
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4º – É feito um levantamento fundiário pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para avaliar as benfeitorias realizadas pelos proprietários da área que agora pertence aos índios, pois o dono das terras perde a posse, mas recebe uma indenização caso tenha feito algumas dessas benfeitorias no local;
5º – As terras são homologadas pela Presidência da República;
6º – É feita a retirada dos ocupantes não índios da área, com pagamento das eventuais indenizações;
7º – É concluída a regularização e, portanto, a demarcação oficial com registro em cartório em nome da União;
8º – A Funai torna-se responsável por interditar a área, a fim de garantir o isolamento e a proteção dos indígenas que ali habitam.
Nem sempre essa sequência acima acontece de forma linear, isto é, contínua. Muitas vezes, são realizados recursos judiciais e disputas por parte dos proprietários, agronegociantes, agricultores e outros com o objetivo de garantir para si o uso daquelas terras. Com isso, mesmo com a demarcação sendo concluída, o trâmite leva muitos anos para concretizar-se, o que faz com que a questão territorial indígena no país torne-se ainda mais dispendiosa para ambos os lados.
Em alguns casos, grupos de posseiros, grileiros e fazendeiros entram em conflitos com os indígenas em torno da disputa territorial. Muitas vezes, os limites impostos pela demarcação não são respeitados, o que se configura como um grave crime, pois há invasão de uma área de proteção patrimonial.
Para resguardar a sobrevivência dos povos indígenas e suas tradições, é necessário garantir a segurança deles, sobretudo no sentido de proteger suas áreas demarcadas e realizar, o mais rápido possível, a demarcação daquelas que necessitam de tal para a manutenção segura de suas práticas. A expectativa é a de que, nos próximos anos, mais terras sejam demarcadas, o que depende não só do poder público, mas também da articulação dos movimentos sociais e, claro, das lideranças indígenas no sentido de lutarem pela sua soberania territorial.
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* Dados da Funai (2014)
Por Me. Rodolfo Alves Pena
Em todo Brasil, lideranças indígenas estão mobilizadas em defesa da vida no período de pandemia e contra agenda que tenta negar seus direitos à terra
Desde o início da pandemia, os povos indígenas estão se organizando para se proteger não apenas da covid-19, mas também de invasores que exploram ilegalmente suas terras em atividades econômicas ilegais como o garimpo e espalham o vírus em seus territórios.
Para conter as ameaças e intimidações de invasores e as mortes causadas pelo vírus, organizações indígenas recorrem ao STF (Supremo Tribunal Federal). Ao mesmo tempo, se mobilizam contra a agenda de retirada dos direitos dos indígenas que avança no Congresso Nacional.
“Lutamos com nossas rezas e cantos. Os nossos escudos são os maracás e nossa ancestralidade”, diz, em nota, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), organização responsável pelo Acampamento Terra Livre, que reuniu mais de 850 lideranças em Brasília (DF) durante o mês de junho. As manifestações na capital federal incentivaram também diversos protestos em aldeias e rodovias pelo país.
Confira em 5 pontos as principais ameaças aos povos indígenas neste momento:
1. Tese do “marco temporal” no STF
Defendida por ruralistas, a tese do “marco temporal” afirma que o direito ao território deve ser concedido apenas aos povos indígenas que comprovarem que ocupavam ou reivindicavam suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. A tese, no entanto, ignora, por exemplo, remoções forçadas que esses povos sofreram ao decorrer do tempo e a luta idígena na consolidação dos direitos inseridos no texto constitucional.
A discussão chegou ao STF por meio do RE (Recurso Extraordinário) 1.017.365, que trata de um pedido de reintegração de posse movido pelo IMA (Instituto do Meio a Ambiente) de Santa Catarina contra a Funai (Fundação Nacional do índio) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da TI (Terra Índigena) Ibirama-Laklanõ. A terra em disputa já foi identificada por estudos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública como parte do território tradicional do povo Xokleng.
Em 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do RE, ou seja, a decisão deste julgamento poderá ser aplicada em outros casos semelhantes. Com isso, medidas legislativas, por exemplo, terão que respeitar a decisão do STF. Portanto, se o Supremo rejeitar a tese do “marco temporal”, será um importante movimento na garantia dos direitos constitucionais dos povos originários. A previsão é que o Supremo julgue este recurso em 25 de agosto de 2021.
- Leia mais: Marco temporal: STF começa a julgar futuro da demarcação de Terras Indígenas
- Marco temporal e demarcação de terras indígenas
2. PL do “marco temporal” no Congresso Nacional
Em tramitação na Câmara dos Deputados, o PL 490/2007 é baseado na mesma tese do “marco temporal”. O texto deste projeto, aprovado em junho na CCJ (Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça), inviabiliza a demarcação de novas áreas e abre possibilidades para revogar territórios já demarcados, de acordo com o rito legal em uso no Brasil.
Isso porque a competência em conduzir o novo processo de demarcação seria transferida do Poder Executivo para o Poder Legislativo. Assim, todo o processo realizado atualmente pela Funai, que se orienta por critérios técnico-científicos e legais, passaria pela aprovação do Congresso Nacional, onde os direitos indígenas podem ser violados para atender outros tipos de interesses. Na prática, o projeto pode abrir as TIs a empreendimentos insustentáveis, como mineração, agropecuária e extração de madeira.
- Leia mais: Em carta a Lira, entidades afirmam que PL 490 inviabiliza demarcação de Terras Indígenas
- Conectas, APIB, COIAB, ISA e Comissão Arns denunciaram este projeto de lei à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a relatores especiais da ONU
3. ADPF-709 no STF: invasores e covid-19 nas comunidades indígenas
A presença de invasores, especialmente de garimpeiros, nas comunidades indígenas durante a pandemia de covid-19, levou a Apib e seis partidos políticos a apresentarem a ADPF (Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental) 709 ao STF, denunciando a omissão e as falhas do governo federal e demandando a elaboração de um plano emergencial para o controle da pandemia nas terras indígenas.
De acordo com um estudo elaborado pelo ISA (Instituto Socioambiental), existem riscos concretos de contaminação associados às invasões. Além disso, o levantamento traz exemplos de sete terras indígenas que, juntas, sofreram 85% do desmatamento total registrado pelo país em 2019: Terras Indígenas Yanomami (RR/AM), Karipuna (RO), Trincheira Bacajá (PA), Kayapó (PA), Munduruku (PA), Araribóia (MA) e Uru-Eu-Wau-Wau (RO).
Em decisão liminar que atendeu parcialmente o pedido das entidades, o ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADPF 709, obrigou o governo federal a apresentar uma série de medidas para enfrentar a situação. Apesar de positiva, a medida deixou de fora um elemento central para a proteção dos povos indígenas: a expulsão de invasores. A liminar aguarda análise definitiva pelo plenário do STF.
- Leia mais: ADPF-709: plano de ação para povos indígenas
4. Nova Lei de Licenciamento ambiental no Congresso
Em maio, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, permitindo, inclusive, a licença autodeclaratória. A nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 3729/04) está agora no Senado.
Caso seja aprovado, este PL pode causar problemas socioambientais, violações de direitos humanos e prejudicar a imagem internacional do país. Um dos pontos problemáticos que afeta diretamente os indígenas é a exclusão de análise de impactos diretos e indiretos e da adoção de medidas para prevenir eventuais danos causados pelos empreendimentos sob estas populações. Com isso, terras indígenas em processos de demarcação são ameaçadas por conta de interesses estritamente econômicos.
- Leia mais: Entenda os 8 pontos mais problemáticos do projeto de licenciamento ambiental aprovado pela Câmara
5. Linhão Tucuruí no território Waimiri-Atroari
Aprovado em junho pelo Congresso Nacional e sancionado ontem (13), o texto que facilita a privatização da Eletrobrás tem uma emenda “jabuti” que permite o início da obra do Linhão Tucuruí, rede de transmissão de energia Manaus – Boa Vista, sem licenciamento ambiental do Ibama e da Funai e sem ampla consulta aos indígenas.
Dos 721 km de extensão previstos no projeto de construção da rede, 125 cruzam Terra Indígena Waimiri-Atroari (AM-RR), localizada na divisa entre Roraima e Amazonas, onde vivem aproximadamente 2,1 mil pessoas em 56 aldeias, de acordo com dados do ISA (Instituto Socioambiental). A emenda atropela órgãos reguladores e os próprios indígenas e pode causar danos aos povos que vivem na área e ao meio ambiente.
- Leia mais: MP da Eletrobrás despreza Funai e Ibama na construção do “linhão” de energia
Indígenas participam de manifestação em Brasília (DF) durante o Acampamento Levante pela Terra, em junho de 2021. Foto: Isabella-Guljor