Quais são as explicações para a existência da persistente alta concentração fundiária no Brasil?

"Enfim, a concentração fundiária no Brasil, em propriedade capitalista da terra, cumpre um papel essencial na acumulação capitalista, e espinha dorsal do capitalismo brasileiro. Logo, impossível superar as injustiças sociais e as desigualdades sociais, políticas e econômicas enquanto não se socializar e democratizar o acesso a terra no Brasil", escreve frei Gilvander Moreira, padre da Ordem dos carmelitas, professor de “Direitos Humanos e Movimentos Populares” em curso de pós-graduação do IDH, em Belo Horizonte (MG), e assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT, do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI, do Serviço de Animação Bíblica – SAB e da Via Campesina em Minas Gerais.

Eis o artigo. 

Não é por acaso, nem por incompetência do Estado e da classe dominante que se mantém a concentração crescente da terra como propriedade privada capitalista no Brasil. Diferentemente de muitos outros países, o capitalismo no Brasil tem como sua essência constitutiva a concentração fundiária, porque é um capitalismo rentista: a renda da terra é conditio sine qua non da reprodução do capital no nosso país. “A concentração da propriedade privada da terra no Brasil, não pode ser compreendida como uma excrescência à lógica do desenvolvimento capitalista, ao contrário, ela é parte constitutiva do capitalismo que se desenvolveu no país. Um capitalismo que revela contraditoriamente sua face dupla: uma moderna no verso e outra atrasada no reverso” (OLIVEIRA, 2007, p. 132).

Há uma intrínseca relação entre capitalismo e propriedade privada da terra: são ‘carne e unha’, pois “o desenvolvimento capitalista transformou a terra em propriedade privada, e a terra transformada em propriedade privada promoveu o desenvolvimento capitalista” (MARÉS, 2003, p. 81).

A Lei 601/1850, a chamada Lei de Terras, no seu art. 3º, §2º, diz o que são terras devolutas: “[...] § 2º. As que não se acharem no domínio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura” (sic). Recorde-se que até 1850 não havia proprietário de terra no Brasil com o título de propriedade. A Coroa concedia terra para uso agropecuário. “Durante a colônia, a concessão de sesmaria era gratuita e abertamente nepotista, isto é, o funcionário com poderes de concessão podia favorecer a quem quisesse” (MARÉS, 2003, p. 71). Quem recebia certa área de terra em sesmaria tinha o direito de usufruto sobre a terra, vender/repassar para outro, mas a propriedade da terra continuava sendo da Coroa portuguesa. Os que recebiam a terra da Coroa, antes da Lei de Terras, não recebiam a propriedade da terra, apenas o direito de usufruto e tinham o dever de cultivar a terra, senão poderiam perder o direito de usufruto, conforme a Lei de 26 de junho 1375. “Aqueles para os quais a terra era doada tinham apenas o usufruto: a propriedade era reservada à Coroa” (VIOTTI da COSTA, 1999, p. 173). Entretanto, “a posse do fazendeiro conduzia à legitimação através do título de sesmaria; o mesmo não se dava com a posse do camponês, do mestiço, cujos direitos se efetivavam em nome do fazendeiro” (MARTINS, 1983, p. 35). O regime de sesmarias, extinto com a Constituição de 1824, “era racialmente seletivo, contemplando os homens de condição e de sangue limpo, mais do que senhores de terras, senhores de escravos” (MARTINS, 1991a, p. 64).

O geógrafo da USP Ariovaldo Umbelino alerta que com a Lei de Terras houve a inauguração da propriedade da terra e a separação entre o domínio[1] conferido pelo título de compra e a posse; pior, o sufocamento da posse pelo título de compra. “Outro ponto fundante da Lei de Terras de 1850 foi a separação entre o domínio garantido pelo título e a posse. O título da terra tornou-se pela lei superior à posse efetiva, assim, tornou aquele que tem efetivamente a posse da terra destituído do direito sobre ela. E garantiu, portanto, a aquele que sendo portador do título da terra, mesmo, sem nunca tê-la ocupado de fato, ter o domínio sobre ela, ou seja, o direito de propriedade privada da terra” (OLIVEIRA, 2010, p. 294).

Imprescindível considerar o que ensina Ernane Fidélis dos Santos: “A posse, passível de proteção possessória, deve ser aquela de que houve prova do fato da posse anterior” (SANTOS, 1999, p. 123). Logo, em strictu sensu, a propriedade privada da terra no Brasil se inaugurou apenas em 1850. “Na maior parte do período de vigência da escravidão, o uso da terra não dependia de compra, e sim de cessão de uso do domínio do que de fato pertencia à Coroa. Não existia, propriamente, a não ser como exceção, a propriedade fundiária, que só se formalizará com a Lei de Terras de 1850” (MARTINS, 2013, p. 40).

O latifúndio se fortaleceu açambarcando as terras dos camponeses posseiros, que, com história de perambulação, são expulsos ou mortos. Observe-se que os primeiros posseiros foram os mestiços, filhos de brancos e índias, os que não tinham direito a herança e nem eram escravos negros. “Tanto o deslocamento do posseiro quanto o deslocamento do pequeno proprietário são determinados fundamentalmente pelo avanço do capital sobre a terra” (MARTINS, 1983, p. 17). “Do nordeste, de 1890 a 1910, saíram milhares, centenas de milhares de camponeses em direção à Amazônia, para trabalhar na extração da borracha, o produto que na época chegou a emparelhar, em importância econômica, com o café. Esse nomadismo do camponês brasileiro foi e ainda é muito característico” (MARTINS, 1983, p. 49).

O sociólogo estadunidense Kevin Bales constata que o desenvolvimento econômico na economia global tem aumentado a concentração fundiária e, consequentemente, intensificado a exploração do capital. “Embora a modernização tenha produzido efeitos bons, trazendo melhorias para a saúde e a educação, a concentração de terra nas mãos de uma elite e o seu uso para a produção de fins comerciais, voltada à exportação, têm tornado os pobres mais vulneráveis. Por conta da presença de elites políticas no desenvolvimento mundial focadas no crescimento econômico, que não é voltado apenas aos seus interesses coletivos, mas requerido também por instituições financeiras globais, pouca atenção é dada ao razoável sustento da maioria” (BALES, 1999, p. 13).

Enfim, a concentração fundiária no Brasil, em propriedade capitalista da terra, cumpre um papel essencial na acumulação capitalista, e espinha dorsal do capitalismo brasileiro. Logo, impossível superar as injustiças sociais e as desigualdades sociais, políticas e econômicas enquanto não se socializar e democratizar o acesso a terra no Brasil.

Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.

1) Acampamento Veredinha, do MST, Vazante, MG, clama por terra e por ajuda humanitária. 31-08-2017.

 

 2) Bispo Dom José Aristeu e Padre Tonhão, da Diocese de Luz, MG, com o MST: 600 famílias em Córrego Danta, MG. 22-04-2017.

 

Nota: 

[1] É o vínculo legal da propriedade que corre com o registro imobiliário.

Referência:

BALES, Kelvin. Disposable people: new slavery in the global economy. Berkeley: University of California Press, 1999.

MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.

MARTINS, José de Souza. MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. 9ª edição. São Paulo: Contexto, 2013.

 Expropriação e violência: a questão política no campo. 3a edição. São Paulo: HUCITEC, 1991.

 Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A questão agrária no Brasil: não reforma e contrarreforma agrária no governo Lula. In: Vv.Aa. Os anos Lula: contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de janeiro: Garamond, p. 287-328, 2010.

 Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007. Disponível em 

VIOTTI DA COSTA, Emília. Da monarquia à república: momentos decisivos. 6ª edição. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

Belo Horizonte, MG, 13-03-2018

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Concentração fundiária no Brasil: por quê? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Quais são as explicações para a existência da persistente alta concentração fundiária no Brasil *?

Origens da concentração fundiária brasileira A desigualdade na distribuição de terras no Brasil tem origem histórica, que remontam ao período colonial. Vejamos: As capitanias hereditárias, distribuídas no período do Brasil Colônia, foram os primeiros latifúndios (grandes propriedades rurais) do nosso país.

Por que no Brasil existe tanta concentração fundiária?

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O meio rural brasileiro se caracteriza de forma negativa pela concentração de terras, isso provoca problemas no campo como desemprego, baixos salários, precárias condições de trabalho, conflitos, degradação ambiental, degradação humana entre outros.

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