Quais os tipos de desigualdades existentes no mercado de trabalho?

Em 2020, 50% das mulheres entrevistadas passaram a se responsabilizar pelo cuidado de alguém durante a pandemia (SOF/GN). Reprodução/UFPA

O mundo do trabalho no Brasil está marcado por profundas desigualdades estruturais, que têm persistido inclusive em situações de acentuado crescimento econômico, como no período do chamado Milagre Econômico (1969-1974), durante a ditadura militar instaurada no país em 1964. Historicamente, no Brasil e na América Latina, o mundo do trabalho tem sido um eixo central na produção e reprodução das desigualdades sociais, uma verdadeira “fábrica da desigualdade” (CEPAL, 2014). No entanto, durante os governos Lula e Dilma, teve um papel fundamental na redução da pobreza e da desigualdade social.

Com efeito, as elevadas taxas de redução da pobreza e de insegurança alimentar e a significativa diminuição da desigualdade de renda medida pelo índice de Gini, registradas nesse período, não se explicam apenas pelas taxas de crescimento econômico associadas ao “boom das commodities”. Elas estiveram fortemente relacionadas a fatores como o crescimento do emprego, em especial do emprego formal (entre 2003 e 2014, mais de 20 milhões de empregos formais foram criados e o estoque de empregos formais subiu de 28,7 para 49,6 milhões), e à política de valorização do salário mínimo. O aumento real do salário mínimo, além de incidir positivamente nos rendimentos dos trabalhadores e trabalhadoras assalariados mais pobres e vulneráveis, funciona como uma referência também para os trabalhadores e trabalhadoras por conta própria e para a elevação do piso dos benefícios da previdência social. Mas também tem um efeito importante na diminuição das desigualdades de rendimento de gênero, raça-etnia, justamente pelo fato de as mulheres e a população negra estarem significativamente sobrerrepresentadas na base da pirâmide de rendimentos do trabalho.

No Brasil, em 2021, 73,5% dos rendimentos dos domicílios provinham do trabalho (IBGE, 2022). Essa proporção variava de 67,0% no Nordeste, região do país que conta com a maior quantidade de domicílios que recebem o Bolsa Família, a 80,6% no Centro Oeste. A segunda maior fonte dos rendimentos domiciliares são as aposentadorias e pensões (18,0% em 2021). Portanto, o que acontece no âmbito do trabalho, ou seja, a maior ou menor possibilidade de acesso a um trabalho decente, impacta fortemente – positiva ou negativamente – as condições de vida da imensa maioria da população e a evolução das taxas de pobreza e de concentração de renda, assim como de diversos outros indicadores da desigualdade socioeconômica que atinge a população brasileira.

As desigualdades que caracterizam a sociedade e o mundo do trabalho no Brasil são resultado de um modelo econômico e produtivo altamente concentrador e excludente e de uma matriz produtiva em que a maior parte do emprego é gerada nos setores de baixa produtividade, caracterizado por altos graus de precariedade e informalidade. Essa heterogeneidade estrutural chega até as famílias e as pessoas através do mercado de trabalho, gerando alta desigualdade de renda e um acesso profundamente desigual ao trabalho decente e à proteção social (CEPAL, 2014).

As desigualdades de renda são sem dúvida um elemento central da complexa teia de desigualdades entrecruzadas que caracterizam o mundo do trabalho e a sociedade no Brasil. Mas as desigualdades a serem identificadas e combatidas não se definem apenas nesse plano. Elas conformam uma matriz da desigualdade social, onde as desigualdades de classe e de nível socioeconômico se entrecruzam com as desigualdades de gênero, étnicas e raciais, territoriais e por idade, potencializando-se ao longo do ciclo de vida das pessoas (CEPAL, 2016). Por sua vez, a igualdade a que almejamos, e que deve estar no centro de um projeto de desenvolvimento inclusivo e sustentável, além definir-se como uma igualdade de meios (renda, propriedade, ativos produtivos e financeiros) é também uma igualdade de capacidades, de autonomias e reconhecimento recíproco, e, fundamentalmente, uma igualdade de direitos (Bárcena e Prado, 2016).

As desigualdades no mundo do trabalho estão assentadas também em uma cultura do privilégio, uma herança do passado colonial e escravista, que continua se reproduzindo até hoje através de atores, instituições, regras e práticas. Essa cultura está baseada na negação do outro (os pobres, as mulheres, os negros e negras, os indígenas, a população LGBTQIA+, os migrantes e refugiados, as pessoas com deficiência) como sujeitos de direito, naturaliza as desigualdades, a discriminação, as hierarquias sociais e as enormes assimetrias de acesso aos direitos (incluindo o direito ao trabalho decente), ao poder, aos frutos do desenvolvimento, à participação política e aos recursos produtivos e financeiros. As hierarquias naturalizadas pela cultura do privilégio de acordo com critérios de classe, raça, etnia, gênero, ou a uma combinação de todos esses fatores, contribuem para conferir uma forte inércia ao poder e à desigualdade. O classismo, o racismo, o sexismo e a discriminação contra a população LGBTQIA+ são elementos centrais da cultura do privilégio (CEPAL, 2018a; CEPAL, 2018b; CEPAL-UNFPA, 2020, Prado et alli, 2022).

Utilizamos nesse artigo o conceito de “mundo do trabalho” para enfatizar a ideia de que a análise sobre as características e a dinâmica das desigualdades no mercado de trabalho, assim como a reflexão sobre as políticas e estratégias capazes de avançar a sua superação, supõe considerar também o que ocorre no âmbito do trabalho doméstico e de cuidados não remunerado, que continua sendo realizado principalmente pelas mulheres, devido à injusta e desigual divisão sexual do trabalho que persiste e se reproduz na sociedade brasileira. A grande carga desse tipo de trabalho assumida pelas mulheres dificulta sua inserção no mercado de trabalho e, portanto, sua autonomia econômica. Ao mesmo tempo, limita a qualidade dos empregos e ocupações a que as mulheres podem ter acesso e nos quais estão sobrerrepresentadas, que são vistos como uma projeção no mercado das tradicionais tarefas de cuidado exercidas no âmbito doméstico e familiar. Isso afeta o avanço de suas trajetórias profissionais e possibilidades ocupacionais. Além disso, reduz seus rendimentos e perspectivas de acesso à previdência social, e limita sua participação nas posições de autoridade e mando nas empresas e instituições e, portanto, na tomada de decisões. Estas desigualdades de gênero se entrecruzam e se potencializam com as desigualdades e a discriminação de classe, racial, de idade e territoriais, produzindo estruturas de exclusão que têm grande incidência nos padrões de inserção das mulheres afrodescendentes, indígenas, jovens, das áreas rurais e da periferia das grandes cidades no mercado de trabalho.

Em 2019, no Brasil, as mulheres dedicavam em média o dobro do número de horas semanais ao trabalho doméstico não remunerado (21,4 horas) em comparação com os homens (11,4hs) (NAPP-Trabalho, 2022). Nesse mesmo ano, 23,4% das mulheres de 15 anos e mais não tinham rendimentos próprios, enquanto que para os homens essa porcentagem era de 16,2.

A alta carga de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado assumida pelas jovens mulheres é um dos principais motivos pelos quais uma importante porcentagem delas não está estudando nem ocupada no mercado de trabalho. Essa porcentagem é significativamente mais elevada entre as jovens mulheres negras: em 2019, quase 40% das jovens mulheres negras e 23% das jovens mulheres brancas entre 18 a 29 anos estava nessa situação. No grupo de 25 a 29 anos, entre os jovens que não estavam estudando nem ocupados no mercado de trabalho, a proporção de mulheres negras triplicava a dos homens brancos, duplicava a dos homens e negros era 1,5 vez superior a das mulheres brancas (NAPP-Trabalho, 2022). Esses dados evidenciam a inadequação da expressão “jovens nem nem” para caracterizar essa situação. Por um lado, porque é uma expressão que estigmatiza os jovens. Por outro, porque invisibiliza o fato de que a grande maioria dessas pessoas são jovens mulheres que estão nessa situação justamente devido à alta carga de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado que assumem nos seus domicílios na ausência ou debilidade das políticas e serviços de cuidado. Não por acaso, um dos quatro eixos da Agenda Nacional de Trabalho Decente para a Juventude aprovada em 2011 é a conciliação entre os estudos, o trabalho e as responsabilidades familiares (BRASIL, 2011).

A sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado sobre as mulheres aumentou exponencialmente durante a pandemia da Covid-19, devido, por um lado, ao fechamento das escolas e de outros centros de cuidado de pessoas idosas e com deficiência; por outro,  devido ao aumento da exigência de higienização dos ambientes domésticos como forma de diminuir os riscos de contágio. Para aquelas que não perderam seus empregos e puderam realizar teletrabalho, as dificuldades de conciliação entre o trabalho remunerado e o trabalho doméstico e de cuidados se multiplicaram. De acordo com o resultado de pesquisa realizada em 2020 (SOF/GN, 2020), 50% das mulheres entrevistadas passaram a se responsabilizar pelo cuidado de alguém durante a pandemia (principalmente pelos filhos de até 12 anos, mas também por pessoas idosas, com deficiência, amigos). Essa cifra se elevava a 62% nas áreas rurais e era maior para as mulheres negras (52%) em comparação com as brancas (46%). Uma porcentagem ainda mais elevada de mulheres (72%) afirmou que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia em relação a outros membros da família. Quando perguntadas se a situação da pandemia alterou a distribuição das tarefas domésticas em seus domicílios, 64% das entrevistadas indicaram que a distribuição permaneceu a mesma, sendo que 23% avaliam que a participação de outras pessoas no trabalho doméstico e de cuidado diminuiu, e apenas 13% consideram que essa participação aumentou. Ou seja, para 87% delas ou a distribuição permaneceu a mesma ou piorou.

Assim, o desenvolvimento de políticas e equipamentos de cuidado a partir do princípio de corresponsabilidade entre as famílias, as empresas e o Estado é um aspecto central da luta pela eliminação das desigualdades de gênero no trabalho, assim como a constituição de um novo “pacto de gênero” no âmbito das relações interpessoais. Pressupõe a superação não apenas da dicotomia entre o “homem provedor” e a “mulher cuidadora”, como também da noção da mulher como “força de trabalho secundária” (Abramo, 2007), o que significa conferir uma atenção prioritária às mulheres, em especial as negras, assim como às jovens mulheres negras, nas políticas e medidas de combate ao desemprego, combate à informalidade e garantia dos direitos no trabalho. Por outro, depende do reconhecimento do cuidado como um direito e um bem público.

O enfrentamento das desigualdades seculares e estruturais que caracterizam o mundo do trabalho no país é um elemento central para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e igualitária. Qualquer estratégia de desenvolvimento que se pretenda sustentável e inclusiva e, em especial as políticas e instituições no âmbito do trabalho e da proteção social, deve incorporar de forma prioritária o enfrentamento efetivo dessas desigualdades, com particular atenção às desigualdades de classe, gênero, raça e etnia, idade e territórios, assim como os seus entrecruzamentos.

Laís Wendel Abramo é socióloga, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo (FPA), o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas (NAPP) Trabalho e o NAPP Desenvolvimento Social. Foi diretora da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil de 2005 a 2015 e diretora da Divisão de Desenvolvimento Social da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL) de 2015 a 2019

Referências bibliográficas

ABRAMO, L. (2007). “A inserção da mulher no mercado de trabalho: uma força de trabalho secundária?”. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da FFLCH-USP.

BÁRCENA, A., e PRADO, A. (2016), El imperativo de la igualdad: por un desarrollo sostenible en América Latina y el Caribe, Buenos Aires, CEPAL/Siglo XXI.

BRASIL (2011). Agenda Nacional de Trabalho Decente para a Juventude. Ministério do Trabalho e Emprego, Brasília.

CEPAL (2018a).  La ineficiencia de la desigualdad, Santiago, CEPAL

_______ (2018b). Hacia una agenda regional de desarrollo social inclusivo: bases y propuesta inicial, Santiago, CEPAL.

______ (2016). La matriz de la desigualdad social en América Latina. Santiago, CEPAL.

_______(2014). Cambio estructural para la igualdad. Santiago, CEPAL.

CEPAL-UNFPA (2020). Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad social en América Latina: un reto para la inclusión. Santiago, CEPAL.

IBGE (2022). Rendimentos de todas as fontes, 2021, PNAD Contínua. Rio de Janeiro, IBGE.

IPEA (2013). “Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela Pnad/IBGE”. Comunicado n° 159.Brasília.

NAPP-Desenvolvimento Social (2022). “Mais Proteção, Mais Desenvolvimento Social”, Cadernos Teoria e Debate, Série Reconstrução e Transformação do Brasil, São Paulo, FPA.

NAPP-Mulher (2022). “Políticas Públicas Para as Mulheres”. Cadernos Teoria e Debate, Série Reconstrução e Transformação do Brasil, São Paulo, FPA

NAPP-Trabalho (2022). “A centralidade do trabalho no novo modelo de desenvolvimento e na retomada da construção de uma sociedade mais justa, igualitária e democrática” (no prelo). Cadernos Teoria e Debate, Série Reconstrução e Transformação do Brasil, São Paulo, FPA.

PRADO, A. et alli (2022). “A Cultura do Privilégio e sua imperativa superação pela cultura da igualdade”. Resumo Executivo. Documento para discussão. Instituto Lula.

Quais os tipos de desigualdade existentes no mercado de trabalho?

O mercado de trabalho brasileiro está marcado por significativas e persistentes desigualdades de gênero e raça e esse é um aspecto que deve ser levado em conta nos processos de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas em geral, e, em particular, das políticas de emprego, inclusão social e redução da ...

Quais são os tipos de desigualdade?

Tipos de Desigualdades Desigualdade econômica: desigualdade entre a distribuição de renda. Desigualdade racial: desigualdade de oportunidades para as diferentes raças: negro, branco, amarelo, pardo. Desigualdade regional: disparidades entre regiões, cidades e estados.

O que são as desigualdades no mercado de trabalho?

As desigualdades que caracterizam a sociedade e o mundo do trabalho no Brasil são resultado de um modelo econômico e produtivo altamente concentrador e excludente e de uma matriz produtiva em que a maior parte do emprego é gerada nos setores de baixa produtividade, caracterizado por altos graus de precariedade e ...

Qual é a desigualdade de gênero no mercado de trabalho?

Uma pesquisa realizada pela Catho em 2021 mostra que as mulheres ganham menos que homens em todos os cargos de liderança, cuja diferença média é 34%. Além de salários inferiores, elas ainda se deparam com obstáculos em algumas áreas. Em tecnologia, por exemplo, ocupam apenas 19% dos cargos.