Porque a desconsideração da personalidade jurídica é uma espécie de intervenção de terceiros?

1. Introdução
2. Responsabilidade e autonomia patrimonial da pessoa jurídica
3. Desconsideração da personalidade jurídica
4. Procedimento previsto no novo código de processo civil
5. Conclusão
6. Referências bibliográficas
Notas

O procedimento da desconsideração da personalidade Jurídica no Direito Processual Brasileiro*

Handel Martins Dias**
José Tadeu Neves Xavier **

1. Introdução [arriba] 

Como já esposava J. Lamartine Corrêa de Oliveira (1979, pág. 262), em sua clássica obra A dupla crise da pessoa jurídica, o problema da utilização abusiva da personalidade jurídica de forma desvinculada dos seus fins legítimos é comum a todo e qualquer sistema jurídico em que vigore o princípio da separação entre pessoa jurídica e seus membros. Tomando proveito do escudo da limitação de responsabilidade e autonomia patrimonial, os sócios com frequência se valem da pessoa jurídica para fins imorais ou antijurídicos, sobretudo para a realização de atos abusivos ou fraudulentos. Com o escopo de evitar lesão a credores, passou a ser desconsiderada a personalidade jurídica em hipóteses como essas, com a responsabilização pessoal daquele que a utilizou de forma desvirtuada[1]. Todavia, essa solução não foi encontrada com facilidade, senão desenvolvida gradual e paulatinamente pela jurisprudência e pela doutrina. A formulação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica iniciou na jurisprudência da common law no curso do século XIX[2], restando conhecida como disregard doctrine, piercing the corporate veil, lifting the corporate veil ou cracking open the corporate shell[3].

A primeira vez que se traspassou a pessoa jurídica em juízo e se depreenderam as características individuais dos sócios foi em 1807, no common law norte-americano, no caso Bank of United States vs. Deveaux. Porém, este julgamento limitou-se a decidir sobre aspectos procedimentais de definição de competência para julgamento da causa[4]. O pioneiro leading case de desconsideração da personalidade jurídica foi de fato proferido em 1897, na Grã-Bretanha, mais de meio século depois. Trata-se do caso Salomon vs. Salomon & Co. Ltd., no qual juiz desconsiderou a personalidade jurídica da insolvente Salomon & Co. Ltd. para responsabilizar o sócio Aaron Salomon, o qual, amealhando o seu fundo de comércio com familiares, havia utilizado a empresa como fachada para a sua proteção patrimonial. Embora tenha sido reformada pela Casa dos Lordes –sob o argumento de que a sociedade havia sido constituída legalmente, razão por que era defeso se determinar a responsabilidade pessoal de Aaron Salomon–, a decisão originária auferiu grande repercussão, fomentando a ideia da desconsideração da personalidade jurídica. O julgamento do caso Salomon vs. Salomon & Co. Ltd. deu origem ao chamado Salomon principle, que ainda hoje orienta decisões no sistema da common law[5].

A pouco e pouco a ideia disseminou-se e foi recepcionada na civil law[6], auferindo denominações distintas, como superamento della personalità giuridica, no direito italiano; durchgriff der juristichen person, no direito alemão; mise-à l’cart de la personnalité morale, no direito francês; e teoría de la penetración de la personalidad, no direito espanhol[7]. No Brasil, a primeira desconsideração da personalidade jurídica que se tem notícia foi realizada em 1955, de forma intuitiva, pelo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. No acórdão do qual foi relator o Desembargador Edgard de Moura Bittencourt, a 2ª Câmara reconheceu a existência da confusão patrimonial e determinou a responsabilidade pessoal do sócio que usava a sociedade –um hospital– para comprar móveis domésticos para si[8]. Com grande repercussão, a decisão despertou os demais tribunais para a solução aventada. No plano doutrinário, o primeiro a defender essa possibilidade no Brasil foi Rubens Requião ao expor as teorias estrangeiras sobre a disregard doctrine em uma conferência, em 1969, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, publicada na Revista dos Tribunais[9]. Também foram fundamentais para a formação do pensamento brasileiro sobre a desconsideração da personalidade jurídica os estudos formulados na década de setenta por Fábio Konder Comparato[10] e Lamartine Corrêa de Oliveira[11].

Assim, de maneira paulatina, mediante integração, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro foi se consolidando, até ser consagrada no Código de Defesa do Consumidor[12]. Depois, o instituto também foi incluído no Código Civil, na Lei Antitruste, na Lei de Crimes Ambientais e na Lei Anticorrupção. No entanto, a normatização da desconsideração da personalidade jurídica havia sido concretizada apenas no plano material. O tema continuava carecendo de atenção no aspecto concernente à sua efetivação no âmbito processual, ambiente no qual se realiza por meio de sua aplicação. Tal lacuna abriu espaço para um rosário de debates sobre a definição da melhor técnica para a sua efetivação sem risco de ofensa às normas fundamentais do processo civil. Atendendo às reivindicações doutrinárias, o novo Código de Processo Civil enfim realizou, como técnica de intervenção de terceiro, a tão desejada regulamentação procedimental de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. O objetivo precípuo do presente ensaio é proceder a uma análise crítica do procedimento delineado pelo legislador brasileiro para a desconsideração da personalidade jurídica. Para isso, traçam-se, de início, a título propedêutico, algumas breves noções gerais sobre a pessoa jurídica, mormente acerca dos consectários do reconhecimento de sua personalidade jurídica, e sobre a desconsideração da personalidade jurídica no Brasil sob a ótica do direito material.

2. Responsabilidade e autonomia patrimonial da pessoa jurídica [arriba] 

À medida que a sociedade organizava-se, a prática revelou a necessidade de uma categoria jurídica capaz de favorecer o crescimento de setores produtivos, culturais, sociais e religiosos, o que não poderia ser alcançado pelo esforço isolado de pessoas ou da solidariedade interna de pequenos núcleos familiares. Para viabilizar planos de desenvolvimento não bastavam mão-de-obra coletiva, recursos financeiros isolados, conhecimentos e experiências acumulados. Seria impraticável qualquer projeto arrojado sem que se criassem princípios e normas que distinguissem o todo dos indivíduos e sem atribuir personalidade jurídica ao ser meramente convencional. A doutrina correspondeu aos anseios da sociedade e projetou a categoria das pessoas jurídicas de que o legislativo veio a valer-se, aprovando estatuto dos seres de existência invisível. A adoção do nome pessoa para a construção jurídica não decorre do acaso, mas à semelhança de condições com a pessoa física, que possui personalidade jurídica, permitindo-lhe a prática de fatos jurídicos e a integrar a relação, seja no polo ativo como titular de direito subjetivos, seja no polo passivo como responsável pelo dever jurídico (Nader, 2009, v. 1, pág. 177-179).

A teoria que melhor explica a natureza das pessoas jurídicas é a da realidade técnica, integrante da corrente personificante. Situada entre as teorias da ficção e da realidade orgânica, esta teoria esposa que a pessoa jurídica existe na realidade, malgrado a sua personalidade seja produto do ordenamento jurídico. A pessoa jurídica é uma entidade de existência prévia à ordem jurídica, não dependendo desta para existir. O direito somente reconhece as pessoas jurídicas ao regulá-las. Como ensinava Waldemar Ferreira Martins (1947, pág. 33), onde existe uma vontade capaz de se determinar, existe um direito e, portanto, um sujeito de direitos. Pela mesma razão por que se reconhece a pessoa natural, de existência visível, há de se reconhecer a pessoa jurídica, distinta das pessoas físicas que a formam. Com efeito, as pessoas jurídicas foram só reconhecidas pela legislação, pois já existiam mesmo antes da criação da lei que as positivou. A disciplina legal da pessoa jurídica, real sujeito das ações dotadas de significado jurídico, constitui mero reconhecimento de algo preexistente, que a ordem positiva não teria como ignorar[13].

Conquanto quase sempre as pessoas jurídicas sejam resultado de uma reunião de pessoas, esta não é essencial à sua natureza. As fundações, por exemplo, caracterizam-se pela existência de um acervo patrimonial, motivo por que Francisco Amaral (2003, pág. 26-27) conceitua a pessoa jurídica como um conjunto de pessoas ou bens que se agruparam por conveniência, ou até mesmo por necessidade, para obter um objetivo em comum. Ainda que os idealizadores da pessoa jurídica disponham de liberdade para a escolha de seu objeto, é imprescindível que ela tenha um fim a ser alcançado, não precisando ser a obtenção de lucro[14]. Os ramos de atuação das pessoas jurídicas são diversificados, podendo ser, verbi gratia, de natureza filantrópica, esportiva ou cultural. Além da reunião de pessoas ou de bens e da ideia de fim a realizar, sobressai a existência da personalidade jurídica como fator para caracterizar a pessoa jurídica[15]. A partir da inscrição do ato constitutivo no respectivo registro (CC, art. 45), a pessoa jurídica adquire a personalidade jurídica e, com ela, uma série de consectários, destacando-se a titularidade negocial e processual; a incomunicabilidade de seus direitos e obrigações; e a autonomia patrimonial[16]. Tais atributos são fundamentais para o desenvolvimento da atividade econômica na medida em que incentivam os indivíduos a investirem ante a diluição dos riscos. Pois, diante da irresponsabilidade pelas obrigações sociais, os investidores podem aplicar dinheiro sem, necessariamente, comprometer o seu patrimônio particular (LGOW, 2011, pág. 36).

Dotada de personalidade, a pessoa jurídica pode, por meio de seu administrador, praticar atos e negócios jurídicos em nome próprio para o bom desempenho de sua atividade, assim como, em face de sua capacidade processual, defender os seus interesses em juízo, ativa ou passivamente[17]. As pessoas jurídicas não se confundem com as de seus membros, tampouco com os seus direitos, suas obrigações ou seus patrimônios. Por conseguinte, somente o patrimônio da pessoa jurídica responde por suas dívidas perante terceiros. No entanto, essa autonomia de responsabilidade e de patrimônio não é absoluta em algumas modalidades de pessoas jurídicas de direito privado[18]. Mas nessas hipóteses de comunicação de obrigações, inexistindo cláusula de responsabilidade solidária, os membros só respondem na proporção em que participem das perdas e caso os bens da pessoa jurídica não sejam suficientes para cobrirem a dívida (CC, art. 1.023)[19]. Na execução, eles têm o direito de requerer a constrição de seus bens apenas depois de executados os da pessoa jurídica (CC, art. 1.024; CPC, art. 795, § 1º), cumprindo-lhes, para fazer jus ao benefício de ordem, indicar bens livres e desembargados da pessoa jurídica situados na comarca que sejam suficientes para o adimplemento do débito (CPC, art. 795, § 2º).

A pessoa jurídica perde a personalidade jurídica com o cancelamento de sua inscrição no registro próprio, após o encerramento da liquidação (CC, art. 51, § 3º). No entanto, antes do procedimento liquidatário, é mister a dissolução da pessoa jurídica. A dissolução pode se dar por deliberação de seus membros, observando o previsto nos atos constitutivos (dissolução convencional); pela cassação da autorização para o seu funcionamento, nos casos em que se exige autorização de órgão competente para praticar a sua atividade (dissolução administrativa); ou por sentença, acolhendo-se pedido de qualquer dos sócios (dissolução judicial). Mesmo com a dissolução, a pessoa jurídica subsiste para os fins da liquidação, até que esta se conclua (CC, art. 51, caput), averbando-se a dissolução no registro em que a pessoa jurídica estiver inscrita (CC, art. 51, § 1º). Durante a liquidação, procura-se solucionar as pendências negociais e vender o patrimônio com o escopo de se apurar o passivo e o ativo. Após, apurada a existência de lucros na venda, procede-se à partilha destes entre os seus membros[20]. Como sublinha Fábio Ulhoa Coelho (2016, pág. 36), enquanto esse procedimento de liquidação não se encerra, subsiste a personalidade jurídica da pessoa jurídica e todos os efeitos derivados da personalização.

Desde o início até sua extinção, a pessoa jurídica mantém, de ordinário, em face de sua personificação, a limitação de responsabilidade e a autonomia patrimonial. À exceção das sociedades em nome coletivo, na qual todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente caso sejam insuficientes os bens da sociedade, e de algumas sociedades em que há restrição dos sócios que podem ser responsabilizados ou da medida em que podem ser responsabilizados, os membros da pessoa jurídica não são responsáveis pelas obrigações assumidas por ela. Contudo, essa restrição de responsabilidade pode ser superada a fim de se alcançar o patrimônio pessoal dos membros da pessoa jurídica ou de seu administrador, quer nas hipóteses em que a responsabilidade seria exclusivamente da pessoa jurídica, quer nas hipóteses em que há uma limitação dessa responsabilidade. Isso é possível mediante a desconsideração da personalidade jurídica, quando, nos casos previstos em lei, transpõe-se a personalidade jurídica e se responsabiliza o membro da pessoa jurídica ou seu administrador. Não há extinção ou desconstituição da personalidade jurídica, mas, sim a suspensão de sua eficácia no caso concreto por expressa decisão judicial. Como referem Marcelo Bertoldi e Marcia Carla Pereira Ribeiro (2011, pág. 146), na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, o ato constitutivo da pessoa jurídica não é desfeito, nem a sociedade se dissolve, permanecendo válida e eficaz para outros fins.

3. Desconsideração da personalidade jurídica [arriba] 

A desconsideração da personalidade jurídica tem por desígnio, em hipóteses excepcionais, estender os efeitos subjetivos do título executivo a sócio ou ao administrador da pessoa jurídica, tornando-o patrimonialmente responsável por dívida dela em hipótese em que não teria nenhuma responsabilidade ou teria responsabilidade limitada. Isso significa que, procedida à desconsideração da personalidade jurídica, o membro ou o administrador não se torna codevedor, mas, sim, responsável patrimonial pela obrigação da pessoa jurídica, pois os seus bens ficam sujeitos à execução caso os bens da pessoa jurídica não sejam suficientes para satisfazer o débito (CPC, art. 790, VII, c/c art. 795, § 1º)[21]. Ante a desconsideração da personalidade jurídica, o membro ou o administrador da pessoa jurídica se sujeita à execução na qualidade de responsável patrimonial, não de devedor, o qual segue sendo a pessoa jurídica, reconhecida como tal no título executivo, na medida em que foi ela que assumiu a obrigação perante o credor. Por isso, a desconsideração da personalidade jurídica não é aplicável quando o sócio ou o administrador da pessoa jurídica é responsável direto pela obrigação[22], uma vez que não há interesse processual em abstrair-se a personalidade jurídica para se alcançar o seu patrimônio pessoal. Nesta hipótese de responsabilidade direta, em que o membro ou o administrador tem legitimidade passiva ad causam, a ação ou a execução pode ser proposta também contra ele.

Há duas teorias sobre a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica: a teoria maior e a teoria menor. Sistematizada principalmente por Rolf Serick, a teoria maior consiste em autorizar a desconsideração da personalidade jurídica ignorando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, em casos de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial quando há intenção de lesar ou fraudar por parte de sócio ou do administrador. Gustavo Tepedino (2008, v. 2, pág. 10) explica que se exige a demonstração de fatos atribuíveis ao membro ou administrador que frustrem legítimo interesse do credor mediante a manipulação fraudulenta da pessoa jurídica. A mera insatisfação dos créditos não abona a desconsideração da personalidade jurídica, pois se busca preservar a autonomia patrimonial naquilo que for possível. De outra parte, a teoria menor autoriza a desconsideração em caso de simples insolvência e a consequente constatação de prejuízo dos credores, sem perquirir se houve conduta abusiva ou fraudulenta. O simples prejuízo do credor permite a desconsideração da personalidade jurídica, atingindo membro ou o administrador da pessoa jurídica não obstante a probidade de suas condutas[23].

A desconsideração da personalidade jurídica foi pela primeira vez prevista no ordenamento jurídico brasileiro em 1990, com o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078). O artigo 28, caput, da codificação consumerista prevê que o juiz pode desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, assim como quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocada por má administração. Pela ânsia de proteger o consumidor, ou quiçá pela má compreensão do instituto, o legislador arrolou hipóteses que não se coadunam com a desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que permitem a responsabilização direta do sócio ou do administrador. Na verdade, dessas apenas o abuso de direito constitui autêntica hipótese de desconsideração da personalidade jurídica[24]. Sem embargo, depois de arrolar, no caput, uma séria de supostas hipóteses para a desconsideração da personalidade jurídica, o § 5º do artigo 28 estabelece contraditoriamente que “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”, ou seja, a despeito das hipóteses de cabimento previstas no caput. Forte no disposto neste § 5º, prepondera o entendimento, inclusive no Superior Tribunal de Justiça[25], de que o Código de Defesa do Consumidor adota a teoria menor, bastando a simples caracterização da dificuldade do pagamento do consumidor em face da insolvência da pessoa jurídica para a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica.

A segunda lei a positivar a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, a primeira pela teoria maior, foi a Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, que transformou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica –CADE– em autarquia, e dispôs, entre outras providências, sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. A chamada Lei Antitruste, em seu artigo 18, previa que a “personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social”, bem como “quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocada por má administração”. Este dispositivo restou revogado pela Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011[26], que sucedeu a lei anterior, reproduzindo o texto do artigo 18 da lei revogada no artigo 34 da nova Lei Antitruste. Esta norma jurídica incorreu no mesmo erro do caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor ao prever hipóteses em que há responsabilidade pessoal do sócio ou do administrador. Como foi antes referido, o ato ilícito, o excesso de poder, a infração da lei, a violação do estatuto ou contrato social e a má administração não se relacionam com a desconsideração da personalidade jurídica, na medida em que permitem, por si sós, a responsabilidade direta de quem praticou o ato. Como, nesses casos, o patrimônio do sócio ou do administrador já está descoberto por ser ele coobrigado, não subsiste qualquer interesse processual em se abstrair a personalidade jurídica[27].

Em 12 de fevereiro de 1998 foi promulgada a Lei nº 9.605, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. A chamada Lei de Crimes Ambientais previu a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, adotando, claramente, a teoria menor. Inspirada no § 5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, prescreveu, no artigo 4º, que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”. Portanto, o mero fato de a personalidade jurídica constituir obstáculo para o ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente permite a desconsideração da personalidade jurídica. Não há necessidade de se perquirir se houve concorrência de fraude ou abuso de direito. Neste caso, como sublinha Gustavo Tepedino (2008, v. 2, pág. 15), o magistrado está livre para proceder à desconsideração da personalidade jurídica quando se prova a inexistência de bens socais suficientes para satisfazer a dívida e a solvência de qualquer um dos sócios.

O Código Civil de 2002 também não se furtou de estabelecer as hipóteses em que é possível a desconsideração da personalidade jurídica, insculpindo no artigo 50 que,

“Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

Por meio de aplicação subsidiária, o artigo 50 do Código Civil legitima a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica nos demais sistemas jurídicos em que não há norma específica, uma vez que a sua previsão normativa representa a cláusula geral sobre o tema da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em nosso ordenamento jurídico. Este dispositivo –que não derrogou as disposições dos microssistemas retrorreferidos, conforme se concluiu na 1ª Jornada de Direito Civil promovido pelo Conselho da Justiça Federal[28]– alinha-se à teoria maior, porquanto pressupõe, para a desconsideração da personalidade jurídica, a configuração de ato abusivo nas hipóteses previstas, não bastando o simples estado de insolvência da pessoa jurídica[29].

Mais recentemente uma nova hipótese de desconsideração da personalidade jurídica foi positivada na legislação especial, desta vez na seara administrativa. Trata-se da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, entre outras providências. A chamada Lei Anticorrupção prevê que, no processo administrativo de responsabilização,

“A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática de atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa” (art. 14).

O escopo da Lei é garantir que o patrimônio dos sócios com poderes de administração ou dos administradores respondam, a despeito de decisão judicial, pelas sanções impostas à pessoa jurídica no processo administrativo de responsabilização por atos praticados contra a Administração Pública. Consigna-se que muito antes da Lei Anticorrupção já havia decisão do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo o poder da Administração Pública de desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular[30].

Sopesados esses diplomas, percebe-se que, embora não de maneira adequada e suficiente, a desconsideração da personalidade jurídica está consolidada no plano do direito material. Ainda não está prevista a chamada desconsideração inversa, derivação da noção tradicional da disregard doctrine que cada vez mais tem alcançado projeção, sobretudo em lides referentes à partilha patrimonial no direito de família[31]. Como indica a designação cunhada pela doutrina e jurisprudência, nesta hipótese o ente personificado é utilizado para acobertar ou desviar bens de sócio[32]. A desconsideração inversa foi criada em virtude da utilização do escudo patrimonial da pessoa jurídica não para frustrar os credores desta, mas, sim, os credores da pessoa do sócio mediante transferência de seus bens. Isso porque, muitas vezes, a pessoa física aproveita a sua condição de sócio para transmitir os seus bens pessoais para a sociedade com intuito de prejudicar terceiros mediante o esvaziamento de seu patrimônio. Portanto, a desconsideração inversa visa a alcançar o acervo patrimonial da pessoa jurídica quando o sócio desvirtua, de má-fé, a sua utilização em prejuízo de terceiros. Em 2010, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a aplicação da desconsideração inversa por meio de uma interpretação teológica do artigo 50 do Código Civil. Entretanto, asseverou o Superior Tribunal de Justiça que tal medida é de exceção, devendo ser aplicada tão somente se forem preenchidos os requisitos estabelecidos no artigo 50 do Código Civil, com o uso abusivo da personalidade jurídica[33].

4. Procedimento previsto no novo código de processo civil [arriba] 

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica passou a experimentar uma nova fase de sua trajetória no cenário do direito nacional com o advento do Código de Processo Civil de 2015[34]. O legislador estabeleceu entre os artigos 133 a 137, em capítulo próprio dentro do título referente às intervenções de terceiros[35], o procedimento para se desconsiderar a personalidade jurídica, preenchendo lamentável lacuna que vinha acompanhando as discussões sobre a forma adequada de tratar processualmente a desconsideração. A inovação na sistemática processual com a inserção dessa técnica tolhe a possibilidade de estender-se a responsabilidade patrimonial para além do polo passivo do processo de conhecimento ou de execução sem a observância do procedimento, o que é reforçado pelo § 4º do artigo 795 do Código[36]. A forma da desconsideração da personalidade jurídica coloca-se como uma questão de ordem pública, portanto, de caráter indisponível e que não pode ser relativizada pelo magistrado[37]. Se constitui garantia processual fundamental, assentada na Constituição (art. 5º, LIV), que ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal, desconsiderar a personalidade jurídica sem a aplicação do procedimento instituído pelo Código de Processo Civil implica desrespeito ao princípio constitucional do processo justo[38], ensejando a nulidade dos atos processuais.

A novidade oferece uma série de vantagens, mormente o debate e a eventual efetivação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no próprio feito com obediência aos postulados que balizam o ideal de realização do processo justo[39]. Durante a lacuna processual, muitos juristas admitiam a processualização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica apenas por meio de ação cognitiva autônoma. Embora viabilizasse o contraditório e o direito de defesa, a propositura de demanda autônoma proporcionava um tempo processual demasiado até a decisão definitiva acerca da responsabilidade patrimonial ou não do sócio ou do administrador[40]. Considerando o escopo de incluir um terceiro na relação jurídica processual, a maior celeridade e simplicidade, bem como a sua capacidade de, apesar disso, propiciar de forma satisfatória a efetivação do contraditório dinâmico e do direito de defesa, inclusive a dilação probatória e o exercício do direito de recorrer, o incidente processual mostra-se meio mais técnico e adequado para a desconsideração da personalidade jurídica[41]. Antes do novo Código de Processo Civil, não eram poucos os casos em que os tribunais admitiam a aplicação incidental da disregard doctrine, porém desprezando a necessidade de se atender maiores formalidades prévias. Propiciavam contraditório diferido, posterior ao ato de ampliação do polo passivo, quando não após a realização de medidas restritivas. Nesse contexto, restava ao membro ou ao administrador impugnar a decisão já tomada sem sequer seu conhecimento, quanto mais com a oportunidade de influenciar na formação do convencimento judicial. O contraditório prévio acabava sendo dispensado, indo de encontro com o ideal de um processo justo[42].

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica proporciona uma ampliação subjetiva da demanda no seu curso, porque o sócio ou o administrador passa a integrar a relação jurídica processual na condição de parte quando é citado, formando, ao lado da pessoa jurídica, litisconsórcio passivo facultativo ulterior[43]. O pedido pode ser formulado pela parte interessada que demanda contra a pessoa jurídica ou pelo Ministério Público, quando lhe cabe intervir no processo como fiscal da ordem jurídica (art. 133, caput). O incidente pode ser postulado no processo de execução e em qualquer fase de processo de conhecimento, seja procedimento comum ou especial, seja na fase cognitiva ou na de cumprimento de sentença, inclusive no segundo grau de jurisdição, quando a jurisdição da causa está no tribunal no exercício da competência originária ou recursal (art. 134, caput, e art. 932, VI)[44]. Por força do disposto no artigo 133, § 1º, o requerente dever precisar, em conformidade com os ditames da legislação material invocada, os fatos e fundamentos jurídicos que embasam o pedido, apresentando as provas existentes e indicar as que ainda pretende produzir durante a instrução a fim de comprovar o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica[45]. Ressalvada a possibilidade de redistribuição, o ônus da prova pertence ao requerente. Cumpre a ele demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica (art. 134, § 4º). Caso não se desincumba desse encargo probatório, cuja extensão varia de acordo com a teoria aplicável à hipótese, maior ou menor, o pedido de desconsideração deve ser rejeitado.

No átimo de admissibilidade, não cabe ao magistrado exigir demonstração cabal da presença dos pressupostos, senão indícios de plausibilidade da postulação já que a extensão da responsabilidade patrimonial deve ser decidida somente depois de se oportunizar o contraditório e a produção de provas[46]. Nas palavras de Teresa Arruda Alvim Wambier, Rogério Licastro Torres de Mello e Leonardo Ferres da Silva Ribeiro (2015, pág. 254), a exigência legal do § 4ª do artigo 134 do Código indica apenas a necessidade de uma dose mínima de aparência de bom direito, de plausibilidade da alegação, sem o qual o incidente deve ser indeferido liminarmente[47].

Admitido o incidente, não devem ser realizados, até a sua resolução, atos visando ao processamento ou julgamento da demanda originária, salvo os urgentes para evitar dano irreparável (art. 134, § 3º, c/c art. 314)[48]. O sócio ou o administrador deve ser citado para, no prazo de quinze dias, manifestar-se sobre o pedido e designar as provas que pretende produzir (art. 135). Em sua manifestação, pode não apenas impugnar a pretensão de desconsideração da personalidade jurídica, mas, também, forte no princípio da eventualidade, o próprio pedido dirigido contra a pessoa jurídica na medida em que tem interesse jurídico na decisão, inclusive pela relação de prejudicialidade existente com a demanda de desconsideração da personalidade jurídica[49]. Caso o requerido apresente defesa processual, defesa de mérito indireta ou junte prova documental, o juiz deve determinar a oitiva do requerente no prazo de quinze dias (arts. 350, 351 e 437).

Concluída a instrução, o juiz resolve o incidente por meio de decisão interlocutória, no curso do processo, ou por sentença, quando decide por ocasião do fim da fase cognitiva de processo de conhecimento ou da extinção do processo de execução (arts. 136, caput, 203, §§ 1º e 2º)[50]. Resolvido o pedido de desconsideração da personalidade jurídica por decisão interlocutória, cabe agravo de instrumento (art. 1.015, IV). Caso o juiz decida sobre o pedido na própria sentença, cabe à parte inconformada com o decisum manejar a apelação (art. 1.009, § 3º). Porém, quando o pedido de desconsideração for formulado diretamente no tribunal, compete ao relator decidir o incidente (art. 932, VI), cabendo, contra a sua decisão monocrática, agravo interno para o órgão colegiado competente (art. 1.021, caput, e 136, parágrafo único). Postulada a desconsideração ainda na fase cognitiva, caso julgue juntamente com o pedido principal, o magistrado deve decidir primeiro o deduzido contra a pessoa jurídica. Sendo este rejeitado, fica prejudicado o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica. Em contrapartida, caso seja acolhido, o juiz deve decidir sobre a responsabilização do sócio ou do administrador[51]. Por falta de legitimidade, é defeso ao juiz condenar diretamente o sócio ou o administrador no pedido principal[52]. Tecnicamente, sendo este acolhido, o órgão judicial deve somente declarar se o sócio ou o administrador tem ou não responsabilidade patrimonial quanto à condenação imposta à pessoa jurídica[53]. Em outras palavras, o juiz deve decidir se os efeitos subjetivos do título executivo alcançam ou não o sócio ou o administrador da pessoa jurídica condenada[54].

Posto que o legislador tenha inserido incidente na titulação do capítulo com o intento de destacar a natureza jurídica da técnica de intervenção de terceiro acrescentada, nem sempre esta se dará incidentemente no processo. No esquadro oportunizado pelo sistema jurídico instaurado pela nova codificação processual, também é possível se postular ab initio a desconsiderar a personalidade jurídica[55]. O § 2º do artigo 134 do Código autoriza, de forma expressa, que a desconsideração da personalidade jurídica seja requerida já na petição inicial, mediante cumulação objetiva e subjetiva de pedidos, tornando desnecessária a instauração do incidente[56]. A inovação é de extrema importância e representa verdadeira dobra histórica no percurso que vem sendo trilhado pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito interno, na medida em que passa a admitir que o pedido de aplicação da disregard of the legal entity seja apresentado no momento da propositura da demanda, formando litisconsórcio passivo inicial entre a pessoa jurídica e o sócio ou administrador[57]. Por meio de interpretação ampliativa, é possível também se aceitar a formulação de pedido de desconsideração da personalidade jurídica em contestação, notadamente quando a demanda é proposta por pessoa jurídica e o réu propõe, contra ela, reconvenção ou formula contrapedido na peça de defesa. Nessa hipótese, por força da apresentação do pedido de desconsideração de personalidade jurídica na defesa, será ativo o litisconsórcio formado entre a pessoa jurídica e o sócio ou o administrador.

Alicerçado na inexistência de legitimidade passiva daqueles que se quer atingir por meio da efetivação da disregard doctrine, por não serem passíveis de condenação na sentença ou de figurarem no título executivo como devedores, poder-se-ia, de uma forma mais simplista, compreender que a veiculação do pedido inicial de ampliação da responsabilidade jurídica aos sócios, administradores ou, eventualmente, à pessoa jurídica, somente teria cabimento na petição inicial do processo de conhecimento, ficando afastada a viabilidade de sua realização em pedidos de cumprimento de sentença ou na exordial de execução fundada em título executivo extrajudicial. Porém, esta não parece ser a melhor conclusão. No caput do artigo 134, o Código refere que é cabível a desconsideração da personalidade jurídica no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. Não há norma tolhendo a parte de se valer do pedido inicial de desconsideração ao manifestar a sua pretensão executiva. Para tanto basta que existam motivos que justifiquem a sua formulação já no encetamento da execução. Como refere Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2016, pág. 74), se desde o início da execução o credor já tem notícia acerca da existência dos pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica, não tem sentido impedir que postule no início a desconsideração.

A novidade da normatização do incidente de desconsideração traz à tona o debate sobre a possibilidade desta ampliação de responsabilidade patrimonial vir a ser efetivada de ofício pelo julgador. Conforme o artigo 133, caput, do Código de Processo Civil, o incidente será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir como fiscal da ordem jurídica[58]. Essa disposição pode ser flexibilizada de acordo com a natureza do direito material envolvido na lide. Qualificado por uma série de aspectos especiais que permitem sua visualização como disciplina de natureza indisponível, o direito do consumidor permite a sua aplicação de ofício pelo julgador[59]. Na oportunidade em que regula a desconsideração da personalidade jurídica, o Código de Defesa do Consumidor afirma que “o juiz poderá aplicar a teoria” (art. 28, caput), o que permite inferir que, nas demandas fundadas na defesa dos direitos do consumidor, o juiz pode instaurar ex officio o incidente de desconsideração da personalidade jurídica[60]. Na lição de Luis Alberto Reichelt (2015, pág. 247), do ponto de vista hermenêutico, na dúvida entre duas ou mais interpretações resultantes do contraste entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código de Processo Civil, impõe-se seja sempre adotada aquela que permita ao consumidor obter resultados mais satisfatórios ao seu interesse, sendo vedado o retrocesso. Trilhando esse caminho, Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2016, pág. 61-81) leciona que, ao determinar de ofício a instauração do incidente, o magistrado deve realizar a descrição dos fatos supostamente hábeis a ensejar a superação da personalidade jurídica, com a subsequente citação daqueles que serão atingidos pela possível ampliação da responsabilidade.

Destaca-se, por fim, que o novo Código de Processo Civil faz referência expressa à desconsideração inversa da personalidade jurídica, prevendo que lhe são aplicáveis as disposições sobre a desconsideração da personalidade jurídica (art. 133, § 2º)[61]. Como ressalta Arruda Alvim (2017, pág. 535), não há diferenças procedimentais em relação ao processamento da desconsideração da personalidade jurídica, sendo aplicadas à desconsideração inversa as mesmas disposições adequadas à modalidade tradicional de superação da personalidade jurídica. O pedido de desconsideração inversa contra a pessoa jurídica pode ser formulado de forma originária, ou seja, na própria petição inicial em que propõe a demanda contra o sócio, ou de forma incidental, durante a fase cognitiva do processo que move contra o sócio, assim como na fase de cumprimento de sentença ou no curso da execução fundada em título executivo extrajudicial. Naturalmente, cumpre ao requerente demonstrar a reunião dos pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica, que, na sua modalidade inversa não se afasta dos parâmetros fixados na cláusula geral do artigo 50 do Código Civil, que, destarte, serve de baliza[62]. Nas palavras de Giordano Bruno da Silva Santos (2016, pág. 163), a teoria inversa baseia-se na existência de abuso da personalidade jurídica (neste caso, com o sócio ocultando seus bens por meio da sociedade empresária) caracterizado pelo desvio de finalidade ou na confusão patrimonial.

5. Conclusão [arriba] 

Concluída esta breve análise da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e suas implicações procedimentais em face das inovações trazidas pelo novo Código de Processo Civil, cabem algumas considerações finais a título de conclusão. A desconsideração da personalidade jurídica tem por escopo, nos casos admitidos em lei, estender os efeitos subjetivos do título executivo a membro ou ao administrador de pessoa jurídica, tornando-o patrimonialmente responsável por dívida dela em hipótese em que não teria nenhuma responsabilidade ou teria responsabilidade limitada. Essa possibilidade de relativização da autonomia patrimonial e da limitação de responsabilidade de pessoa jurídica, por meio da abstração in concreto sua personalidade jurídica, está prevista no Código Civil (art. 50), na Lei Antitruste (art. 34), no Código de Defesa do Consumidor (art. 28), na Lei de Crimes Ambientais (art. 4º) e, mais recentemente, no âmbito administrativo, na Lei Anticorrupção (art. 14). Nos dois primeiros diplomas e na Lei Anticorrupção, alinhados à teoria maior, é necessário demonstrar a insolvência da pessoa jurídica e o seu uso desvirtuado mediante fraude ou abuso do direito para se desconsiderar a personalidade jurídica. O ônus da prova é mais ameno quando o credor é consumidor e para aquele que busca o ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. Nestes dois casos, ao encontro da teoria menor, basta que a personalidade jurídica da pessoa jurídica represente um obstáculo para a satisfação do direito para que se legitime a sua desconsideração, não havendo necessidade de se configurar a existência de fraude ou de abuso de direito.

Apesar de a desconsideração da personalidade jurídica ser admitida há anos na prática forense nacional e estar positivada, no plano de direito material, com suas fragilidades e vicissitudes, desde 1990, ainda não havia sido regulamentado o procedimento para a sua efetivação. Por isso, o primeiro benefício do novo Código de Processo Civil foi conferir segurança jurídica aos operadores do direito, mormente porque a doutrina e a jurisprudência, principais fontes utilizadas para integrar a lacuna, não tinham logrado definir um rito compatível com os valores constitucionais. O Código de Processo Civil de 2015 consagrou a prescindibilidade de ação de autônoma para que seja desconsiderada a personalidade jurídica, prevendo que pode ser realizada no próprio processo em que se mostra cabível tornar sócio ou o administrador responsável patrimonial por dívida da pessoa jurídica. Estatuiu o Código que a desconsideração da personalidade jurídica pode ser postulada ab initio (pedido originário) ou incidentemente (pedido incidental), no curso da fase de cognitiva ou de cumprimento de sentença, bem como em processo de execução fundada em título executivo extrajudicial, garantindo, seja qual a forma e o momento em que se veicule o pleito, o contraditório prévio e direito de defesa. O ideal de comparticipação não se cinge às partes e ao juiz, mas, também, a todo aquele que pode sofrer efeitos diretos da decisão da causa. Por isso, o sócio ou o administrador, na qualidade de terceiro que integrará a relação jurídica processual, também tem o direito de não ser surpreendido, de influenciar o desenvolvimento do processo e na formação dos pronunciamentos judiciais.

Quando a desconsideração da personalidade jurídica é postulada já na petição inicial ou no curso da fase cognitiva, a decisão que acolhe o pedido de desconsideração deve tão somente declarar se o sócio ou o administrador tem, ou não, responsabilidade patrimonial, sem condená-lo conjuntamente com a pessoa jurídica em caso de acolhimento do pedido. Em virtude da ausência de vínculo jurídico com o credor, ele não pode vir a ser obrigado, mas, sim, responsabilizado por força da desconsideração da personalidade jurídica. Do ponto de vista prático, é bastante questionável a opção de se postular a desconsideração da personalidade jurídica durante a fase cognitiva, mesmo na esfera recursal. Há patente possibilidade de trazer-se desnecessariamente terceiro para a relação jurídica processual (com a incidência dos ônus processuais correspondentes) e de produção atividade jurisdicional inútil, retardando-se o julgamento da causa em virtude do efeito suspensivo do incidente ou, quando formulado no princípio do processo, da necessidade de se oportunizar o contraditório e a atividade probatória específica. Nesse ínterim, não há sequer reconhecimento de que a pessoa jurídica é devedora e de que os seus bens são insuficientes para satisfazer o crédito, quanto mais da fraudulência ou abusividade das ações do sócio ou administrador como exige a teoria maior. Haja vista o seu propósito, o pedido da desconsideração da personalidade jurídica parece ter melhor adequação durante o cumprimento de sentença ou do processo de execução, quando já há reconhecimento da obrigação da pessoa jurídica e resta demonstrada nos autos, por meio das tentativas fracassadas de penhora e/ou venda de bens, a insuficiência de seu acervo patrimonial. Em outras palavras, a desconsideração da personalidade jurídica afigura-se mais oportuna quando já está definida a responsabilidade da pessoa jurídica e mostra-se imprescindível resolver a responsabilidade patrimonial do sócio ou do administrador para o êxito da atividade satisfativa.

6. Referências bibliográficas [arriba] 

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Notas [arriba] 

* Este artigo é resultado de investigação que envolveu os projetos de pesquisa intitulados Garantias processuais civis dos bens transindividuais e Relações tensionais entre mercado, Estado e Sociedade: interesses públicos versus interesses privados, integrantes do grupo de pesquisa científica Tutelas à efetivação dos direitos indisponíveis do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado Acadêmico em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público, financiado pela Fundação Escola Superior do Ministério Público.
** Doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor de Direito Processual nos cursos de graduação e mestrado em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Pesquisador e Coordenador das Atividades de Pesquisa da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Mundial de Justiça Constitucional. Advogado. E-mail .
*** Doutor e Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor de Direito Privado nos cursos de graduação e mestrado em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Professor na Faculdade Meridional IMED e na Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul. Advogado da União. E-mail: .

[1] Adota-se a corrente realista no que diz respeito à natureza da pessoa jurídica, motivo por que se emprega no presente estudo somente a locução “desconsideração da personalidade jurídica”, e não “despersonalização da personalidade jurídica”, como o faz parte da doutrina. Sobre essa questão terminológica, veja-se PANTOJA, Teresa Cristina Gonçalves. Anotações sobre as pessoas jurídicas. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2007. pág. 85-124.
[2] Piero Verrucoli (1964, pág. 2) destaca que a teoria da soberania, elaborada por Haussmann na Alemanha e desenvolvida na Itália por Mossa, constitui um antecedente da disregard doctrine. A referida teoria visava a imputar ao controlador de uma sociedade de capitais as obrigações assumidas e não satisfeitas pela sociedade controlada, revelando, assim, a substância das relações em detrimento da sua estrutura formal. Veja-se VERRUCOLI, Piero. Il superamento della personalitá giuridica delle società di capitali: nella common law e nella civil law. Milano: Giuffrè, 1964.
[3] Walfrido Jorge Warde Júnior (2004, pág. 114-167) esclarece que as funções atribuídas à limitação da responsabilidade entrariam, no século XX, em choque com as novas tendências do pensamento econômico e com os resultados da análise econômica do direito. Esses acontecimentos determinariam a crise da limitação da responsabilidade, a qual teria contribuído para o aparecimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica como técnica de imputação de responsabilidade aos sócios.
[4] No case Bank of the United States vs. Deveaux, julgado pelo célebre juiz Marshall, na Suprema Corte norte-americana, a discussão processual foi centralizada no âmbito da definição da competência jurisdicional para o seu julgamento. Até então o Tribunal tinha se manifestado no sentido de que a corporation, como reunião de várias pessoas, é invisível, imortal e sua existência somente ocorria em virtude de seu reconhecimento pelo sistema jurídico. Nesta linha de raciocínio, uma corporation – intangível e invisível – não poderia ser considerada como cidadã de determinado Estado Federado. Sem embargo, a Constituição norte-americana, no artigo 3º, seção 2ª, limita a jurisdição dos tribunais federais daquele país às controvérsias entre cidadãos de diferentes Estados. Entretanto, no caso assinalado, com a intenção de preservar a jurisdição das Cortes Federais sobre as corporations, Marshall conheceu da causa, considerando a condição das pessoas individuais que compunham a entidade. Assim, manifestou-se a Corte Suprema no sentido de que se devia levar em conta a cidadania estadual dos indivíduos que compõem a sociedade. Não há como se deixar de reconhecer, neste case, um importante precedente no sentido de levar em consideração não apenas a estrutura formal das pessoas jurídicas, sendo imperativo, em certas situações específicas, buscar a efetiva realidade que se esconde sob o seu manto protetor. Veja-se, a propósito, FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Desconsideração da personalidade jurídica: análise à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2002. pág. 52-53.
[5] Assevera Phillip Lipton (2014, pág. 480) que “since the 1970s, the approach of the English courts has been to see the Salomon principle as sacrosanct and so central to the structure and fabric of company law”.
[6] Na civil law, a estruturação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é atribuída à Rolf Serick, que sistematizou a doutrina no direito germânico por meio de tese defendida em 1953 na Universidade de Tübingen, publicada em 1955, sob o título Rechtsform und realitaet juristischer personen, seguida, na Itália, por Piero Verrucoli, mediante estudo intitulado Il superamento della personalità giuridica delle società di capitali nella common law e nella civil law, publicado pela editora Giuffrè em 1964. Explica Fábio Ulhoa Coelho (2016, pág. 62-63) que Rolf Serick sintetizou a sua formulação em quatro princípios: (a) diante do abuso da forma da pessoa jurídica, o juiz pode desconsiderar o princípio da separação entre sócio e pessoa jurídica para impedir a realização do ilícito; (b) não é possível desconsiderar a autonomia subjetiva da pessoa jurídica apenas porque o objetivo de uma norma ou a causa de um negócio não foi atendido; (c) levando-se em consideração as pessoas físicas que agiram pela pessoa jurídica, se não houver contradição entre os objetivos daquelas e a função desta, aplicam-se as normas sobre a capacidade ou valor humano à pessoa jurídica; (d) se as partes de um negócio jurídico não podem ser consideradas um único sujeito apenas em razão da forma da pessoa jurídica, cabe a desconsideração a fim de se aplicar norma cujo pressuposto seja a diferenciação real entre aquelas partes.
[7] Veja-se KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica: (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. pág. 69.
[8] Veja-se SÃO PAULO. Tribunal de Alçada Civil. Apelação Civil nº 9247. Relator: Des. Edgard de Moura Bittencourt, j. 11 abr. 1955. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 238, pág. 393-395, ago. 1955.
[9] Veja-se REQUIÃO, Rubens. Abuso e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 410, pág. 12-24, dez.1969.
[10] Veja-se COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976.
[11] Veja-se OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva: 1979.
[12] Sobre a origem e a evolução da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro, veja-se GÓIS, Jean-Claude Bertrand de. Perfil evolutivo da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil. Revista da ESMESE, Aracajú, n.11, pág. 87-101, dez. 2008.
[13] Veja-se COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 20.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. v. 2, pág. 27.
[14] Sílvio de Salvo Venosa (2003, pág. 253-254) sublinha que a atividade do novo ente deve dirigir-se a um fim lícito. Não se adapta à ordem jurídica a criação de uma pessoa que não tenha finalidade lícita. Não pode a ordem jurídica admitir que uma figura criada com seu beneplácito contra ela atente.
[15] O Código Civil prevê duas hipóteses de sociedades não personificadas: a sociedade em comum (arts. 986 a 990) e a sociedade em conta de participação (arts. 991 a 994). Habitualmente chamadas na doutrina por entidades de fato ou sociedades de fato, as sociedades em comum são aquelas que não possuem atos constitutivos registrados. Apesar de a pessoa jurídica existir desde o momento em que o contrato é firmado, mesmo de forma verbal, e os sócios atuem conjuntamente, a personalização acontece somente quando há o registro. Si et in quantum não houver o ato de registro, todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, sendo defeso inclusive aproveitar o benefício de ordem aquele que contratou pela sociedade (CC, art. 990). No que tange às sociedades em conta de participação – exceção em relação aos demais tipos societários, na medida em que não constitui pessoa jurídica, não adquirindo, via de consequência, personalidade jurídica –, apenas o sócio ostensivo possui responsabilidade solidária e ilimitada pelas obrigações da sociedade, porquanto é ele que está à frente dos negócios. Os demais sócios participantes são meros financiadores das operações, obrigando-se exclusivamente apenas perante o sócio ostensivo, nos termos do contrato social (CC, art. 991).
[16] Também são consequências da personalidade jurídica o nome, a nacionalidade, o domicílio, e a capacidade de contrair deveres e de ser titular de direito subjetivos, inclusive aqueles que protegem os direitos de personalidade. O artigo 52 do Código Civil prevê expressamente que se aplica às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos de personalidade.
[17] No momento em que adquire personalidade, pessoa jurídica adquire também capacidade, que se estende a todos os campos do direito. Entretanto, esta capacidade possui algumas limitações: a necessidade de um representante legal para que seja manifestada sua vontade; a observação dos limites impostos no ato constitutivo; a tomada de decisões por meio do voto; e a existência de uma administração (DINIZ, 2005, pág. 261).
[18] Nas sociedades limitadas, ressalvadas algumas hipóteses (v.g., aquelas previstas nos artigos 1.010, § 3º; 1.080; 1.012; 1.015 a 1.017 e 1.158, § 3º, do Código Civil), os sócios são responsáveis até o valor de suas respectivas quotas, salvo se não estiver totalmente integralizado o capital social, hipótese em que todos os sócios respondem de forma solidária até o valor total do capital social (CC, art. 1.052). Semelhante responsabilidade têm os sócios ou acionistas das sociedades anônimas, visto que fica limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquirida (Lei nº 6.404/76, art. 1º). Já nas sociedades em comandita por ações, tão só o acionista diretor responde subsidiária e ilimitadamente pelas obrigações da sociedade (CC, art. 1.091). Nas sociedades em comandita simples os sócios comanditados respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, enquanto os sócios comanditários ficam obrigados somente pelo valor de suas quotas (CC, art. 1.045). No que respeita às sociedades em nome coletivo, todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente caso sejam insuficientes os bens da sociedade (CC, art. 1039). Por sua vez, nas empresas individuais de responsabilidade limitada, as pessoas que as constituem têm as responsabilidades limitadas aos capitais sociais, que não podem ser inferior a cem vezes o maior salário-mínimo vigente no País (CC, art. 980-A). Nas sociedades simples, os sócios respondem subsidiariamente pelas obrigações sociais apenas se assim o determinar o contrato social (CC, art. 997, VIII).
[19] Em razão da personalização da sociedade empresária, os sócios não respondem, em regra, por suas obrigações. Se a pessoa jurídica é solvente, quer dizer, possui bens em seu patrimônio suficientes para o integral cumprimento de todas as suas obrigações, o ativo do patrimônio particular de cada sócio é absolutamente inatingível por dívida social. Mesmo em caso de falência, somente após o completo exaurimento do capital social é que se pode cogitar de alguma responsabilidade por parte dos sócios, ainda assim condicionada a uma série de fatores (COELHO, 2016, pág. 32). Sobre a frustração da execução coletiva pela falência e a busca do patrimônio pessoal dos sócios, veja-se DINIZ, Gustavo Saad. Falência e problemas de desconsideração de personalidade jurídica. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, Magister, v. 6, n. 31, pág. 10-20, fev.-mar. 2010.
[20] Há a possibilidade da extinção parcial do vínculo societário nas sociedades limitadas, com a aplicação de um procedimento distinto. Veja-se, a respeito, FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2012.
[21] O responsável patrimonial responde com os bens que integram o seu patrimônio por obrigação de outrem, isto é, com a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou administrador, embora não seja o devedor, torna-se responsável patrimonial pela obrigação da pessoa jurídica, ficando sujeito à execução. Por isso, prevê o artigo 790, VII, do Código de Processo Civil de 2015, que, em caso de desconsideração da personalidade jurídica, os bens do responsável [sócio ou administrador] são sujeitos à execução. A respeito, veja-se BIANQUI, Pedro Henrique Torres. Desconsideração da personalidade jurídica no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2011. pág. 168-169.
[22] Por exemplo, nos casos do artigo 116, parágrafo único, e artigo 135, inciso III, ambos do Código Tributário Nacional, e artigos 117 e 158 da Lei nº 6.404/76: com frequência referidos, equivocadamente, como hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica.
[23] Rafael Lovato (2008, pág. 221-222) critica a teoria menor pelo fato de que a desconsideração pode atingir, neste caso, não só o patrimônio do sócio que agiu de má-fé e desviou o patrimônio da sociedade em prol de si mesmo, mas, também, daquele que tomou todas as medidas necessárias para uma boa administração e agiu de boa-fé. Assim, os riscos do negócio aumentam, e isto reflete no preço do produto final, além de desestimular novos e arriscados empreendimentos, pois, quanto maiores os riscos, menos investidores se interessam pelos empreendimentos.
[24] O caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor mistura casos de genuína aplicação da teoria a casos em que não se aplicaria, por terem outra solução legal, em que os sócios são penalizados pessoalmente (FIUZA, 2006, pág. 157). Além disso, impõe as penalidades do insucesso gerado pela má administração, a qual não se confunde com a má-fé. Foi exatamente para proteger os sócios de eventuais problemas externos e mesmo de uma eventual má administração que surgiu a responsabilidade limitada. Os parágrafos segundo (“as sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código”), terceiro (“as sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código”) e quarto (“as sociedades coligadas só responderão por culpa”) do artigo 28 do CDC também não versam sobre desconsideração da personalidade jurídica. Como consigna Marlon Tomazette (2001, pág. 90), tais hipóteses referem-se à extensão da responsabilidade das sociedades que mantém relações entre si.
[25] Vejam-se: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso especial. REsp 1.096.604-DF. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, j. 02 ago. 2012, DJe 16 out. 2012; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Agravo regimental no agravo de instrumento. AgRg no Ag 1.342.443-PR. Relator: Ministro Massami Uyeda, j. 15 maio 2012, DJe 24 maio 2012; e BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso especial. REsp 737.000-MG. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, j. 01 set. 2011, DJe 12 set. 2011, RSTJ vol. 224 pág. 337.
[26] A Lei nº 12.529 estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e a Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei no 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências.
[27] Segundo Fábio Ulhoa Coelho (1995, pág. 47), a teoria da desconsideração tem pertinência apenas quando a responsabilidade não pode ser, em princípio, diretamente imputada ao sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica. E quando alguém, na qualidade de sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica, provoca danos a terceiros em razão de comportamento ilícito, ele é responsável pela indenização correspondente. Não há, portanto, desconsideração da personalidade jurídica na definição da responsabilidade de quem age com excesso de poder, infração da lei, violação dos estatutos ou contrato social, ou por qualquer outra modalidade de ato ilícito. Em relação à má administração, o administrador não responde pelos atos praticados que não forem atos ilícitos. Ele responde “civilmente apenas pelas ações praticadas com culpa ou dolo em violação da lei ou dos estatutos, como assentado na doutrina societária, sem que se torne necessário desconsiderar a personalidade jurídica” (TEPEDINO, 2008, v. 2, pág. 27). Assim sendo, tanto a prática de ato ilícito quanto a má administração pelo administrador possuem consequências específicas àquele que praticou. A desconsideração somente poderá ocorrer quando houver prática do ato ilícito ou da má administração concomitantemente com fraude ou abuso.
[28] O enunciado 51 aprovado na Jornada de Direito Civil promovido pelo Conselho da Justiça Federal prevê que “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema”.
[29] Diante da lacuna na legislação trabalhista, é comum a aplicação subsidiária do artigo 50 do Código Civil na Justiça do Trabalho. Todavia, quase sempre se realiza uma leitura do dispositivo pela teoria menor, sendo considerada suficiente a caracterização de prejuízo ao trabalhador para que se desconsidere a personalidade jurídica. De acordo com Gladston Mamede (2010, pág. 239), a desconsideração da personalidade jurídica tem sido reiteradamente utilizada de forma equivocada na Justiça do Trabalho. Partindo da premissa de que os créditos trabalhistas têm natureza alimentar e são privilegiados, existem incontáveis julgamentos nos quais se desconsidera a personalidade jurídica da pessoa jurídica empregadora apenas como decorrência da insuficiência do patrimônio societário para fazer frente à condenação trabalhista. A partir da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, estendem-se os efeitos da obrigação sobre o patrimônio de qualquer dos sócios, independentemente de ter sido administrador ou ter responsabilidade direta sobre o dano verificado no patrimônio da empresa. O posicionamento é justificado apenas pela afirmação de que os créditos trabalhistas não podem ficar a descoberto. Ainda, sobre a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da Justiça do Trabalho, veja-se REIS, Marcelo Terra. Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária: fundamentos da Justiça do Trabalho. Revista Síntese de Direito Empresarial, São Paulo, Síntese, n. 21, pág. 114-132, jul.-ago. 2011.
[30] Veja-se BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Recurso ordinário em mandado de segurança. RMS 151.166-BA. Relator: Ministro Castro Meira, j. 07 ago. 2003, DJ 08 set. 2003, pág. 262, RDR vol. 27 pág. 27 e RSTJ vol. 172 pág. 247.
[31] Por exemplo, caso um cônjuge empresário tenha, antes da dissolução do casamento, adquirido bens móveis ou imóveis e, com o intuito de não os compartilhar com o outro, os registra em nome de sua sociedade. No momento da partilha, tal bem não fará parte do rol dos bens a serem divididos pelo casal, pois se encontra registrado no nome da pessoa jurídica. Exemplo de cabimento da desconsideração inversa da personalidade jurídica fora do âmbito do direito de família dá-se quando o devedor transfere seus bens para a sociedade com o intuito de não adimplir dívidas com seus credores. Sobre a desconsideração inversa no direito de família, veja-se MALHEIROS, Antônio Carlos. Teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica aplicada às relações familiares. In: ADAMEK, Marcelo Vieira von (coord.). Temas de direito societário e empresarial contemporâneos: liber amicorum Prof. Dr. Erasmo Valladão Azevedo e Novaes e França. São Paulo: Malheiros, 2011.
[32] Na 4ª Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal também se reconheceu esta possibilidade, mediante edição de enunciado, de número 283, no sentido que a desconsideração da personalidade jurídica inversa é cabível quando o sócio utiliza a pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros.
[33] Veja-se BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso especial. REsp 948.117/MS. Relatora: Ministra Nancy Andrighi, j. 22 jun. 2010, DJe 03 ago. 2010.
[34] Para uma análise sobre a evolução do tratamento destinado ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica durante o processo legislativo, veja-se DIAS, Handel Martins. Análise crítica do projeto de novo Código de Processo Civil com relação à desconsideração da personalidade jurídica. Revista Síntese Direito Empresarial, São Paulo, Síntese, v. 6, pág. 48-76, 2013.
[35] Trata-se do Capítulo IV - Do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica do Título III - Da Intervenção de Terceiros do Livro III - Dos Sujeitos do Processo da Parte Geral do Código de 2015. Cumpre anotar que a técnica de desconsideração da personalidade jurídica difere bastante das demais formas de intervenção de terceiro previstas no Título III. Estas diferenças não passaram despercebidas por Lorruane Matuazewski Machado e Jonathan Barros Vita. Veja-se MACHADO, Lorruane Matuszewski; VITA, Jonathan Barros. Desconsideração da personalidade jurídica e as alterações do novo Código de Processo Civil: uma análise à luz da função social da empresa. Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 266, pág. 153-173, abr. 2017.
[36] Também reforça a obrigatoriedade do procedimento o artigo 674, § 2º, II, do Código de 2015, pelo qual quem sofre constrição ou ameaça de constrição sobre bens por força de desconsideração da personalidade jurídica sem ter integrado o procedimento para este fim pode requerer o seu desfazimento ou a sua inibição por meio de embargos de terceiro.
[37] Neste sentido é a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vejam-se RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Décima Câmara. Agravo de instrumento. Agravo de Instrumento nº 70069249126. Relatora: Desembargadora Adriana da Silva Ribeiro, j. 08 jun. 2016, DJe 14 jun. 2016; e RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Décima Segunda Câmara Cível. Agravo de instrumento. Agravo de Instrumento nº 70070459847. Relator: Desembargador Umberto Guaspari Sudbrack, j. em 30 ago. 2016, DJe 01 set. 2016.
[38] A garantia do devido processo legal (due process of law) vem sendo incorporada modernamente à ideia de processo justo. Explica Humberto Theodoro Junior (2009, pág. 5-6) que o processo justo, em que se transformou o antigo devido processo legal, é o meio concreto de praticar o processo judicial para assegurar o pleno acesso à justiça e a realização das garantias fundamentais traduzidas nos princípios da legalidade, liberdade e igualdade. Neste sentido, para ser justo, nos moldes constitucionais do Estado Democrático de Direito, o processo deve consagrar, no plano procedimental, o acesso à justiça; o direito de defesa; o contraditório; a paridade de armas; a independência e a imparcialidade do juiz; a obrigatoriedade da motivação dos provimentos judiciais decisórios; e a duração razoável. No plano substancial, o processo justo deve proporcionar a efetividade da tutela àquele a quem corresponda a situação jurídica amparada pelo direito, aplicado com base em critério valorizados pela equidade, concebida, sobretudo, à luz das garantias e dos princípios constitucionais. Veja-se, a respeito, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, Magister, v. 6, n. 33, pág. 5-18, nov.-dez. de 2009.
[39] Ao eleger o incidente processual como a natureza jurídica para o procedimento de desconsideração da personalidade jurídica, o legislador foi ao encontro da tese que vinha prevalecendo na prática forense, inclusive com respaldo do Superior Tribunal de Justiça. Vejam-se, por exemplo, BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Seção. Agravo regimental em agravo em recurso especial. AgRg nos EREsp 418.385/SP. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 14 mar. 2012, DJe 16 mar. 2012; e BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso especial. REsp 331.478/RJ. Relator: Ministro Jorge Scartezzini, j. 24 out. 2006, DJ 20 nov. 2006.
[40] Para os adeptos dessa corrente era imprescindível a propositura de uma ação cognitiva autônoma para que se viabilizasse o contraditório e se pudesse alcançar uma certeza acerca da responsabilidade do sócio ou do administrador.
[41] Majoritariamente, a doutrina também defendia a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no curso de processo. Vejam-se, por exemplo, ALVIM, Eduardo Pellegrini de Arruda; GRANADO, Daniel Willian. Aspectos processuais de desconsideração de personalidade jurídica. Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, v. 412, pág. 63-84, nov.-dez. 2010; e THEODORO JÚNIOR, Humberto. A desconsideração da personalidade jurídica no direito processual civil brasileiro. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (Coords.). Processo societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012. pág. 317-331.
[42] Esclarece Alexandre Freitas Câmara (2015, pág. 425-426) que esta prática contrariava o modelo constitucional de processo, já que admitia a produção de uma decisão que afetava diretamente os interesses de alguém sem que lhe fosse assegurada a possibilidade de participar com influência na formação do pronunciamento judicial. Afinal, se ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal, é essencial que se permita àquele que está na iminência de ser privado de um bem debater no processo se é ou não legítimo que o seu patrimônio seja alcançado por força da desconsideração da personalidade jurídica. Sobre o contraditório no sistema comparticipativo instaurado pelo Código de Processo Civil de 2015, veja-se THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle. et al. Novo Código de Processo Civil: fundamentos e sistematização. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. pág. 69-139.
[43] Luis Alberto Reichelt (2015, pág. 249) anota que o sujeito cujo patrimônio se pretende seja responsabilizado mediante a desconsideração da personalidade jurídica é terceiro quando do início do debate processual. Não é autor, pois não é o responsável pelo pleito de tutela jurisdicional, nem é réu, dado que não é em face dele que a tutela jurisdicional foi originariamente solicitada. Com o seu ingresso na relação processual, assume a condição de parte.
[44] A teor do artigo 1.062 do Código de Processo Civil, é cabível a desconsideração da personalidade jurídica também nos processos de competência dos juizados especiais.
[45] Infere-se do disposto nos artigos 134, § 4º, e 135 do Código. Não há sentido interpretação restritiva na linha de que é defeso ao requerente produzir provas posteriormente, de modo que a fase instrutória seria aproveitada apenas pelo requerido.
[46] Nesta linha, Guilherme Rizzo Amaral (2015, pág. 210) explica que o juízo de admissibilidade do incidente não constitui um juízo de certeza, nem mesmo de preponderância de provas, mas, sim, de verossimilhança das alegações do requerente. É o que basta para a instauração do incidente, sendo que a efetiva comprovação dos pressupostos legais da desconsideração é exigida apenas para a desconsideração propriamente dita da personalidade jurídica.
[47] O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já teve a oportunidade de se manifestar no sentido de que, para o juízo de admissibilidade do pedido de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, a demonstração, ao menos indiciária, da presença dos requisitos materiais para a desconsideração da personalidade jurídica é suficiente para viabilizar a instauração do incidente. Veja-se RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Nona Câmara Cível. Agravo de instrumento. Agravo de Instrumento nº 70069291714. Relator: Desembargador Eugênio Facchini Neto, j. em 03 maio 2016, DJe 10 maio 2016.
[48] Malgrado o Código fale, no artigo 134, § 3º, em suspensão do processo, o feito não fica sobrestado, mas, sim, processando, nos próprios autos, o incidente de desconsideração.
[49] Aliás, assim poderia proceder como assistente da pessoa jurídica (CPC, art. 119), a despeito de pleito de desconsideração da personalidade jurídica.
[50] Arruda Alvim (2017, pág. 535), ao analisar o tema, recomenda que, se for possível, a questão sobre a aplicação da superação da personalidade jurídica seja resolvida desde logo, por decisão interlocutória, evitando-se, desta forma, que os sócios tenham que esperar toda a tramitação do feito para, só então, ver definido se tem ou não responsabilidade patrimonial sobre a dívida da pessoa jurídica.
[51] Reconhecida a responsabilidade patrimonial do sócio ou do administrador na fase cognitiva, ele pode impugnar o cumprimento de sentença sem limitações de amplitude. Tendo em vista que é o seu patrimônio que vai satisfazer o crédito, é defeso lhe negar o direito de questionar eventual excesso de execução ou outra matéria de defesa (v.g., causa modificativa ou extintiva da obrigação). Além salvaguardar os relevantes intentos que levaram a se reconhecer a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, essas proposições vão ao encontro do direito ao processo justo.
[52] Naturalmente que, em casos de excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, o sócio ou administrador é responsável direto pela obrigação, razão pela qual não há falar em desconsideração de personalidade jurídica. Nessas hipóteses, o sócio ou o administrador tem legitimidade passiva ad causam para responder pela obrigação da pessoa jurídica, devendo ser dirigido o pedido principal também contra ele. Em caso de acolhimento, o juiz condena, conjuntamente, a pessoa jurídica e o sócio ou o administrador. Não há, pois, interesse processual em se abstrair a personalidade jurídica para se alcançar o seu patrimônio pessoal.
[53] Além do efeito material consistente em tornar o sócio ou o administrador patrimonialmente responsável pela condenação imposta à pessoa jurídica, a decisão que acolhe o pedido de desconsideração de personalidade jurídica emana o efeito anexo previsto no artigo 137 do Código de Processo Civil de 2015, qual seja, tornar ineficaz em relação ao requerente eventual alienação ou oneração de bens havida em fraude de execução. E, a teor do artigo 792, § 3º, do Código, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.
[54] Sublinha José Miguel Garcia Medina (2017, pág. 235) que a decisão que julga o pedido de desconsideração da personalidade jurídica constitui decisão de mérito, estando sujeita à ação rescisória. Na mesma linha posiciona-se DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 17.ed. Salvador: JusPodivm, 2015. v. 1, pág. 521.
[55] Portanto, à luz do novo Código de Processo Civil, há duas maneiras de se levar a juízo a pretensão de se desconsiderar a personalidade jurídica: pedido incidental e pedido originário. Fredie Didier Junior defende a existência de uma terceira via para a provocação do debate judicial visando à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica: a ação autônoma de desconsideração da personalidade jurídica. Veja-se DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 17.ed. Salvador: JusPodivm, 2015. v. 1, pág. 520.
[56] No caso de pedido originário, o sócio ou o administrador (ou eventualmente a pessoa jurídica, no caso da desconsideração inversa) devem ser citados para apresentar contestação ou, se se tratar de execução fundada em título executivo extrajudicial, embargos à execução, de per si ou conjuntamente com a pessoa jurídica.
[57] Esta é a orientação adotada pelo Fórum Permanente de Processo Civil, em seu enunciado nº 125, in verbis: Há litisconsórcio passivo facultativo quando requerida a desconsideração da personalidade jurídica, juntamente com outro pedido formulado na petição inicial ou incidentalmente no processo. De forma didática Elpídio Donizetti (2015, pág. 116) explica que, se o requerimento se der na petição inicial, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para contestar o pedido principal e aquele referente à desconsideração. Como se trata de responsabilidades com fundamentos distintos, a pessoa jurídica e o sócio serão necessariamente citados.
[58] Nessa linha de que a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica depende da postulação da parte ou do Ministério Público: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. 15.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. pág. 571; e DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 17.ed. Salvador: JusPodivm, 2015. v. 1, pág. 520.
[59] A Constituição Federal, no artigo 5º, XXXII, eleva a defesa do consumidor à condição de direito fundamental e, no artigo 179, V, coloca a matéria como princípio orientador da Ordem Econômica. E no artigo 1º do Código de Defesa do Consumidor assenta-se que as suas normas de proteção e defesa do consumidor são de ordem pública e interesse social.
[60] Segundo Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero (2015, v. 2, pág. 106), o incidente de desconsideração da personalidade jurídica depende, em regra, de pedido da parte interessada ou do Ministério Público. Porém, pode o legislador expressamente excepcionar a necessidade de requerimento, como o fez, por exemplo, no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor.
[61] Jorge Lobo (2016, pág. 183-184) critica a positivação da teoria da desconsideração inversa pelo Código de Processo Civil, afirmando que este a teria transformado em suposto remédio contra os males da lentidão da Justiça. Veja-se LOBO, Jorge. A ‘desconsideração inversa’ e o novo CPC. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, nº 73, pág. 182-184, abr.-jun. 2016.
[62] Em sentido contrário é a posição esposada por Felipe Palhares (2015, pág. 55-80). Para ele, não parece lógico que os pressupostos adotados para a desconsideração normal da personalidade jurídica possam ser simplesmente estendidos para a modalidade inversa, sem qualquer adaptação a essa forma distinta de desconsideração, principalmente quando se observa que a desconsideração inversa acarreta sérios prejuízos à sociedade empresária.

O que se entende por teoria da desconsideração da personalidade jurídica?

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica é instituto aplicado desde o século XIX, que surgiu na busca de evitar ou até desfazer fraudes, abusos de direito, praticados por pessoas que se encobrem com o véu da pessoa jurídica para tentar se eximir de suas responsabilidades.

Qual a finalidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica?

O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica – IDPJ é uma modalidade de intervenção de terceiros que permite, incidentalmente ao processo, desconsiderar a personalidade jurídica e, desse modo, responsabilizar pessoalmente o integrante da pessoa jurídica (sócio ou administrador) nos casos em que a lei ...

Pode

A desconsideração da personalidade jurídica ocorre quando uma sociedade possui limitação de patrimônio dos seus sócios, no entanto, ainda assim, a personalidade jurídica da sociedade é desconsiderada para que o patrimônio dos sócios sirva para quitar as obrigações da sociedade.

Quais são as espécies de desconsideração da personalidade jurídica?

Desconsideração da Personalidade Jurídica: Direta, inversa, indireta e expansiva.