PERGUNTA:
Há um edital que está exigindo a fim de qualificação técnica a apresentação de no mínimo dois atestado de capacidade técnica e que pelo menos um seja de órgão público. O que fazer?
RESPOSTA:
A priori, o Estatuto das Licitações faculta aos licitantes apresentarem atestado de capacidade técnica tanto do setor privado quanto do setor público, a saber:
Dispõe o §4º do artigo 30 da lei de 8666/93:
§ 4º Nas licitações para fornecimento de bens, a comprovação de aptidão, quando for o caso, será feita através de atestados fornecidos por pessoa jurídica de direito público ou privado.
Reforçando o entendimento, de forma sapiente, Marçal Justen Filho comenta:
Uma das questões reside em que a lei refere-se a atestados fornecidos por pessoas jurídicas de direito público ou privado. A regra destinou-se a afastar praxe anterior, consistente em autorizar apenas atestados fornecidos pela própria Administração Pública. (in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 11º Ed, São Paulo: Dialética, 2005, p. 331)
A exigência de, no mínimo, dois atestado de capacidade técnica fere o princípio da legalidade, extrapolando os limites legais.
O § 5º do artigo 30 da Lei 8666/93 regra que:
§ 5º É vedada a exigência de comprovação de atividade ou de aptidão com limitações de tempo ou de época ou ainda em locais específicos, ou quaisquer outras não previstas nesta Lei, que inibam a participação na licitação. (negritei)
A Lei de Licitação em nenhum momento concede a possibilidade de exigir um número mínimo de atestados. A Administração não possui discricionariedade para tal, ou seja, não pode exigir algo que a lei não lhe permita.
Hely Lopes Meirelles, pai do Direito Administrativo Brasileiro leciona que ” Na Administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto, na Administração pessoal é licito fazer tudo o que a lei não proíbe. Na Administração Pública só é permitido fazer aquilo que a lei autoriza.” (grifo nosso)
Ademais, o particular pode em apenas um contrato ter executado objeto idêntico ou até superior a do objeto licitado, em que apenas este atestado já seria suficiente para demonstrar a capacidade da empresa.
Acerca do assunto, o professor Carlos Pinto Coelho Motta leciona:
“não é admissível a exigência de número mínimo, ou máximo, ou mesmo certo, de atestados de capacitação técnica” (in Eficácia nas Licitações e Contratos, 11ª ed., Belo Horizonte, Del Rey, 2008. p. 377).
A Corte de Contas da União vêm traçando diretrizes a respeito da matéria orientando os órgão públicos para afastarem este tipo de regra que restringe o universo dos participantes, a saber:
“[…] abstenha-se de exigir a apresentação de número mínimo e certo dos atestado de capacidade técnica, observando o que dispõe o art. 30, inciso II e §§ 1º e 3º, da Lei nº 8.666/93 e respeitadas decisões desta Corte de Contas […]” (TCU. Processo nº TC-004.960/2000-6. Acórdão nº 73/2003 – 2ª Câmara)
“[…] observe, nos futuros certames que realizar, as disposições contidas no § 1º do art. 30 da Lei 8666/93, abstendo-se de exigir número mínimo ou número certo de atestados de capacidade técnica, de acordo com entendimento desta Corte firmado nas decisões Plenárias nº 134/1998 e nº 192/1998 […]” (TCU. Processo nº TC-007.493/2000-3. Decisão nº 392/2001 – Plenário)
Contratação de projetos de obra pública: 1 – É ilícita a exigência de número mínimo de atestados de capacidade técnica, assim como a fixação de quantitativo mínimo nesses atestados superior a 50% dos quantitativos dos bens ou serviços pretendidos, a não ser que a especificidade do objeto recomende o estabelecimento de tais requisitos
Representação formulada por empresa acusou possíveis irregularidades no edital da Tomada de Preços n. 05/2011, do tipo técnica e preço, promovida pelo Conselho Regional de Corretores de Imóveis da 2ª Região – Creci/SP, que tem por objeto a contratação de serviços de elaboração de projetos de execução da obra de reforma e adaptação da sede da entidade. O relator, em consonância com a unidade técnica, considerou configurada ilicitude nos requisitos para demonstração de capacitação técnica das licitantes. O edital exigiu a apresentação de dois atestados ou declarações de capacidade técnica, devendo, cada um deles, conter “quantitativos mínimos de serviços de elaboração de projeto arquitetônico, compatíveis e pertinentes com o objeto da licitação (8.000 a 12.000 m²), com área construída não inferior a 4.000 m²”. Ressaltou que a jurisprudência do Tribunal aponta no sentido de que “a Administração Pública deve se abster de estabelecer número mínimo de atestados de capacidade técnica, a não ser que a especificidade do objeto o recomende, situação em que os motivos de fato e de direito deverão estar devidamente explicitados no processo administrativo da licitação”. Asseverou que, no caso concreto, tal circunstância não restou evidenciada. Além disso, a citada exigência demandava a comprovação de prévia elaboração de projetos para área de cerca de 8.000 m², que é “bem superior ao limite de 50% da área construída objeto da licitação”. Também por esse motivo, ao endossar proposta do relator, decidiu o Tribunal: I) fixar prazo ao Creci/SP para que adote providências com vistas a anular a Tomada de Preços n. 05/2011; II) determinar ao Creci/SP que “abstenha-se de exigir número mínimo de atestados de capacidade técnica, bem como a fixação de quantitativo mínimo nesses atestados superior a 50% (…) dos quantitativos dos bens e serviços que se pretende contratar, a não ser que a especificidade do objeto o recomende, situação em que os motivos de fato e de direito deverão estar devidamente explicitados no processo administrativo da licitação”. Precedentes mencionados: Acórdãos ns. 3.157/2004, da 1ª Câmara, 124/2002, 1.937/2003, 1.341/2006, 2.143/2007, 1.557/2009, 534/2011, 1.695/2011, e 737/2012, do Plenário. Acórdão n.º 1.052/2012-Plenário, TC 004.871/2012-0, rel. Min. Marcos Bemquerer Costa, 2.5.2012.
No mesmo sentido foram os julgados:
Processo nº TC- 016.123/2006-0. Acórdão nº 2302/2006 – Plenário
Processo nº TC- 014.947/2005-9. Acórdão nº 1871/2005 –
Plenário
Processo nº TC- 002.277/2000-6. Acórdão nº 460/2003 – 2ª Câmara
Por conseguinte a exigência estabelecida no diploma editalício restringe o caráter competitivo da licitação afrontando o inciso I, § 1º do artigo 3º da Lei 8666/93 que segue:
§ 1 o É vedado aos agentes públicos:
I – admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5° a 12 deste artigo e no art. 3° da Lei n° 8.248, de 23 de outubro de 1991;
Ao cabo, para arrimar mais ainda sua impugnação, segue abaixo alguns pareceres acerca da restrição do universo dos participantes:
TCU – Acórdão 2079/2005 – 1ª Câmara – “9.3.1. abstenha-se de incluir nos instrumentos convocatórios condições não justificadas que restrinjam o caráter competitivo das licitações, em atendimento ao disposto no art. 3° da Lei n° 8.666/93;”.
TCU – Decisão 369/1999 – Plenário – “8.2.6 abstenha-se de impor, em futuros editais de licitações, restrições ao caráter competitivo do certame e que limitem a participação de empresas capazes de fornecer o objeto buscado pela Administração Pública, consoante reza o art. 3º, § 1º, inciso I, da Lei nº 8.666/93;”
TCU- Acórdão 1580/2005 – 1ª Câmara – “Observe o § 1o, inciso I, do art. 3o da Lei 8.666/1993, de forma a adequadamente justificar a inclusão de cláusulas editalícias que possam restringir o universo de licitantes.”
Com desenvoltura, acerca do assunto, o jurista Marçal Justen Filho versa:
“O ato convocatório tem de estabelecer as regras necessárias para seleção da proposta vantajosa. Se essas exigências serão ou não rigorosas, isso dependerá do tipo de prestação que o particular deverá assumir. Respeitadas as exigências necessárias para assegurar a seleção da proposta mais vantajosa, serão inválidas todas as cláusulas que, ainda indiretamente, prejudiquem o caráter “competitivo” da licitação” (in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 11º Ed, São Paulo: Dialética, 2005, p. 63).
Não obstante, a título de informação, cumpri-me frisar que há decisões / entendimentos, em casos específicos, em que o Tribunal de Contas da União entendeu proporcional a exigência de dois atestados de capacidade técnica por existir uma razoabilidade que equilibrou o caráter competitivo da licitação com o zelo que a Administração precisa possuir para escolher um licitante apto para a execução do futuro contrato de forma satisfatória.
Diante do exposto, impugne o edital.
S.M.J.
Rodolfo André P. de Moura
Consultor Jurídico