A revista Ciência Hoje publicou um artigo relatando que pesquisadores

No final da década de 1970, em plena ditadura militar, a comunidade científica no Brasil crescia e ganhava importância. Mas o conhecimento produzido nos laboratórios e universidades não chegava ao público. Não existia uma cultura de divulgar ciência por parte dos cientistas nem canais efetivos de comunicação entre eles e a sociedade em geral.

Foi nesse contexto que o físico Alberto Passos Guimarães e o neurocientista Roberto Lent tiveram a ideia de criar uma revista para falar a todos de forma simples sobre os mais variados e complexos assuntos da ciência. Mais tarde, se juntariam a eles o físico Ennio Candotti e o biólogo Darcy Fontoura de Almeida.

“Naquela época predominavam nas bancas os fascículos italianos sobre temas científicos sem participação dos cientistas brasileiros que, em sua maioria, não davam importância a isso”, conta Lent. “Então, nossa ideia era sensibilizar a população sobre a pesquisa feita aqui e também instigar a comunidade científica a divulgar essa ciência.”

Lent: “Nossa ideia era sensibilizar a população sobre a pesquisa feita aqui e também instigar a comunidade científica a divulgar essa ciência”

O projeto embrião foi colocado no papel por Lent em 1978 com a ajuda de outros colegas cientistas. O material foi enviado para a avaliação de José Reis (1907-2002), um dos mais ativos divulgadores da ciência no Brasil. Médico, pesquisador e jornalista, Reis incentivou a criação da revista e alertou os colegas para as dificuldades que a ousada proposta poderia enfrentar. Entre elas, a diferença entre as linguagens científica e jornalística e a quase inexistente tradição de pesquisadores brasileiros escreverem para o público leigo.

Foi só em julho de 1982 que a ideia saiu do papel e a revista, batizada de Ciência Hoje, teve seu primeiro número editado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Escrita por cientistas e jornalistas e dedicada às pesquisas nacionais, foi pioneira no ramo das publicações periódicas brasileiras voltadas exclusivamente para a ciência.

O lançamento se deu em Campinas, na 34ª Reunião Anual da SBPC, que reuniu milhares de estudantes e professores universitários de todo país.

O número 1 já deixava claro o impacto que a ciência pode ter na sociedade, com uma série de artigos denunciando a poluição em Cubatão, cidade industrial de São Paulo. A temática polêmica gerou uma circular reservada do ex-Serviço Nacional de Informações para que as empresas estatais não anunciassem na revista. Apesar disso, Ciência Hoje se tornou um sucesso.

O primeiro número teve uma tiragem de 15 mil exemplares, que logo esgotou. Foi necessário imprimir uma segunda tiragem. Seis meses após o lançamento, a revista já contava com cerca de 4 mil assinantes. Dois anos depois, tirava 55 mil exemplares.

Com apenas um ano de existência, Ciência Hoje ganhava o Prêmio José Reis de Divulgação Científica, o maior da área no país. De lá para cá, a trajetória bem-sucedida se manteve. A revista cresceu tanto que deu filhotes.

A revista Ciência Hoje publicou um artigo relatando que pesquisadores
Em 30 anos, a revista publicou mais de 5 mil textos assinados por cientistas brasileiros, abrangendo todas as áreas de conhecimento, em especial as ciências naturais e da vida, como mostra o gráfico.

Em 1986, foi criado o encarte infantil ‘Ciência Hoje das Crianças’, que mais tarde se tornaria um veículo independente. Em 2001, foi criado o Instituto Ciência Hoje, que, além das revistas, acolhe o Ciência Hoje On-line e o Ciência Hoje das Crianças On-line, e também publica livros paradidáticos.

Nestes 30 anos, a revista publicou mais de 5 mil textos assinados por cientistas brasileiros, além de material produzido por jornalistas. Cerca de 300 artigos foram escritos por pesquisadores do exterior. Todas as áreas do conhecimento têm sido contempladas.

Entre assuntos polêmicos e importantes, escolhemos cinco capas representativas que ilustram o caminhar da Ciência Hoje e da ciência. Ao longo da reportagem, o leitor vai saber em que pé andavam as pesquisas científicas na época de sua publicação na revista, como estão hoje e quais são suas perspectivas.

Você leu apenas o início do artigo publicado na CH 294. Clique no ícone a seguir para baixar a versão integral.

A revista Ciência Hoje publicou um artigo relatando que pesquisadores

Henrique Kugler

Sofia Moutinho
Ciência Hoje/ RJ

Pequenas perguntas, grandes questões

O que diz a ciência sobre as inverdades do vídeo da ex-pesquisadora norte-americana Judy Mikovits?

O vídeo Plandemic tornou-se viral nas redes sociais. Foi visto por cerca de oito milhões de pessoas, apesar de ter sido retirado diversas vezes de plataformas como Facebook e YouTube, por conter informações falsas e perigosas sobre a pandemia do novo coronavírus. Foi publicado como uma peça de propaganda do livro A Praga da Corrupção (do inglês, Plague of Corruption), da ex-pesquisadora norte-americana Judy Mikovits, e acusa o diretor do U.S. Intitute of Allergy and Infectious Disease (NIAID) e membro da Força Tarefa de Combate ao Coronavirus nos Estados Unidos, Anthony Fauci, de ser o responsável pela morte de milhões de pessoas na pandemia de AIDS/HIV na década de 1980. Porém, algumas alegações de Mikovits – como a de ter sido revolucionária na descoberta de tratamentos para HIV e sua prisão por suas posições científicas – não conferem com fatos verídicos. Além disso, na entrevista apresentada no vídeo, Mikovits dá a entender que para curar a covid-19 não seria necessária uma vacina, mas uma resposta do sistema imunológico; que tratamentos como hidroxicloroquina seriam eficazes; além de mostrar diversos depoimentos de médicos dizendo-se forçados a dar declarações de óbitos em que constem covid-19. Desta forma, torna-se de extrema importância que o vídeo seja esclarecido, já que induz um pensamento contraditório por parte da população quanto ao entendimento de tratamentos e direções a serem tomadas para o combate a pandemia de covid-19.

A revista Science publicou um artigo que confere os fatos relatados por Mikovits na entrevista dada e expõe as informações falsas relatadas pela ex-pesquisadora. Sobre ela, os principais pontos descritos no referido artigo mostram que, apesar de o vídeo relatar que Mikovits é uma das pesquisadoras mais renomadas em sua área e tendo revolucionado o tratamento de AIDS/HIV, suas publicações não foram relevantes nas últimas décadas. Além disso, sua publicação como coautora na própria revista em 2009 teve que ser retratada dois anos depois devido aos estudos de vários outros laboratórios que não conseguiram replicar os resultados encontrados. Ela mesma confirmou que os dados apresentados anteriormente eram errôneos. Outro ponto importante é sobre a alegação da prisão da pesquisadora sem uma denúncia concreta, como mencionado na entrevista.  A revista reporta que houve uma denúncia do centro de pesquisa onde Mikovits trabalhou, no distrito de Nevada, por posse ilegal de dados de pesquisa, sendo esta denúncia posteriormente retirada. Para o entrevistador, no vídeo, Mikovits também alega não ser contra a vacina, mas evidências mostram que ela estava envolvida em movimentos antivacinas.

A revista Ciência Hoje publicou um artigo relatando que pesquisadores

Apesar do histórico contraditório da pesquisadora, são as afirmações errôneas quanto à eficácia de vacinas e as especulações sobre o coronavírus que mais preocupam. Mikovits afirma, por exemplo, que vacinas são responsáveis pela morte de milhões de pessoas e que não existe nenhuma vacina que funcione contra vírus de RNA. Porém, sabemos que vacinas contra diversos vírus de RNA – como os vírus influenza, sarampo e febre amarela – estão hoje disponíveis no mercado e são comprovadamente eficazes, sendo responsáveis por salvar a vida de milhares de pessoas. Quando perguntada sobre a origem do SARS-CoV-2, a pesquisadora se esquiva da afirmação de que o vírus foi criado em laboratório, mas afirma ser impossível a ocorrência natural, alegando que a evolução do vírus só ocorreria em 800 anos. Entretanto, não há nenhuma evidência da manipulação do vírus e já existem dados científicos que estimam que o vírus mais próximo do SARS-CoV-2 seria proveniente de morcegos e  identificado pelo Instituto de Virologia de Wuhan (China) com distância evolutiva de em torno de 20-80 anos. A pesquisadora também afirma que o uso de máscaras ativaria o vírus, sendo que não há qualquer evidência de que o uso da máscara facilite a doença.

Por fim, as acusações ao diretor do NIAID sem provas concretas juntamente com as alegações da eficácia da hidroxicloroquina nos levam a crer que o vídeo seja mais um caso de disseminação de fake news, visto que diversos estudos clínicos já publicados ou em desenvolvimento têm demonstrado efeitos reduzidos da hidroxicloroquina no tratamento de covid-19. Além das contraprovas dos relatos de Mikovits publicadas no artigo da revista Science, o jornal The Washington Post também publicou um alerta quanto à gravidade das informações falsas ditas por Mikovits, que acabam por levar pessoas que não têm formação científica a questionar os dados estatísticos sobre a situação da infecção e mortes por covid-19. Inverdades e temas em torno de “teorias da conspiração” de fato servem como propaganda para venda de livros, aparições na mídia e causam rebuliço nas redes sociais, mas, infelizmente, prejudicam muito o entendimento da população sobre a importância de medidas preventivas e atrasam os esforços concentrados no combate a pandemia de covid-19.

Juliana Camacho Pereira

Instituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro

O novo coronavírus está sofrendo muitas mutações e se tornando mais virulento?

Na verdade, mutações fazem parte do cotidiano dos vírus, da evolução viral. Há vírus que acumulam mais mutações do que outros – os de genoma RNA têm taxas mais altas de mutação do que vírus de genoma DNA. Os coronavírus, como o SARS-CoV-2, embora seja vírus de genoma RNA, não acumula mutações em altas taxas. Contudo, isso não quer dizer que a cada ciclo replicativo os vírus vão se tornando mais virulentos. Muitas mutações nem permanecem na população viral, outras tantas impactam negativamente os vírus, que deixam de existir por seleção natural. A virulência, grande parte das vezes, é determinada de forma complexa. Precisaria uma combinação de algumas mutações favoráveis para ter impacto em modular virulência. E quem disse que aumentar virulência seria sempre algo vantajoso para ser selecionado positivamente e fixado na população viral? O hospedeiro pode ficar tão debilitado, ou até morrer muito rapidamente, a ponto de transmitir menos vírus, por exemplo. Hospedeiro vivo e menos doente, como os pouco sintomáticos da covid-19, circulam mais e transmitem por mais tempo os vírus. Isso não é regra, mas pode ocorrer. Neste caso, aumentar virulência em si não necessariamente reflete vantagem adaptativa.

A ideia de que o SARS-CoV-2 está mutando e se tornando mais virulento foi levantada há pouco tempo em dois trabalhos, mas não há base científica para sustentar essa hipótese. Ligar mutação a aumento ou diminuição de virulência requer experimentos complexos em laboratório para se chegar a alguma conclusão, e não pode ser concluído com base na análise das sequências genômicas ou porque, em cultura de células, o vírus produziu mais ou menos cópias do genoma viral. A patogênese de um vírus – isto é, os mecanismos pelos quais um vírus causa doença no hospedeiro – depende tanto de fatores virais quanto das múltiplas respostas do hospedeiro. Por isso, temos uma gama enorme de situações quando um vírus infecta uma população: desde assintomáticos; sintomas leves, moderados e graves; culminando com morte em alguns casos.

Clarissa Damaso

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Para que servem os estudos de sequenciamento de genomas virais? Pode-se saber se o vírus foi criado em laboratório?

Os estudos são importantes para se ter um quadro real da diversidade de vírus circulando numa região ou, até mesmo, no mundo, como é agora. Com base nas mutações acumuladas ou em alterações em regiões do genoma – tais como perda de pequenos trechos (deleções), duplicações ou ganho de alguns trechos (inserções) –, é possível traçar as relações entre as amostras virais e suas possíveis origens. Isso foi feito recentemente em um trabalho com SARS-CoV-2 que entrou na Islândia. Conseguiram traçar de onde vieram os vírus e como já se mesclou dentro do país. Estudos assim também permitem traçar a origem do vírus ao ser inserido na espécie humana. De forma semelhante, pesquisadores chineses e americanos compararam diversos genomas de coronavírus e demonstraram a provável origem do SARS-CoV-2 a partir de um coronavírus de morcego, além do possível envolvimento também de um coronavírus de outro mamífero, o pangolim. Acredita-se que vírus de ambas origens se recombinaram dando origem ao SARS-CoV-2.  Esse “pulo” para o homem é um processo conhecido como spillover e envolve o surgimento de mutações no genoma viral que favorecem essa adaptação a um novo hospedeiro. Através da análise desses genomas do novo coronavírus, ficou claro que se trata de um vírus surgido na natureza, uma vez que a manipulação genética de um vírus em laboratório deixa “marcas” no genoma que são passíveis de identificação. Outra evidência de que o genoma não foi manipulado vem da análise do sítio da proteína viral Spike que se liga a uma proteína celular que funciona como receptor para entra do vírus nas células humanas. O reconhecimento da proteína viral pela proteína humana é feito por uma sequência específica de aminoácidos, de tal forma que alterações nessa sequência reduzem a afinidade de ligação. A sequência de reconhecimento presente da proteína viral Spike não é a ideal, não é aquela que levaria a uma afinidade máxima, como predito por estudos computacionais. Assim, se o SARS-CoV-2 tivesse sido criado em laboratório, porque colocariam um sítio de reconhecimento que não se liga com máxima capacidade? Não faz sentido.

Clarissa Damaso

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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