Por que bill gates ficou conhecido

Por que bill gates ficou conhecido


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Nasceu em Angola, estudou Sociologia em Argel, foi guerrilheiro do MPLA, político, ganhou o Prémio Camões entre outras distinções. O Portal da Literatura entrevista-o novamente, tendo agora como pano de fundo o seu livro O Tímido e as Mulheres.

Quem lê o romance O Tímido e as Mulheres diverte-se com a ficção criada inteligentemente pelo autor, mas ao mesmo tempo alarma-se com as relações sociais e de poder que caracterizam a actual sociedade angolana, e talvez com o rumo do mundo. Que pressuposto o fez começar a escrever este livro, Pepetela?

É evidente para todos que o Mundo não está muito propenso para os optimistas, no quadro dos quais me inscrevia. Mas não era minha intenção, ao escrever esse livro, entrar por aí. O problema é que a realidade se impõe, mesmo se de uma forma subconsciente. Eu queria contar apenas uma estória que nasce com uma canção de juventude, argentina,”Quando calienta el sol”, que me aparecia quando acordava. Dias seguidos. Era uma premonição. Da canção, que costumava ouvir na rádio numa certa época (há muitos anos), surgiu uma personagem, uma locutora. E os personagens que se ligavam a ela, por necessidade de inventar relações e alguma acção. Umas coisas puxaram as outras e, pela primeira vez, pus em lugar de destaque um escritor. Bem, essas são as fases da escrita, que se foi desenrolando. Foi fácil e até divertido escrever esse livro.


Quando o silêncio finalmente se instalou, ficaram quietos, ela de olhos fechados, ele observando o umbigo, os seios, as coxas, o monte de Vénus. E se mortificava perante o medo. Que faço? Se avançar para uma carícia, ela pode se zangar. Se não avançar, ela vai pensar que sou um merdas, talvez até gay. A mão esquerda de Marisa estava muito perto da sua direita. Dez, vinte centímetros. Bastaria tocar na dela, como por acaso. Logo se veria a reação. Mas ele não era capaz.

O leitor vai sorrindo à medida que vai folheando o seu livro. Por onde andou o Pepetela a cavar estas personagens? São personagens fictícias ou há resquícios retirados de angolanos de carne e osso?


São personagens fictícias, embora nem todas sejam totalmente inventadas, podendo ter um tique de alguém que conhecemos ou observámos nalgum momento da nossa vida. Muitas vezes são coisas que ficam na memória e nem o sabemos. Surgem depois na escrita. Penso que é muito comum, mesmo nos escritores que dizem que têm tudo pensado antes de começarem a escrever um livro. Eu sou o contrário em absoluto. Deixo o rio levar-me e as personagens surpreenderem-me.

A personagem Marisa acabou por sofrer um incontornável desvio em relação às expectativas do leitor. Balançamos numa dúvida: a de saber se o autor se “divertiu” à priori sabendo que iria surpreender o leitor, ou se, pelo contrário, quis alertar para o facto de uma vez lançada a porcaria sobre alguém, nada removerá a dúvida dos espíritos mesquinhos?

As personagens mais interessantes são as que não são totalmente previsíveis. Claro que gosto de provocar os leitores, por vezes pelo humor, outras vezes de forma mais “séria”. Daí achar normal que algum personagem se solte e me pisque o olho. Fico contente. Mas nem sempre o deixo fazer tudo o que quer. Em algum momento entra em jogo o consciente, a razão, o que queiram chamar, e que nada é mais que o superego de Freud ou a autocensura de outros. A sociedade com suas normas acaba por se impor, de alguma maneira. Se isso surpreender de novo o leitor, ainda bem. Obriga-o a pensar, o que não é um trabalho inútil.

O Pepetela diz que se deixa arrastar e até surpreender pelo rio. Os cursos de água são imprevisíveis, pergunto-lhe por isso se houve algum fenómeno estranho durante a criação dos seus livros. O Pepetela escreve todos os dias, ou olha para o rio apenas quando sente necessidade?

São várias perguntas. À primeira, se houve algum fenómeno estranho durante a criação dos meus livros, responderei que sim. Quando escrevia o “Lueji” muito de mau acontecia na minha vida pessoal, desde doenças a avarias de máquinas, como se um mau espírito que tenha desenterrado na antiga Lunda tentasse impedir a progressão do livro. Até que fiz um feitiço literário, integrei o espírito na estória e tudo se compôs. Quanto à outra questão, escrevo todos os dias menos domingo (a praia é sagrada) quando estou em fase de escrita. Mas fico muitos meses sem estar em fase de escrita, sem um livro na cabeça, sem esse mundo paralelo portanto.

Angola é, em grande medida, a matéria-prima da sua inspiração. Suponho que o meio intelectual angolano, em geral, e literário, em particular, seja estimulante para a sua criação. Gostaria que nos falasse desse meio e dos autores angolanos.

Já participei mais do que hoje na discussão cultural angolana, por razões de mobilidade, umas ligadas à cidade de Luanda, outras a condicionalismos físicos, sobretudo da coluna. A ponto de já não acompanhar muitos dos escritores angolanos, particularmente os mais novos. De qualquer modo, é um meio que existe, com a União dos Escritores Angolanos como centro principal e aos poucos a retomar a importância que já teve no passado. E vão surgindo novos valores, os quais infelizmente não têm meios de se fazerem conhecer no estrangeiro. Essa é uma limitação, contra a qual eu próprio pouco posso fazer. Quando é possível, lá dou um empurrãozito, mas sem grandes consequências.

No O Tímido e as Mulheres há personagens para todos os gostos: uma locutora sensual, um escritor em início de carreira, um intelectual numa cadeira de rodas, uma estudante universitária e um irmão delinquente, e até mesmo corruptos nalgumas esquinas. Salta muito à vista a figura dos novo-ricos, figura típica em sociedades de rápido desenvolvimento. Não se surpreende com as alterações comportamentais e sociais de Angola (e de muitas outras partes do mundo), de há dez anos a esta parte? Como é que um autor com um Prémio Camões lida com estas transformações?

Não me surpreenderam estas alterações, já muito presentes num livro de 1992, “A Geração da Utopia” e até podia ir mais longe, ao “O Cão e os Caluandas” de 1985, onde se desenhavam os primeiros esquemas. São tipos próprios de sociedades em mutação, com economias frágeis mas dinâmicas, e enormes diferenciações sociais. Numa fase que Marx definiu como “acumulação primitiva de capital” quando analisou o capitalismo na Europa. Se depois do fim da guerra civil (em 2002) o processo acelerou, ele vinha no entanto de muito antes, como vários escritores tinham anunciado através das obras, não só eu. Destaco por exemplo Manuel Rui Monteiro, com o seu “Quem me dera ser onda”. Um autor (com Prémios ou sem eles) só pode lidar com essas situações de uma maneira: analisando os fenómenos como um sociólogo, mas sem cair na armadilha dos esquematismos, pois os personagens devem ter sangue e osso, como as pessoas; descrevendo com emoção o que vai imaginando baseado na realidade; deixando os personagens correr o seu caminho, mesmo se alguns acabam partindo a cabeça e/ou nos surpreendendo.

Acabou de falar em Manuel Rui Monteiro, mas conhece certamente obras de outros autores angolanos. Quer mencionar algumas?

Algumas obras, embora importantes, são pouco conhecidas fora de Angola. Gostaria de nomear “O Ano do Cão” de Roderick Nehone, “Os Transparentes” de Ondjaki, Os livros de João Tala ou Luís Fernando (“Clandestinos no Paraíso”, por exemplo), para além dos mais antigos e hoje considerados “clássicos”. Há outros escritores desta nova geração que referi, os quais têm dificuldade em editar, mesmo em Angola, revelando no entanto muitas qualidades, imaginação, poder narrativo. Também há mais jovens com essa potencialidade, embora choquem com algum menor domínio do Português escrito, derivado do mau ensino da língua nas nossas escolas, o que é uma barreira enorme.

Na entrevista que lhe fizemos há uns anos atrás disse-nos que gostava bastante da obra de Philip Roth. Passaram alguns anos, os visitantes do Portal da Literatura gostarão de saber certamente que obras tem lido ultimamente.

É difícil sequer lembrar tudo, mas continuo a gostar dos mesmos. Tenho ultimamente lido bastantes policiais nórdicos, mas estou a abrandar. Vou descobrindo alguns autores africanos pouco conhecidos por estas bandas e sempre me interessando pelos latino-americanos (brasileiros incluídos). Começa a conhecer-se mais no Ocidente a literatura japonesa e chinesa, que têm obras absolutamente fenomenais. Começo a ter dificuldade em reter alguns títulos e seria muito complicado procurá-los na minha biblioteca…

A pergunta que se faz habitualmente: o que está a escrever neste momento?

Nada de ficção, por enquanto. Uma ou outra crónica, uma ou outra entrevista, como esta. Mas ainda não tive uma primeira frase arrebatadora. Vai acontecer um dia, não tem maka… Somos nós que inventamos o tempo, devemos saber degustá-lo sem angústias.


Muito obrigado Pepetela por mais esta entrevista.


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A necessidade de arrumar

2006-07-18

Estando Penafiel a homenagear Mário Cláudio, nada como relembrar a entrevista que deu ao Portal da Literatura em 2006…

Entrevista a Mário Cláudio no âmbito do seu romance Camilo Broca. 

Mário Cláudio e o seu "Camilo Broca" em entrevista ao Portal da Literatura - um romance onde toda a excentricidade, toda a loucura dos seus personagens é fruto do autor ou daquilo que o mesmo gostaria de ser.

O Mário Cláudio é autor de uma obra multifacetada que abarca a ficção, a poesia, a dramaturgia e o ensaio. De todas elas qual é que gosta mais?
Todas elas me inspiram uma simpatia de fundo, e uma irritação eventual. No momento em que as escrevo parecem-me sempre definitivas, posto que só definitivas para mim, mas ao relê-las, julgo-as frequentemente ultrapassadas por aquilo que entretanto vivi. Não sou, nem nunca serei, um autor instalado na sua obra. Às vezes apetece-me fugir dela, mas de quando em quando regresso a uma espécie de fidelidade do artífice ao trabalho que produziu. Não, não tenho títulos preferidos.

Para que é que serve um romance, Mário Cláudio?
Para satisfazer a necessidade de arrumar, mediante o uso de palavras, o Mundo que calhou ao seu autor, e também para partilhar essa necessidade com aqueles que, achando-se na mesma onda de frequência, a possam igualmente experimentar.

Como é que surge o título «Camilo Broca»?
Surge de uma alcunha aplicada à família de Camilo Castelo Branco, entidade que aparece no romance como hipótese de personagem, mas não personagem efectiva, e muito menos como protagonista.

A descrição que faz das personagens que cria, como o Manuel Joaquim, a Rita Emília, o Domingos, para não falar do próprio Camilo, é muito rica em pormenores físicos e comportamentais. De uma forma geral eles são excêntricos. Como é que cria estas personagens?
São as personagens que trabalham um autor, e não este que as define e declina. Toda essa excentricidade, toda essa loucura, é muito mais minha, ou do homem que eu gostaria de ser, do que de qualquer figura histórica que eu pudesse aproveitar como modelo. De facto, vivos ou mortos, reais ou imaginários, os interventores em qualquer história são sempre, e exclusivamente, os que existem dentro de nós.

Numa entrevista, falando de Camilo Castelo Branco, disse que adora escritores irregulares, que não há nada que o irrite mais do que a regularidade de um escritor. Considera-se um autor irregular, insusceptível de ser oficializado?
Considero-me irregular, se bem que não seja isso o que assegura a grandeza. O que a exclui é de facto a banalidade, ou a neutralidade, essa trágica condição de certos artistas de quem nunca alguém diz mal, mas de quem nunca alguém diz muito bem. Quanto aos autores oficiais há necessariamente bom e mau. Que seria dos grandes clássicos, se assim não fosse?

Que análise faz dos últimos dez anos da literatura em Portugal? Há algum facto que queira destacar?
Há propostas muito interessantes, e também uma insuportável repetição de fórmulas. Acho que cada vez menos me deparo com escritores pertencentes à minha família, mas sei que eles estão aí, acontecendo apenas serem muitíssimo jovens. Por enquanto há três ou quatro autores mais recentes que admiro muito, mas de que gosto pouco.

Uma pergunta que certamente interessa aos seus leitores. Que livro vem a seguir?Outro romance.


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Após uma trilogia dedicada aos Descobrimentos, Vera Cruz (2015, história da vida e obra de Pedro Álvares Cabral), Índias (2016, história da vida e obra de Vasco da Gama, Prémio Literário António Alçada Baptista) e O Livro do Império (2018, sobre Camões, o Império e a publicação d’Os Lusíadas), João Morgado deu a lume em 2021 Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso, com prefácio e consultadoria técnica de José Manuel Garcia e apresentado por João Paulo Oliveira e Costa, um historiador e romancista de elevada qualidade.

Se O Livro do Império foi estruturado segundo um enfoque pós-moderno, no qual História e Ficção se problematizavam mutuamente, Fernão de Magalhães é um regresso do autor ao romance histórico clássico, uma narrativa que segue a par e passo os dados históricos documentais, destacando os momentos e os episódios principais da viagem de circum-navegação de Magalhães (1519 – 1521), acrescida – tanto quanto nos parece - de quatro elementos ficcionais que superam o registo histórico: 1. – a história especificamente relacionada com a ave-do paraíso; 2. - o retrato psicológico de Magalhães e de alguns membros da tripulação (extremamente bem feitos); 3. - a descrição do sofrimento (não exagerado, antes verdadeiro) que os homens da armada sofreram ao longo da viagem de dois anos, principalmente durante a passagem do Oceano Atlântico para o Pacífico e ao longo da travessia deste; 4. [talvez o mais importante porque (a) constitui o capítulo inicial e (b) marca o sentido da fuga de Magalhães para Sevilha, transformando a sua vida num destino de herói), a substituição do cognome “Venturoso” de D. Manuel I por “Rei-Não”, desenhando (para Magalhães, claro) o modo atrabiliário e arbitrário como este governava o reino (cf., para além do primeiro, o capítulo “A armada da perseguição”). Na sessão de apresentação, João Paulo Oliveira e Costa suavizou o retrato negativo de D. Manuel presente no romance.

Como é tradicionalmente aceite, o romance histórico, sendo eminentemente um romance, deve ser avaliado como outro qualquer género de romance. Porém, sendo histórico, deve pagar o tributo à História, isto é, estabelecer uma relação com os documentos ou narrativas que fundamentam o tema tratado. Esta relação pode ser realizada de vários modos, inclusive pela dissonância ou desarmonia entre Ficção e História, como acontece, por exemplo, com Saramago (História do Cerco de Lisboa) ou com António Lobo Antunes (As Naus), na qual (dissonância) a Ficção ganha um papel, não mimético, mas de iluminadora dos sentidos da História.

Fernão de Magalhães estatui-se como um romance mimético da História e só assim fez sentido o autor socorrer-se de um “assessor técnico”, registar com abundância inúmeras notas de rodapé, bem como 15 pp. de “Notas Finais” e uma extensa bibliografia. Como Saramago apontou aqui, no JL (nº 400, 5/4/1990), de um modo muito límpido, existem duas opções para o romancista histórico, “uma, [narrativamente] discreta e respeitadora, que consistirá em reproduzir ponto por ponto os factos conhecidos, sendo a ficção mera servidora de uma fidelidade que se quer inquestionável; a outra, ousada, levá-lo-á [ao romance histórico] a entretecer dados históricos não mais que suficientes a um tecido ficcional que se manterá predominante”. Neste romance, João Morgado optou pela primeira vertente; n’O Livro do Império, pela segunda. A verdade é que há leitores para as duas vertentes, ainda que nos pareça (pela experiência de contacto com leitores em bibliotecas e escolas) que, com excepções, a maioria prefere a primeira vertente, a clássica. Transversal e superior a estas apreciações, como a obra de Fernando Campos nos ensina, impõe-se a qualidade narrativa do romance.

De Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso destacaríamos com alto valor qualitativo a dimensão humana das personagens (cruzamento dos pontos 2. e 3. acima enunciados), a narração dos hercúleos tormentos colectivos sofridos pela tripulação ao longo da viagem, bem como a descrição in actu das características psicológicas individuais, nomeadamente a coerência ao longo de todo o romance por que é desenhada a personalidade de Fernão de Magalhães, homem obsessivo, a raiar os limites do fanatismo, capaz de morrer na defesa da sua ideia e de, espantosamente, com ajuda de Ruy Faleiro (verdadeiro retrato do homem do Renascimento, tão científico quanto supersticioso), capaz de convencer, em Valladolid, a corte de Carlos I de Espanha (futuro Carlos V do Império Romano-Germânico) dos benefícios da viagem para o império castelhano. Capaz, ainda, contra as dissidências de alguns capitães, que contra ele se amotinaram ou o abandonaram, de persuadir a tripulação da armada a seguir em frente quando, tão volumosos e ingentes os obstáculos, tudo apontaria para que se retornasse a Sevilha.

Do mesmo modo, ressalta, na descrição da viagem de circum-navegação, os conflitos entre a capitania portuguesa e a castelhana, os registos escritos da personagem italiana Lombardo (Antonio Pigafetta), as tempestades a sul do rio da Prata e a penetração em mares totalmente desconhecidos, a rivalidade com o piloto Estêvão Gomes, os grandes nevoeiros e os grandes gelos do sul do novo mundo, que congelavam o sangue e forçavam o corte de membros ou a morte por hipotermia (pp. 143-5: narração de autênticas cenas de terror), o encontro com os Patagões, a descrição do naufrágio do Santiago, o abandono de marinheiros revoltosos nos confins gelados da Patagónia, a descoberta do estreito para o Mar do Sul (Pacífico), hoje Estreito de Magalhães…

Enfim, a viagem de Fernão de Magalhães, continuada e finalizada por Sebastián Elcano, sintetizando de certo modo o espírito pioneiro ibérico dos Descobrimentos, constituiu-se como uma verdadeira epopeia, ainda mais aventurosa, devido aos suplícios vividos, ao pavor do desconhecido milha a milha, às dissensões entre a tripulação e, sobretudo, à distância percorrida, do que a de Vasco da Gama ou Pedro Álvares Cabral. Felizmente, para a História, houve um Pigafetta a relatá-la, mas não houve um Camões a poetizá-la.

Há muito que não líamos um romance cujas páginas desafiavam tanto os limites do humano, arrepiando-nos.

Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso,
A Esfera dos Livros, 320 pp., 18 euros.

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Pode um Desejo Imenso, título genérico da trilogia “Pode um Desejo Imenso”, “O Curso das Estrelas” e “À Beira do Mundo”, (2002, ora reeditado pela Quetzal), de Frederico Lourenço (FL), é o melhor romance português publicado este século, isto é, o romance mais completo englobando tanto o sentido tradicional deste género literário, oitocentista, como o moderno, século XX.

Com efeito, melhor significa aqui mais completo e mais completo é sinónimo de “perfeito”. Pode um Desejo Imenso possui com excelência todas as caraterísticas que habitualmente compõem o sentido clássico de romance: personagens fortes e outras não tanto; descrição verosimilhante, que permite ao leitor identificar tipos, classes e ambientes sociais; narração (original) de paixões e sentimentos, geradores de uma história de amor trágica; narração aventurosa da personagem principal, que lhe transforma a vida biográfica num labirinto de acontecimentos sentimentais dramáticos realistas, não fabulatórios ou fantásticos; exploração de temas humanistas (o Amor, a Morte, relação desejo-frustração; relação pais-filhos; homem-mulher); às quais caraterísticas se acrescentam elementos considerados romanescamente “modernos”: abundante intertextualidade, gerando por vezes um tecido filagranático barroco; relação imbricante entre tempos (Renascentismo; atualidade); libertação da palavra do referente concreto; quebra do império da continuidade linear e da cronologia (2ª Parte é anterior à 1ª); emergência do amor homoerótico – porventura o elemento marcante do romance, inaugurando em Portugal para muitos leitores (o que não significa que seja verdade) o romance homossexual; um estilo que trata o insignificante (a vida comezinha do quotidiano) com o valor semântico do importante; a recuperação do espírito do Humanismo Renascentista através da personagem principal (Nuno Galvão) como pano de fundo das relações individuais e sociais.

O leque de personagens é extensíssimo e abarca múltiplos tipos sociais e personalidades individuais: dos antigos catedráticos eruditos da Faculdades de Letras de Lisboa, “D. Quixote” e “Sancho Pança”, prepotentes e insensíveis à paixão da literatura, e das suas secretárias (Dra. Eulália, tão reprimida e frustrada que enlouquece), aos jovens assistentes (Nuno e Helena), dos idosos de família (mãe de Nuno, Bé, Concha…) aos de meia idade (Sofia, Helena e irmãos e respetivos consortes) e às crianças (filhos de Sofia, os dois filhos de Vicente e Rosália, Mariana e Hugo), bem como aos empregados tradicionais da família Galvão (Salvação e D. Aida), a alunos (Filipe e Patrícia), e ao “Grupo da Lírica” (para além de Nuno, Rosália, Vicente e João Pedro); finalmente essa personagem (um pouco caricata mas de fundo verdadeiro) do doutor Ligurino Aulácio ,de Braga, diretor do “Chispe”. Ricas e privilegiadas (as famílias de Nuno e Helena) convivem com necessitados (financeira e afetivamente, Filipe, Vicente), académicos com “broncos” (empresário, marido de Rosália), a antiga geração convive com a novíssima (crianças) - são de 20 a 30 personagens que, manobradas com mestria como numa grande máquina de peças articuladas e harmonizadas, se encontram (quase todas), na cena final da passagem do ano na casa de Helena na Arrábida, como símile de um retrato atual de Portugal. Uma cena romanescamente inesquecível, que não deixa de ostentar um pico de discórdia (o regresso de Gustavo, o irmão pródigo de Helena).

E a história central, baseada no tema eminentemente clássico, aqui tratado de um modo moderno: o Amor. Nuno Galvão, professor, apaixona-se por um seu aluno, Filipe Vaz, que namora com outra aluna, Patrícia. Nuno, camonista, estabelece uma relação com o presumível amor de Camões pelo jovem D. António Noronha, morto em combate em Ceuta (tese de Nuno, censurada pelo seu superior na Faculdade por inconveniente e criticada, sem negação absoluta, pelo amigo íntimo Christian, professor em Oxford). A descrição do perfil do amado Filipe por Nuno ficará decerto, doravante, como trecho obrigatório de recolha em futuras antologias sobre o amor: “Foi o perfil, claro. Um daqueles perfis clássicos. Sem ângulos feios: independentemente donde se olhava para ele. A perfeição marmórea era total. O Antínoo de Delfos (esse lugar-comum insubstituível); os Dioscuros fundidos num só e reduzidos à sua quinta-essência; o olhar parado das estátuas gregas nos momentos de imobilidade (…); a incapacidade enternecedora dele de compreender citações difíceis em latim; o olhar interrogativo, repentino, cinzento esmaltado de jade, que se cruzava com as contemplações culposas fugazmente arriscadas pelo professor; o modo como os jeans lhe assentavam nas pernas. Filipe Vaz. Nome, como tudo o resto, perfeito.” (p. 13).

Nuno, que já vivera uma paixão por Vicente (recuperada na última parte, agora mais serena), por Christian e já frequentara o Príncipe Real em engates de ocasião, entrega-se avassaladoramente a Filipe, dando-lhe tudo, que, após uma fase de hesitação, lhe corresponde. Filipe sofre de uma leucemia, Nuno dispõe-lhe médicos, dinheiro e casa, cumprindo assim a integralidade do amor

Como Eunice Ribeiro sublinha a propósito da versão reunida dos três romances: “… não pode deixar de causar espanto o grau de consciência construtora e o extremo apuro do jogo literário que aqui se desvelam: a subtileza e o refinamento da urdidura intertextual, a abundância das referências culturais, a meticulosa conceção das estruturas macronarrativas e micronarrativas…” (Escritas metamórficas: sobre a ficção de Frederico Lourenço, 2008, p. 87). Não poderia dizer melhor.

Se nas traduções e obras didáticas, Frederico Lourenço tem vindo a depositar, como autor, o seu espírito, isto é, a sua formação clássica, neste triplo romance, como narrador, depositou as pulsões do seu corpo, isto é, o conjunto atormentado dos desejos do corpo, ou, pelo menos, encarnou-as soberanamente na personagem Nuno Galvão.


Pode um Desejo Imenso,
Quetzal, 505 pp, 16,92 euros.

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Tendo por base o guião televisivo homónimo que escreveu para a RTP, Patrícia Müller (PM) publicou este ano A Rainha e a Bastarda, um romance histórico. Em 2016, tinha publicado o romance muito singular e de grande qualidade Uma Senhora Nunca, retrato de uma família da elite económica e social do Estado Novo com vastas propriedades no Alentejo.

A Rainha e a Bastarda é um romance histórico sem a aplicação dos códigos próprios deste subgénero literário. Tematiza a Rainha Santa Isabel e o seu enlace matrimonial com D. Dinis, bem como a guerra civil deste com o filho, o futuro D. Afonso IV. Ambientado no século XIV, retratando os costumes aristocráticos da corte no paço de Frielas, em Lisboa, Leiria e Coimbra e no convento de Odivelas, a autora não se inibe de usar por vezes – muitas vezes – um léxico atual, como se não só escrevesse sobre o passado com as categorias mentais do presente, como, ainda, envolvendo o enredo do romance de elementos policiais, sexuais e de mistério. Assim, são estas duas caraterísticas (léxico atual e envolvência de uma história do século XIV em géneros romanescos totalmente estranhos ao tempo da diegese) que perfazem a singularidade da escrita de PM neste romance.

E, permita-se-nos que, contra os leitores do romance histórico purista, que, pressupomos, constituem uma fortíssima maioria, elogiemos uma escrita assim. Lembremos o alto exemplo de O Nome da Rosa, de Umberto Eco, que cruzou com mestria o policial com o romance histórico. Mas, para não darmos outros exemplos estrangeiros, lembremos a obra romanesca de João Paulo Oliveira e Costa (seis volumes sobre o Império, de Ceuta ao Japão, publicados este século), na qual entrecruza igualmente o histórico com o policial, o romance de espionagem e abundantes cenas sexuais, como o comprova o seu último livro, A Estreia do Auto da Índia (2021), onde as intrigas sentimentais e as práticas sexuais são numerosas. Portanto, PM está muito bem acompanhada nesta sua pretensão de libertar o romance histórico da prisão exclusiva da narrativa histórica. Diferentemente de João Paulo Oliveira e Costa, que utiliza um léxico coetâneo dos séculos do início da Expansão, PM utiliza inúmeras palavras atuais, combinando-as com outras do século XIV. Conclusão: a singularidade absoluta de A Rainha e a Bastarda assenta neste à-vontade com que manipula a linguagem, cruzando as especificidades do passado com as novidades linguísticas do presente.

No trabalho sobre as personagens, nota-se uma tendência para o grotesco, rei, príncipes, rainha, nobres, aias, homens, mulheres são figurados como seres radicais, capazes do tudo ou do nada, ora cruelmente naturais, ora espiritualmente diáfanos Neste sentido, do lado dos primeiros tome-se o exemplo de Fernando José Alpoim, o “homem-bicho”; do lado dos segundos, a própria Rainha Isabel, ditadora poderosa na sua Casa, expiadora dos pecados do mundo nos sacrifícios sanguíneos que comete voluntariamente no seu próprio corpo, bem como na seu desejo (neurótico) de privação de comida (anorexia).

O trabalho de PM sobre a personagem Rainha Isabel é magnífico, dando-nos um retrato extremado, mas originalíssimo, da sua vocação religiosa, assumindo um estatuto herético (não revelamos qual, o leitor descobrirá) que raia o delírio psicótico em busca de uma pureza divina. Em 2010, António Cândido de Franco já escrevera sobre Os Pecados da Rainha Santa Isabel, mas PM eleva ao paroxismo a personalidade de Isabel, apresentando-a como uma louca, relíquia derradeira de guerras religiosas do sul de França e da Catalunha, diariamente em forçada penitência. Nas ações imponderadas, a Isabel juntam-se dois monges trajados de branco, que a defendem e a influenciam. Quem serão, a que Ordem pertencerão?

Por sua vez, D. Diniz é grotescamente figurado como uma máquina sexual, espalhando pelo reino filhos ilegítimos, a um dos quais intenta legar o reino (Sanches) e não ao presumido legítimo Afonso, apoiado por nobres que sentiam pela primeira vez escapar o seu poder feudal a favor de um Estado centralizado iniciado por D. Dinis. Afonso revolta-se contra o pai, é apoiado pela mãe, que tenta apaziguar a luta entre ambos.

Entre os bastardos de D. Diniz, existe Maria Afonso, a preferida do rei, freira no convento de Odivelas, porém de costumes muito livres no que diz respeito a relações sexuais. É assassinada no início do romance e D. Diniz incumbe Lopo Aires Teles de descobrir o assassínio. Lopo assume a figura do detetive atual no romance policial, a todos interrogando. Outra personagem apresentada grotescamente, Lopo é um cético, desumanizado pela morte do filho mais velho, que carrega literalmente aos ombros como se ele estivesse vivo e, posteriormente, pela morte do segundo filho. Porém, leal a D. Diniz, obedece, pagando mais tarde com a devastação da sua quinta, incendiada, e inicia o desvendamento das relações secretas entre os nobres, nas quais descobre que “há um segredo na corte. Um segredo de morte” (p. 211). Que segredo é assim tão poderoso? Deixemos o leitor saciar a curiosidade por si próprio.

Num romance de ódios, traições, de bestialidades, algumas camufladas por intenções divinas (todas as praticadas por Santa Isabel), de conspirações para se assassinar o rei, de guerras pela sucessão do trono, de miscelânea sexual (até o traseiro do cavalo Jeremias é violado), de troca de sexo por terrenos, destaca-se a aia de Isabel, Vataça, o elemento mediador entre todos: viúva do nobre Martim, Vataça está presente na câmara do rei, é a faz-tudo de Isabel, está também presente na câmara de Lopo e teve relações com o homem-bicho. Por ela, sabemos dos tormentos que Isabel sujeita o corpo, das suas obsessões com os pobres, os leprosos, os doentes, da sua mania de falar latim como língua de Deus. Uma belíssima personagem, muito bem construída esteticamente.

A Rainha e a Bastarda,
Quetzal, 356 pp. 17,70 euros.

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