Considerando a diferença entre juízos de fato e juízos de valor de qual deles se ocupa a ética

Em filosofia, antes de iniciar qualquer discussão, convém esclarecer os termos. Quando falamos de juízo não é diferente. Como veremos, a noção de juízo do senso comum (como a responsabilidade que se adquire após a maioridade penal), embora presente nas mais diversas situações do nosso dia a dia, está muito distante do conceito filosófico de juízo. Entende-se por juízo, enquanto conceito filosófico, o ato de julgar e de avaliar um objeto. Para facilitar a compreensão, nos deteremos nos seguintes tipos de juízo: o juízo de fato, o juízo de valor e os juízos kantianos.

Juízo de fato trata da avaliação criada a partir de uma realidade vivida; refere-se às coisas de modo objetivo. Por isso, os juízos de fato são descritivos, isto é, são afirmações que se propõem a descrever algum aspecto da realidade. Por exemplo, quando dizemos: “a neve é fria”, o que se nota é que estamos retratando a realidade de maneira factual, sem que haja a interferência de quaisquer valores ou percepções individuais. 

Juízo de valor, por sua vez, trata da avaliação criada a partir dos nossos gostos e percepções individuais. Por isso, pode resultar numa avaliação pejorativa e ter por base fatores culturais, sentimentais e ideológicos. Por exemplo, quando dizemos: “esta roupa é linda”, o que se nota é que “linda” é um valor atribuído à roupa de acordo com a nossa percepção individual e que, portanto, tem caráter subjetivo. No entanto, se a partir dessa availiação subjetiva, nós tentamos mudar a opinião ou os gostos de outra pessoa, o juízo de valor pode tornar-se um problema.

Antes de passarmos à definição dos juízos kantianos, vejamos o problema que eles buscam solucionar. Na modernidade, com as transformações ocorridas pela Revolução Científica, surge uma nova forma de investigação filosófica chamada teoria do conhecimento. Essa nova vertente de investigação filosófica buscava responder, em grande medida, às seguintes perguntas: De que forma o ser humano alcança o conhecimento? De que maneira ele apreende os objetos externos a ele? Nesse contexto, surgiram duas correntes filosóficas distintas que buscavam responder essas perguntas, a saber, o racionalismo e o empirismo.

Para os racionalistas, a verdade só pode ser alcançada pela razão. Eles partem da ideia de que os sentidos são enganosos e, por esse motivo, incapazes de nos revelar o conhecimento verdadeiro. Somente os princípios lógicos podem dar base a conhecimentos seguros. Para esses teóricos, todos os homens possuem uma gama de ideias inatas.

Já para os empiristas, só é possível alcançar a verdade, conhecer as coisas, a partir da experiência, ou seja, através dos sentidos. Para eles, a mente humana é uma tábula rasa, ou seja, uma folha de papel em branco, completamente sem conteúdo. Ao longo da vida, o homem adquire seus conhecimentos a partir da experiência sensível.

Em sua obra, Crítica da Razão Pura, publicada pela primeira vez em 1781, Kant busca solucionar o problema referente às origens, às possibilidades e aos limites do conhecimento, que pode ser a priori, isto é, anterior à experiência, ou a posteriori, posterior à experiência. É justamente aí que aparece o conceito de juízo. Segundo ele, os juízos são formados a partir da conexão entre sujeito e predicado. Entendendo-se por predicado, aquilo que se declara sobre o sujeito. Desse modo, os juízos kantianos podem ser classificados da seguinte forma:


  • Juízos analíticos são juízos em que o predicado pode estar contido no sujeito, sendo uma análise pura. Por exemplo, quando dizemos: “todo triângulo tem três lados”.
  • Juízos sintéticos a posteriori são aqueles em que o predicado vai se relcionar ao sujeito por uma síntese; têm por base a experiência.
  • Juízos sintéticos a priori são aqueles em que o predicado não é exraído do sujeito, mas pela própria experiência como algo novo; têm por base a razão.

É justamente dessa relação entre a razão e as experiências que se desenvolve o conhecimento. Ou seja, as experiências (sensações e percepções) fornecem a matéria-prima do conhecimento e a razão opera de modo a organizar e categorizar as suas estruturas. Com isso, Kant foi capaz de superar a longa dicotomia entre racionalismo e  empirismo, apresentando a solução que ficou conhecida como a síntese kantiana.

Ética é uma área da filosofia que busca problematizar as questões relativas aos costumes e à moral de uma sociedade, sem recorrer ao senso comum. A ética tenta estabelecer, de maneira moderada e com uma visão questionadora, o que é o certo e o errado e a linha, muitas vezes tênue, entre o bem e o mal. A ética está intimamente ligada à moral e consiste numa importante ferramenta para o bom convívio entre as pessoas e para o bom funcionamento das relações e das instituições sociais. 

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Ética versus moral

O idioma grego antigo possuía duas palavras de grafias e significados similares: éthos, que significa hábito ou costume, e êthos, que significa caráter, disposição individual e inclinação. A palavra mores, de origem latina, era apenas uma tradução para as palavras derivadas de ethos, significando também hábito ou costume.

O latim não diferenciava os costumes do caráter em sua tradução, o que causou uma confusão posterior: muitos estudiosos consideraram ética e moral a mesma coisa. No entanto, a distinção que parece explicar a diferença entre os termos da melhor maneira é a seguinte: moral é o hábito e o costume, enquanto ética é uma filosofia da moral, uma tentativa de fazer uma “ciência” moral.

Considerando a diferença entre juízos de fato e juízos de valor de qual deles se ocupa a ética
A ética indica aquilo que é certo e o que é errado com base na moral.

Enquanto a moral expressa os hábitos e costumes de uma sociedade, de um local, de uma comunidade situada no espaço e no tempo, além de designar a conduta individual de pessoas, a ética é aquela que tenta identificar, tratar, selecionar e estudar a moral (ou as várias morais) de maneira imparcial, laica, racional e organizada. É papel da ética, portanto, entender a moral e julgá-la pelo crivo da razão, estabelecendo se ela está correta ou não. Para aprofundar-se mais nessa questão, leia: Diferença entre ética e moral.

O que é ética para a filosofia?

Mais do que um simples corretor de posturas e atitudes das pessoas, a ética é um saber antigo ligado à filosofia. Quando o filósofo grego antigo Sócrates iniciou a sua jornada filosófica, que deu origem ao chamado período antropológico ou socrático da filosofia grega, as atenções filosóficas saíram da natureza e da cosmologia e passaram a centrar-se nas ações humanas e no que resulta delas. Após Sócrates, a filosofia passou a interessar-se por temas relacionados à vida em sociedade, à política e à moral.

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Aristóteles foi o primeiro pensador a sistematizar a ética.

Com a problematização acerca da moral e do convívio das pessoas, surgia a chamada filosofia moral, que mais tarde ficaria conhecida como ética. A ética foi sistematizada pela primeira vez pelo filósofo grego antigo Aristóteles, que formulou uma teoria ética baseada em uma espécie de guia moral das ações que visava sempre, na visão do filósofo, o alcance da felicidade.

Os filósofos helenistas, como epicuristas, cínicos e estoicos, também apresentaram visões de vida que podem ser reconhecidas como modelos éticos, porém são modelos de ética prática, pois tais teóricos ultrapassaram a especulação intelectual da filosofia e partiram para uma visão prática da ética, voltada para as ações cotidianas.

Durante a escolástica, a questão da ação humana para a filosofia deveria subordinar-se à vontade de Deus, e, por muito tempo, não houve grande modificação nos estudos sobre ética. Foi Nicolau Maquiavel quem marcou o Renascimento em relação à ética e moral, ao propor uma teoria do poder que, na prática, dissociava ética de política.

Os estudos sobre ética somente ganharam novo fôlego no fim da Modernidade, no período iluminista da Europa, em que questões políticas voltaram ao centro do debate e a ética veio como uma necessidade para controlar as ações das pessoas em meio a tantas revoluções na sociedade.

É nesse período em que o filósofo iluminista alemão Immanuel Kant escreveu o seu livro Fundamentação da metafísica dos costumes, apresentando uma teoria ética milimetricamente pensada: um sistema complexo baseado no dever, sendo que uma ação somente é ética se ela estiver de acordo com o dever e for empenhada pelo dever.

O sistema ético kantiano não admitia qualquer desvio da norma como ação moralmente válida, e o guia para encontrar a ação moralmente correta era o que o filósofo chamou de imperativo categórico. Para Kant, o ser humano deve fazer um exercício antes de agir. Esse exercício simples consiste em pensar se aquela ação pode ser considerada boa ou correta em qualquer situação em que ela for empenhada. Se a resposta for sim, então é uma ação moralmente correta. Se a resposta for não, é uma ação moralmente condenável.

Outras teorias éticas surgiram no século XIX para explicar a questão da moral e da ética, entre elas o utilitarismo, criado pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham e finalizado pelo filósofo inglês John Stuart Mill. O utilitarismo afirma que a moralidade de uma ação não está na ação em si, mas em sua finalidade e nos resultados dela. Nesse sentido, ações que, a princípio, são moralmente condenáveis, como a mentira e o furto, podem ser consideradas moralmente aceitas se forem praticadas visando um bem maior.

O que é ser ético?

Mesmo com a distinção entre ética e moral, muitas vezes ser ético significa agir de acordo com a moral. No entanto, nem sempre a moral está correta, sendo a ética aquela que pode verificar a validade das ações morais. As pessoas esperam fórmulas prontas que apresentem de maneira mastigada o que é ser ético. No entanto, a ética é constituída por vários elementos e várias regras que precisam ser pesadas e avaliadas para que o indivíduo ético seja reconhecido.

Ser ético, no fim das contas, é agir bem, buscando fazer o certo, não se desvirtuando e não causando prejuízo a outrem. Para podermos começar a pensar no que é ser ético, basta que nos atentemos para as nossas ações e o impacto delas no meio. A minha ação prejudica outras pessoas? A minha ação prejudica o coletivo em detrimento do meu lado individual e pessoal? A minha ação é  correta em relação às normas locais? A “balança” moral de uma pessoa é o seu senso ético, que é capaz de dizer se as suas ações são condenáveis ou não.

Veja mais: Valores morais e sua importância para a sociedade

Ética profissional

Considerando a diferença entre juízos de fato e juízos de valor de qual deles se ocupa a ética
A ética profissional consiste na aplicação da conduta ética no mundo corporativo e profissional.

Nesse caso, por tratar-se de uma especificação da ética em relação a um recorte da sociedade, fica mais fácil definir o que estamos falando. Se a ética é um conjunto de saberes que procuram definir o que é certo e errado com base na análise da moral, a ética profissional é a aplicação desses saberes no campo do exercício da atividade de profissionais, ou seja, daqueles que exercem profissões.

Nesse sentido, a ética profissional pode (e deve) ser aplicada, por exemplo, por médicos, professores, vendedores ou quaisquer profissionais no exercício de seus ofícios. Aplicar a ética, nesses casos, significa agir com lisura, respeitando as leis, os códigos específicos da profissão, e manter uma conduta ilibada, não prejudicando a outrem por meio de seu exercício profissional  nem agindo apenas visando unicamente o benefício próprio.

A ética na história da Filosofia

Os estudos de ética (tal como a conhecemos hoje, ou seja, um campo do saber filosófico que estuda a moral para então determinar como a sociedade deve agir) surgiram ainda na Antiguidade clássica, precisamente com Aristóteles, em seu livro Ética a Nicômaco. Porém, considera-se de extrema importância histórica para o surgimento da ética outro pensador grego, Sócrates, o eterno questionador.

Sabe-se que Sócrates saía pelas ruas de Atenas interrogando as pessoas sobre o que seriam valores da vida cotidiana, e muitas vezes esses questionamentos diziam respeito a valores morais, tais como o “bem” e a “virtude”. Suas conclusões eram sempre previsíveis: as pessoas não sabiam a verdade a respeito de tais valores, pois sempre acabavam respondendo insatisfatoriamente e  contradizendo-se.

Tudo o que os cidadãos atenienses sabiam advinha da moral cultural herdada socialmente, o que caracterizava um conhecimento de certo modo dogmático, não questionado, preconceituoso e, muitas vezes, irracional.

A ética sofreu diversas modificações ao longo da história, o que culminou em perspectivas diferentes para se tratar a moral e resultou também em diferentes correntes éticas. Dessas, as três fundamentais a um curso de ética para o ensino médio são o eudaimonismo (ou eudaimonia), a deontologia e o utilitarismo, e neste texto há um pouco sobre cada um desses temas.

Considerando a diferença entre juízos de fato e juízos de valor de qual deles se ocupa a ética
Aristóteles foi um dos primeiros filósofos a desenvolver um pensamento sistemático sobre a ética.

→ Eudaimonismo

Em Aristóteles, percebemos peculiaridades muito interessantes que esboçam o contorno geral de sua filosofia moral, a saber, primeiramente a introdução da práxis (prática), que se distingue dos estudos anteriores pelo fato de não estar ligada apenas a um plano racional, mas deve recorrer à ação prática humana (isso está presente na ética e na política).

Em segundo lugar, pelo fato de seu sistema ético ser teleológico|1|, o que abre as portas para que utilizemos a noção de eudaimonia para caracterizar sua obra moral. Antes de coçarmos nossas cabeças e nos perguntamos o que é isso, explicarei tal conceito. Eudaimonismo ou eudaimonia é uma palavra de origem grega formada a partir do vocábulo Daemon (deus, ou gênio, intermediário entre os homens e as divindades superiores e que deveria guiar o caminho dos homens) e diz respeito a uma doutrina que prega a felicidade como fim último da vida humana.

Segundo Aristóteles, a felicidade é um princípio e é visando à felicidade que agimos. A busca pela felicidade, porém, não dá ao homem a plena liberdade de ação, pois esta deve estar em conformidade com a felicidade dos outros. Para sermos precisos, devemos entender o que o filósofo entende por felicidade.

A felicidade deve estar em conformidade com a boa vida e esta nada mais é que a vida contemplativa, ou a vida do filósofo. Não somente para Aristóteles, mas para todos os gregos, o trabalho não era considerado algo bom, por isso, na organização social grega, ele era reservado aos não cidadãos (mulheres e escravos) e aos cidadãos de menor importância (artesãos).

Nessa hierarquia, logo acima dos que trabalhavam, estavam os soldados; depois, os políticos; e, finalmente, acima de todos, estava o filósofo, que deveria concentrar toda a sua energia nas atividades de contemplação do intelecto, do espírito humano, ou seja, deveria concentrar-se no conhecimento. Por isso, podemos chamar o eudaimonismo aristotélico de intelectualista, pois colocou como finalidade da vida humana a busca pela contemplação do conhecimento.

Acesse aqui: Bioética: a ética aplicada às pesquisas científicas e médicas

→ Deontologia

Na modernidade, temos pensadores que seguiram a base teleológica do pensamento aristotélico, mas a grande novidade veio no século XVIII, com o filósofo alemão Immanuel Kant e sua ética do dever, denominada mais tarde por deontologia|2|.

Considerando a diferença entre juízos de fato e juízos de valor de qual deles se ocupa a ética
Kant, o idealizador do imperativo categórico.

Para iniciarmos nesse autor, temos que analisar o título de seu principal livro sobre o assunto: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trata-se de um estudo da origem ou da fundamentação de algo transcendente, que se encontra fora do plano físico, portanto em um plano puramente racional e que independe das situações práticas do cotidiano humano dos costumes morais.

A partir dessa análise, já deduzimos que a ética kantiana não abre brecha para interpretações de ações morais práticas visando a finalidades, impondo um sistema que existe no cotidiano, mas independe dele, pois é um sistema universal do dever que se encontra em um plano puramente racional e que define claramente o que é certo e o que é errado.

Kant nomeou esse plano da ética de razão prática. Aqui os indivíduos devem agir por dever, pois o dever possibilita que uma ação seja moralmente correta. Esse dever deve estar aliado à liberdade, ou seja, à vontade, deixando claro que toda ação moralmente correta deve conter uma vontade de praticar o dever (vontade de fazer o que é certo).

Isso implica também que as ações morais devem sempre pensar na humanidade, tendo como fim um bem para a humanidade, caso contrário (caso utilize a humanidade ou qualquer ser humano como um meio para atingir outro fim), a ação não será moralmente correta. Isso é denominado imperativo categórico, e todo esse aparato oferecido por Kant determina, por exemplo, que a mentira não pode ser moralmente correta em qualquer situação. O imperativo categórico kantiano pode ser formulado da seguinte maneira: agir de modo que a sua ação se torne universal, ou seja, valha para todos em qualquer situação, sem exceções.

→ Utilitarismo

Agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar é a principal máxima utilitarista. Como doutrina ética, o utilitarismo, corrente ética criada pelo filósofo, jurista e economista inglês Jeremy Bentham e pelo também filósofo inglês John Stuart Mill, propõe um sentido inteiramente prático para a ética, no sentido de que, antes de agir, o autor de uma ação moral deve analisar a situação e desenvolver uma espécie de cálculo utilitário.

Considerando a diferença entre juízos de fato e juízos de valor de qual deles se ocupa a ética
Bentham foi o primeiro formulador da teoria utilitarista da ética.

Tal cálculo visa a fornecer ao agente uma resposta para a pergunta: qual ação provocará o maior benefício ao maior número de pessoas e o menor prejuízo ao menor número de pessoas? A resposta a essa pergunta deve então guiar a ação moral, tornando o utilitarismo uma ética consequencialista, ou seja, que foca nas consequências das ações, e não nas próprias ações. O utilitarismo, enquanto ética das consequências, rejeita a noção kantiana de ética baseada no imperativo categórico e visa apenas ao fim, à consequência de uma ação moral.

Notas

|1|Teleológico refere-se a telos, palavra de origem grega que significa fim, finalidade. Nesse caso, podemos dizer que a ética aristotélica propõe ações práticas que apontam para uma finalidade da ação moral.

|2| Deontologia, do grego deon, dever e logos, organização racional, ciência.

Por Francisco Porfírio
Professor de Sociologia