Revista de Investigação e Divulgação em Educação Matemática
Juiz de Fora, v. 5, n. 1, p.1-21, Jan. – Dez., e-ISSN: 2594-4673, 2021
A Questão de Gênero em Livros Didáticos de Matemática: Uma
Comparação entre materiais do Brasil e dos Estados Unidos
The problematic issue of gender in mathematics textbooks: a comparative analysis
between Brazil and the USA
Vanessa Neto
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Weverton Ataide Pinheiro
Indiana University Bloomington
Resumo
Os livros didáticos, que ainda são uma das ferramentas mais utilizadas na sala de aula de matemática em todo o
mundo, têm um impacto substancial na produção de subjetividades dos alunos. Nesse sentido, apesar das pesquisas
mostrarem a necessidade de eliminação do preconceito de gênero nos livros didáticos de matemática, eles ainda
reproduzem o retrato do que significa ser menina/mulher ou menino/homem na sociedade atual. Portanto, este
estudo oferece uma comparação entre dois dos livros didáticos de matemática do 6º ano mais utilizados no Brasil
e nos Estados Unidos, a fim de desvelar as formas de apresentação das questões de gênero. Esta análise concluiu
que os livros didáticos de matemática ainda são ferramentas importantes para reproduzir e criar posições de gênero
estereotipadas para meninas e meninos, influenciando na criação de subjetividades dos alunos em ambos os países.
Palavras-chave: Livros didáticos; Matemática escolar; Estudos de Gênero; Produção de subjetividades.
Abstract
Textbooks, which are still one of the most used tools in the mathematics classroom worldwide have a substantial
impact on the production of students’ subjectivities. In this sense, despite research showing a need to eliminate
gender bias in mathematics textbooks, they still reproduce the portrayal of what it means to be a girl/woman or a
boy/man in our current society. Therefore, this study compares two of the most used 6th-grade mathematics
textbooks in Brazil and the USA to unveil the ways gender subjects were presented. This analysis concluded that
textbooks are still major tools to reproduce and create stereotyped gender positions for girls and boys, influencing
in the creation of students’ subjectivities in both countries.
Keywords: Textbooks; School mathematics; Gender Studies; Production of Subjectivities.
Doutora pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professora Adjunta na Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. Cidade Universitária, Av. Costa e Silva -
Pioneiros, Campo Grande - MS, Brasil, CEP: 79070-900 ORCID iD: //orcid.org/0000-0002-2129-8040.
Lattes: //lattes.cnpq.br/7067680318081607. E-mail:
É Licenciado em Matemática pela Universidade de Brasília (2013) com intercâmbios acadêmicos em Taiwan
pela Assessoria de Assuntos Internacionais da UnB (Nacional Chengchi University) e nos Estados Unidos pela
CAPES (Ciência sem Fronteiras na Gateway Community College). É mestre em Educação Matemática pela
National Taiwan Normal University (NTNU) (2017) e atualmente é canditado ao Ph.D. e Instructor Associado
de Educação Matemática na Indiana University Bloomington (IUB), Departmento de Currículo e Instrução, 201
N Rose Ave, Bloomington, IN 47405-1006, EUA; ORCID iD: //orcid.org/0000-0003-2621-3381. Lattes:
//lattes.cnpq.br/1331847316573224. E-mail: .
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Introdução
Neste artigo, realizamos uma comparação de dois dos livros didáticos de matemática
mais utilizados para o 6º ano no Brasil e o equivalente ao mesmo nível de ensino, nos Estados
Unidos. Nosso objetivo é investigar de que modos estes dois manuais de aprendizagem
replicam as práticas estilizadas de gênero para ir além do ensino e da aprendizagem da
matemática, fazendo uma comparação entre os materiais curriculares mais usados nos
respectivos países. Intentamos, neste exercício, identificar e analisar as similaridades e as
diferenças presentes em cada um dos livros didáticos munidos dos óculos dos Estudos de
Gênero. Ressalta-se que é reconhecido que a intenção primeira destes materiais seria auxiliar
no ensino da referida disciplina escolar, no entanto, simultaneamente, eles acabam
normalizando a conduta dos alunos por meio dos discursos replicados em todos os âmbitos da
vida para performances de gênero, consequentemente produzindo sua subjetividade.
Neste artigo, as informações biológicas dos sexos (LAQUEUR, 1990) e as ideias sobre
feminilidades e masculinidades (gênero) não são tratadas da mesma forma que estudos as têm
abordado historicamente utilizando paradigmas de pesquisa positivistas. Neste estudo, gênero
é visto como signos construídos discursivamente (RICHARD, 1996), amparados por supostas
verdades que administram e direcionam as práticas dos corpos sociais. Neste sentido,
entendemos que tanto o corpo feminino quanto o masculino são produzidos a partir de um
conjunto de práticas regulatórias (BUTLER, 2010). Portanto, este estudo é mobilizado no
sentido de descrever e analisar as práticas de performances de gênero que permeiam os dois
livros didáticos. Assumimos que o livro didático de matemática é uma ferramenta importante
que influencia a produção das subjetividades dos alunos.
Partimos do pressuposto de que as práticas de matemáticas escolares, por meio de seus
conteúdos, auxiliam, reforçam, justificam e validam valores e moralidades, que são as noções
contingentes das compreensões de gênero na atualidade, produzindo assim as subjetividades.
Importante definir que o reconhecer-se é fundamental para a produção de subjetividade: “(...)
para ocupar-se consigo, é preciso conhecer-se a si mesmo; para conhecer-se, é preciso olhar-se
em um elemento que seja igual a si; é preciso olhar-se em um elemento que seja o próprio
princípio do saber e do conhecimento (...)” (FOUCAULT, 2006, p. 89; grifo nosso). O sujeito
se constitui em um duplo sentido, pois ele está subjugado a um conjunto de mecanismos de
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controle, ao mesmo tempo em que tem que praticar a relação consigo mesmo, ter conhecimento
de si; finalmente, o sujeito sempre está submetido aos jogos de poder sobre si e praticados por
ele mesmo. Portanto, o livro didático funciona de maneira pedagógica, por meio da produção
de subjetividades, ao instruir sobre como meninos e meninas, de maneiras diferentes, devem
ser e agir no mundo, quais práticas são esperadas para cada uma dessas duas performances,
macho e fêmea.
Em suma, nosso ponto é que os livros didáticos de matemática podem ser uma forma
de ensinar aos estudantes suas posições para realizar práticas estilizadas de gênero desejadas,
ensinando os indivíduos como ser e agir no mundo, com base em seu, suposto, sexo biológico.
Revisão de Literatura
Entendemos que é preciso aprofundar a discussão sobre como os livros didáticos
acabam por produzir subjetividades. Para isso, retomamos o ano de 1978, no Brasil, quando, a
partir de uma análise de base marxista, a educadora Maria de Lourdes Nosella trouxe
contribuições para o campo de pesquisas sobre livros didáticos no Brasil, com a defesa de sua
dissertação de mestrado “As Belas Mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos”, que
mais tarde veio a ser publicada como livro (NOSELLA, 1981). Importante destacar que o
material foi originalmente concebido para ser acadêmico, não comercial. Todavia, desde sua
publicação alcançou mais 12 edições, o que sugere a pertinência bem como o interesse do
público acerca dos resultados na área de pesquisa em Educação, mais especificamente sobre
livros didáticos no Brasil. Em sua análise, a autora destrinchou textos de leitura do que hoje
seria equivalente aos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, interpretando-os como compostos
de uma disposição de ideias que beneficiavam ou garantiam a organização social da classe
dominante por meio de um processo de ideologização imposto à classe dominada. Em sua obra,
bem embasada em suas premissas teóricas, especialmente de base freiriana, e com caráter
analítico crítico robusto, a autora denuncia o viés opressor que permeava os textos analisados,
que acabavam funcionando como meios para garantir a manutenção das desigualdades sociais.
Passando a uma pesquisa dos mesmos tipos de materiais curriculares mas, por meio de
uma análise que assume os óculos da crítica contemporânea, especificamente no campo de
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investigações da educação matemática, Dowling (1996) já discutia o papel dos livros didáticos
da disciplina como produtos culturais com o alegado objetivo de produzir e reproduzir a
matemática escolar, sendo, assim, um agente ativo nos processos de ensino e aprendizagem. No
entanto, na publicação em questão, o autor problematizava as narrativas de alguns materiais e
as disposições das atividades, além de outras estratégias, que, em suas interpretações,
conduziam a uma determinada produção de significado por parte do leitor, ou seja, o
pesquisador já falava da produção de subjetividades.
Em uma pesquisa subsequente, Dowling (1998) alertava sobre o pouco interesse nas
investigações com livros didáticos de matemática e defendia a necessidade de ampliação de
investigações nessa área, haja vista sua relevância para pensar os processos educativos formais.
Em um salto temporal, Fan, Zhu e Miao (2013) publicaram um levantamento acerca das
pesquisas realizadas no âmbito da educação matemática sobre livros didáticos e concluíram que
essa área de investigação está dispersa e, ainda, com muitas demandas de temáticas em aberto.
Contudo, os autores ressaltam que pesquisas que abarcam as questões de gênero e raça, por
exemplo, apresentam uma tendência de decrescimento no mundo todo nos últimos anos, e
concluem que isso pode ser devido a uma superação destas problemáticas nos livros didáticos
de matemática. No entanto, não é o que investigações concernentes, particularmente, à temática
de gênero têm demonstrado em livros didáticos de matemática. Em estudos brasileiros, é
possível mencionar os resultados encontrados em Souza e Silva (2018) e em Neto e Guida
(2019). A nível global, pesquisadores também questionaram a diminuição das pesquisas de
gênero no campo da Educação Matemática no século XXI (GREVHOLM, 2011; LUBIENSKI;
GANLEY, 2017). Em particular, nos Estados Unidos, um dos motivos pelos quais esse
fenômeno ocorreu foi devido ao fato de que as disparidades na aquisição de diplomas de ensino
médio e admissão em cursos superiores de matemática entre homens e mulheres diminuíram
entre as duas últimas décadas do século XX (DALTON et al, 2007; PEREZ-FELKNER et al.,
2014). Contudo, estudos recentes continuam a ressaltar a importância das discussões de gênero
no âmbito da matemática em diferentes níveis de ensino (LUBIENSKI; ATAIDE PINHEIRO,
2020).
Desse modo, assumimos que a questão de gênero na educação matemática não é um
problema superado, mas que demanda atenção. Sugerimos, então, pensar como as questões de
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gênero ainda são pautas necessárias ao debate atual no âmbito das pesquisas em educação
matemática.
Por exemplo, em 2015, as Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (UNESCO) anunciaram a necessidade de “eliminar o preconceito de gênero nos
livros didáticos”. Este relatório analisou livros didáticos de diferentes países ao redor do mundo
e concluiu que meninas e meninos são representados de maneiras muito distintas na maioria
dos materiais analisados: as meninas eram representadas com características passivas, amáveis,
participando de atividades domésticas e outras posições estereotipadas para mulheres enquanto
“meninos e os homens atuavam em empreendimentos e ocupações emocionantes e valiosos”
(UNESCO, 2015, p. 01).
Atualmente, os livros didáticos de matemática também têm um papel significativo na
manutenção dessas posições de gênero, conforme mostrado em Neto (2018) e identificado por
outro relatório da UNESCO:
Mesmo em alguns livros didáticos de matemática, como os da Turquia, os papéis
tradicionais das mulheres na casa (mãe, filha) são retratados no contexto da
cooperação. Acompanhada da imagem de uma mãe e uma filha cozinhando juntas, a
seguinte declaração ilustra esse padrão: “Havia quatro ovos na mesa. Ayse trouxe
mais dois ovos para a mãe. Somava seis ovos” (AYDIN et al. Apud UNESCO, 2016,
p. 13).
Ainda sobre as funções do livro didático para a educação básica, um conjunto de estudos
apontou para a importância atribuída aos livros didáticos que podem ser entendidos como
elementos substanciais para a constituição do sujeito na atualidade (PEÑALOZA; VALERO,
2016), o que, por sua, vez também se aplica aos livros didáticos de matemática (SILVA et al.,
2018).
Deste modo, fica explicitado o papel dos livros didáticos na produção de subjetividades
entendida nesta investigação como profundamente atrelada a construção de noções de gênero
que replicam práticas sociais e, até mesmo, acabam por validá-las.
Gênero como um problema e a matemática escolar
O conhecimento matemático há muito vem sendo associado ao progresso científico e,
portanto, ao bem-estar econômico de indivíduos e nações (VALERO, 2017). Recentemente,
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argumenta-se que o conhecimento matemático dos cidadãos é um promotor da diversidade e da
equidade para superar diferentes tipos de injustiça social. São muitas as vozes que afirmam a
necessidade de um aumento do desempenho matemático da população, a nível nacional e
internacional em nome do desenvolvimento das nações (OECD, 2013). Apesar disso, neste
artigo, entendemos a matemática escolar como uma política cultural, tal como propõe Valero
(2018), “(...) a matemática escolar é política porque a constituição histórica do conhecimento e
as práticas associadas emergiram e fazem parte das classificações e organizações que regulam
a vida social e, dentro delas, noções de quem as pessoas são e deveriam ser” (p. 108). Portanto,
como política cultural, na esteira dessa compreensão, o currículo de matemática escolar opera
para além dos processos de ensino e de aprendizagem de seus conteúdos, mas como um
conjunto de práticas inseridas em uma racionalidade que, de maneira nenhuma, é neutra, mas
carrega em si e replica racionalidades estereotipadas de gênero, inclusive, entre outras, como
defendido por Nosella (1981).
É importante entender como os Estudos de Gênero têm compreendido a construção
histórica e social dessa categoria que é o gênero.
A noção de gênero como categoria de análise histórica, tem sido defendida há algum
tempo, principalmente por Joan Scott ao afirmar que
Por gênero me refiro ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se relaciona
simplesmente às idéias, mas também às instituições, às estruturas, às práticas
cotidianas, como aos rituais, e tudo o que constitui as relações sociais. O discurso
é o instrumento de entrada na ordem do mundo; mesmo não sendo anterior à
organização social, é dela inseparável. Segue-se, então, que o gênero é a
organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica
primeira, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é causa
originária da qual a organização social poderia derivar: ela é, antes, uma estrutura
social móvel que deve ser analisada nos seus diferentes contextos históricos (1998,
p. 15).
Todavia, neste estudo, nos amparamos, principalmente no livro “Problemas de
Gênero” escrito por Butler (2010), na sua versão em Língua Inglesa (Gender Trouble), por
possuir notável relevância nos debates sobre a temática, uma vez que, com ele, a filósofa
inaugura um olhar sobre a noção de gênero como um problema. Questões tais como “a quem
interessa tratar o gênero?” ou “como o gênero é produzido?” viraram pauta das discussões
que se baseiam em discutir as propostas da autora bem como de seus interlocutores.
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Nos alinhamos ao entendimento proposto por Butler (2010) para quem, tanto gênero
como corpo e sexo são efeitos de práticas discursivas. Mais especificamente sobre gênero,
ela aponta que este é “um mecanismo através do qual se produzem e se naturalizam as noções
de masculino e de feminino” (BUTLER, 2006, p. 70). Esse entendimento coaduna com a
compreensão de Foucault (2014), pois interpreta que essas práticas discursivas operam por
meio de tecnologias de governo que repercutem na “[...] vida cotidiana imediata, que
classifica os indivíduos em categorias, designa-os por sua individualidade própria, liga-os à
sua identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que lhes é necessário reconhecer e que os
outros devem reconhecer nele” (FOUCAULT, 2014, p. 123), assim, as mencionadas práticas
discursivas funcionam para constituir e replicar noções bem estabelecidas acerca de quais
atitudes, comportamentos, práticas são adequadas ou não ao nosso tempo, bem como, para
quais corpos o são. Em suma, essas práticas discursivas nos ajudam a entender como ser e
agir no mundo, de acordo com um tempo e um corpo determinados.
Nesse sentido, o que nos torna mulheres? Muitos pesquisadores, especialmente,
filósofos e antropólogos se debruçam sobre as condições que fazem com que nos tornemos
mulheres, ou homens, numa adaptação livre da expressão cunhada por Simone de Beauvoir
(1980). Como exemplo, é possível destacar Margaret Mead (1971), uma das mais eminentes
antropólogas até hoje referenciadas em estudos sobre a constituição das noções do ser
homem e do ser mulher, após investigar quatorze comunidades, principalmente na Ásia,
buscando entender como essas elaboram o que é ser macho e o que é ser fêmea, concluiu
que as construções identitárias variam muito nessas localidades. Mesmo assim, ela afirma
que há regularidades que podem ser encontradas nas culturas que estudou. Para nós, interessa
destacar a constatação da “[...] necessidade de realização do homem” (MEAD, 1971, p. 131),
estabelecendo uma contundente relação entre orgulho e masculinidade. Disso, ela discorre
sobre como as atividades laborais que são atribuídas aos corpos que performam o masculino
são, recorrentemente, reconhecidas como mais valorosas em todas as sociedades estudadas.
A autora afirma que
Em cada sociedade humana pode-se reconhecer a necessidade de realização do
homem. Os homens podem cozinhar, tecer ou vestir bonecas ou caçar beija-flores.
Se tais atividades são apropriadas a eles, a sociedade como um todo e ambos os
sexos considerá-las-ão importantes. (MEAD, 1971, p. 131. Grifo nosso).
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Então, as variadas maneiras como diferentes culturas entendem e padronizam o
desenvolvimento dos seres humanos passa, necessariamente, por construções históricas e
sociais do que se entende viver num corpo generificado mas, sobretudo, há algumas
convergências, entre elas a necessidade de prestígio das atividades exercidas por homens,
quaisquer que sejam essas atividades.
Outros resultados importantes sobre a produção de uma ideia de gênero bem
estabelecida podem ser encontrados em Federici (2019), em que a autora sinaliza que a
classificação das mulheres na categoria de bruxas, no contexto da Europa quando começava
a emergir o capitalismo, bem como em outras partes do mundo, constitui-se como muito
importante para descrever um conjunto de práticas sociais e culturais que deveriam ser
reprimidas nas mulheres. A figura da bruxa, especialmente na Europa, exerceu um papel
pedagógico nas comunidades que começavam a desenhar uma nova ordem econômica que
demandava específicas dinâmicas sociais por parte das mulheres e, também, por parte dos
homens. A figura da bruxa, suas práticas, era aquilo justamente o que a mulher não deveria
ser, era o contraexemplo que até o hoje é válido.
Nessa seara, é contundente a afirmação de que se aprende a viver o gênero nas
relações sociais. Contudo, por mais que tenhamos uma ideia do que implica ser homem e ser
mulher na nossa sociedade na atualidade, essas categorias não são, de modo algum, estáticas
e/ou universalizantes. Ribeiro (2019), por exemplo, pondera acerca dos primeiros
movimentos feministas que reivindicavam o acesso ao mercado de trabalho e combatiam a
imagem da mulher como um ser frágil, delicado, que demanda cuidados; desconsideramos
que esta é uma mulher idealizada. Essas são mulheres brancas, em geral, pois as mulheres
negras não costumam ser descritas com tais características, o que pode ser evidenciado no
título da primeira obra de bell hooks, “E eu não sou uma mulher?”, de 1981. Ela questiona
exatamente a diferença de descrições que caracterizavam o que esse indivíduo descrito como
“mulher”, no singular, que acabava por deixar de lado um outro amplo espectro das
diferentes formas de “ser mulher”.
Baseados nestes estudos, empreenderemos as análises dos materiais didáticos
selecionados, compreendendo que estes operam, também, na produção e replicação de
práticas que nos ensinam sobre comportamentos, moralidades, atitudes adequadas, além de
matemática, é claro.
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Procedimentos metodológicos
A ideia para elaborar este artigo, surge do interesse dos dois autores que veem
realizando pesquisas com livros didáticos nos países mencionados e têm percebido a
urgência de tratar da problemática de gênero no campo da Educação Matemática. Os livros
didáticos foram escolhidos como instrumentos de pesquisa pelo fato de que essas
ferramentas ainda funcionam como o principal manual de ensino para os professores e o
principal manual de aprendizagem para os alunos no processo de alfabetização matemática
no mundo (FAN, 2013). Desse modo, os resultados aqui apresentados fazem parte de um
estudo que buscou entender como as noções de gênero apareciam representadas nos
materiais mais utilizados em ambos os países. Para este exercício analítico, comparamos os
dois materiais selecionados, destacamos as semelhanças e diferenças nas inscrições de
gênero nos livros didáticos de matemática do Brasil e dos Estados Unidos. Do Brasil,
examinamos o livro Praticando Matemática (ANDRINI; VASCONCELOS, 2015) por ser
um dos mais utilizado nas escolas públicas até o ano de 2018 de acordo com os dados
disponíveis sobre o programa em seu site. Em correspondência, o livro didático americano
escolhido foi Glencoe MATH (CARTER et al., 2015) devido à sua popularidade entre os
livros didáticos mais usados nos Estados Unidos (WEISS et al., 2001).
Nossa abordagem metodológica consistiu na leitura atenta de cada livro didático e na
seleção do apelo para personagens que desempenhavam determinadas performances de
gênero (profissões, ocupações e atividades desempenhadas), este exercício foi feito
selecionando cada trecho, imagem ou excerto em que havia menção ao gênero e colocando-
o no processo de análise. Assim, tarefas matemáticas, exercícios/atividades, bem como
imagens e desenhos foram os conteúdos analisados.
Nos materiais didáticos analisados, entendemos que os sistemas de imagens que
circundaram as representações femininas e masculinas teceram uma lógica discursiva que
expôs as práticas de gênero desejáveis de meninas/mulheres e meninos/homens, afinal, há
uma intrínseca relação entre “imagem e representação da verdade” (COLLANGE;
ALMEIDA; AMORIM, 2014, p. 826) pois entende-se que as imagens
[...] são promotoras de ‘verdades’ recortadas, de ‘descontextualizações’ ou de uma
visão conduzida a aspectos previamente considerados mais importantes ao ensino,
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em detrimento dos possíveis significados diversos que poderiam agregar ou trazer,
mesmo do ponto de vista da objetividade e retratação do real (ibid., 836).
Nesse sentido, representações como as imagens e as caricaturas são utilizadas a fim
de contar sobre uma narrativa que remete a diferentes discursos, resultante de um jogo de
forças, elas são elementos fundamentais no processo analítico, como será constatado na nos
resultados a seguir.
Resultados
Nesta seção, serão descritos os resultados obtidos com a catalogação de cada um dos
materiais. Iniciaremos com os dados do Brasil para, em seguida, apresentar alguns exemplos
dos Estados Unidos.
Brasil
Por meio de contagem discreta, foram encontradas 155 imagens e menções a
meninos/homens em comparação a 123 referências a meninas/mulheres. Apesar da diferença
numérica (é importante ressaltar que a representação de meninos/homens foi maior do que a
de meninas/mulheres), nosso olhar é sobre os atributos de representação de gênero, ou seja,
quais as práticas e tarefas estes personagens estão realizando em suas representações.
Por exemplo, em relação às atividades profissionais, identificamos 24 tipos de
carreiras para meninos/homens. Alguns deles são agricultores, apresentadores de TV,
astrônomos, cantores, gerentes, motoristas, vendedores, pescadores, médicos, professores,
matemáticos e outras atividades fortemente vinculadas ao trabalho remunerado e, às vezes,
a atividades laborais estimulantes/desafiadores. Como, por exemplo, na Figura 1 abaixo, em
que um grupo de empresários está decidindo como dividir os lucros. Nesse caso específico,
eles precisavam de compreensão suficiente da porcentagem para tomar uma decisão
eficiente. Para saber quanto dinheiro cada homem receberá, para isso, eles necessitam
realizar algumas operações aritméticas.
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Figura 1: Andrini; Vasconcelos (2015, p. 237)
Por outro lado, as meninas/mulheres eram frequentemente representadas como
costureiras, diretoras de escolas, jornalistas, médicas, professoras, vendedoras e secretárias.
Elas também eram responsáveis pela administração da casa, incluindo as compras de
alimentos. Além disso, todas (100%) as atividades que demandavam um personagem
cozinhando, foram representadas por meninas/mulheres. Um exemplo dessa recorrência
pode ser observado na Figura 2, em que Julia precisa conhecer o conceito de frações para
calcular a quantidade de manteiga necessária para sua receita.
Figura 2: Andrini; Vasconcelos (2015, p. 192)
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Este resultado não deveria causar espanto, afinal, na nossa sociedade, o trabalho
doméstico é ainda considerado uma atividade de natureza fundamentalmente feminina
(ROMITO, 1997), contudo isso acarreta que este é ignorado em suas onerações sociais e
trabalhistas, ocultando os custos físicos e mentais que estas tarefas incidem sobre os corpos
femininos, afinal, “o trabalho doméstico é entendido como parte do ser mulher”
(HILLESHEIM, 2004, p. 46), ele é considerado algo que completaria a essência fundamental
do ser mulher e isso acaba respingando nos livros didáticos de matemática no Brasil. As
atividades domésticas relegadas aos homens, no entanto, têm um caráter diferente do cuidado
associados às das mulheres. De acordo com Hillesheim (2004), estas tarefas teriam associadas
a si um componente intrínseco de virilidade, um tipo de trabalho considerado “mais pesado” e,
deste modo, marcaria enfaticamente a divisão sexual do trabalho doméstico.
Portanto, é possível concluir que em relação à divisão social do trabalho, os atributos
estereotipados de gênero são reforçados pelo livro didático brasileiro. Meninos/homens foram
representados ocupando diversos tipos de profissões relacionadas à liderança, ciência e
empreendedorismo, em geral ocupações socialmente valorizadas. A maior parte das profissões
estava fortemente ligada às práticas empresariais por meio da racionalidade neoliberal.
Enquanto as meninas/mulheres são mostradas como gentis, cuidadosas e passivas em relação
às suas profissões (geralmente executando trabalhos domésticos).
Outro resultado importante a destacar diz respeito às práticas esportivas.
Meninos/homens apareceram praticando diferentes tipos de esportes ao longo deste livro,
eventualmente para contextualizar algum conteúdo matemático como pode ser observado na
Figura 3, em que o menino anda com seu skate, bem radical!:
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Figura 3: Andrini; Vasconcelos (2015, p. 84)
Enquanto isso, as meninas/mulheres foram representadas apenas praticando
caminhadas, no máximo. Outro ponto que merece destaque é o fato de meninos/homens
aparecem praticando esportes na mesma proporção que meninas/mulheres aparecem em
atividades de compras, principalmente adquirindo sapatos, roupas, acessórios, etc.
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Figura 4: Andrini; Vasconcelos (2015, p. 65)
Importante notar que, tal como evidenciado na figura 4, para realizar suas compras
de vestuários e acessórios, elas precisam saber matemática, mas ainda assim, exercem
atividades muito diferentes das dos meninos representados.
Desse modo, fica evidenciado que o livro didático brasileiro analisado acaba por
replicar uma série de estereótipos de gênero, não contribuindo para a superação de problemas
anunciados em vários documentos internacionais na atualidade (UNESCO, 2018).
Estados Unidos
No livro didático americano, a divisão dos gêneros era claramente marcada por
estereótipos sutis nas linhas do livro didático. Do ponto de vista binário, o gênero foi
representado de maneira relativamente semelhante. Houve 230 menções de
meninas/mulheres em comparação com 210 de meninos/homens. Nessas citações, nomes,
pronomes ou substantivos identificados por gênero, como pai ou mãe, eram uma unidade de
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análise. Algumas dessas citações foram acompanhadas por fotos, que neste artigo foram
contadas como unidades separadas. Um total de 74 imagens retratou meninos/homens em
contraste com 57 retratando meninas/mulheres. Portanto, à medida que se folheia o livro, a
representação masculina é percebida com mais frequência.
Em relação às profissões citadas ao longo do livro didático, houve uma diferença
notável. Ao final de cada capítulo, um plano de Carreira do Século 21 foi apresentado aos
alunos, juntamente com uma imagem que representava um gênero específico. As carreiras
oferecidas foram Química Cosmética (mulher), Animador de Efeitos Especiais (homem),
Designer de Equipamentos Desportivos (homem), Chef de Pastelaria (homem) e Ilustrador
Científico em Arte de História Natural (mulher), assim foi possível concluir que o escopo
das coisas que os homens podem fazer era maior em comparação com as mulheres. Ao longo
do livro, as mulheres foram tratadas principalmente como seres artísticos que fazem coisas
que as “meninas fazem”, como fazer pulseiras, álbuns de recortes ou ensinar. Os homens
foram representados como jardineiros, atletas, chefs, professores, músicos, empresários,
construtores, etc.
Em última análise, um dos aspectos percebidos neste livro didático é a forma como
a conceituação de meninos/homens e meninas/mulheres foi disposta ao longo do livro em
relação ao “fazer/saber matemático”. Por exemplo, os problemas H.O.T (Higher Order
Thinking, ou Pensamento de Ordem Superior) afirmavam essa maneira de pensar.
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Tradução: H.O.T. Problemas Pensamento de ordem superior
14. Encontre o Erro. Meis está escrevendo 4.28 como uma mistura de números. Encontre seu erro e
corrija-a.
(Em rosa) Mei colocou os valor do denominador no lugar errado, então ela a fração estava incorreta;
Figura 5. Carter et al.(2015, p.94)
A maioria desses problemas H.O.T retratava um aluno tentando resolver um problema
matemático, sem sucesso. Uma das subquestões em um problema H.O.T era encontrar o erro
do estudante e corrigi-lo. Das dez vezes em que um problema de H.O.T se refere a encontrar o
erro de um estudante, sete vezes foram erros cometidos por meninas/mulheres, o que influencia
na maneira como pensamos sobre as meninas/mulheres que cometem mais erros em matemática
quando comparadas aos meninos/homens. Ao longo do livro, uma tentativa de equilibrar a
representação de gênero é claramente observada, mas o livro falha em mostrar de forma
equitativa que ambos os gêneros cometem erros em matemática. Essa falta de representação
equitativa do erro nos leva a uma criação tendenciosa dos sujeitos de gênero. Tal como pode
ser reforçado nas duas atividades a seguir apresentadas na figura 6.
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Tradução:
2. Cora gasta 2/3 do seu tempo livre
navegando na Internet. Leah gasta
60% do seu tempo livre navegando
na Internet. Quem gasta mais
tempo?
7. Darius gasta 35% do seu tempo
fazendo a tarefa de matemática.
Alex gasta 2/5 do seu tempo
fazendo tarefa de matemática.
Quem gasta mais tempo fazendo a
tarefa de matemática? Explique.
Figura 6: Carter et al. (2015, p.132-133)
A atividade, como mais uma vez ao longo do livro, reforça que meninos são mais
dedicados a seu engajamento com o saber/fazer matemático, ao passo que as meninas estão
mais propensas a não se engajar da mesma forma.
Outro dado relevante é que, recorrentemente, os meninos/homens estavam sempre
dispostos como líderes da conversa, enquanto as meninas/mulheres eram exibidas ao fundo
servindo aos meninos/homens.
Considerações finais
A partir do interesse de ambos os autores de compararem as pesquisas que veem
realizando nos dois países mencionados, esta pesquisa concluiu que, em ambos os livros
didáticos, havia uma crença social específica implícita nos diferentes gêneros exibidos ao
longo do texto. Meninos/homens representados nesses livros didáticos ainda carregam as
ideias de uma sociedade performativa patriarcal, na qual os homens estão fortemente
relacionados às ideias de poder, enquanto as mulheres são deixadas em segundo plano e são
vistas como "o ser de suporte". Particularmente, no livro didático dos EUA,
meninas/mulheres geralmente são descritas como abaixo da média quando comparadas a
meninos/homens em "fazer/saber matemática". Situação semelhante ocorre nos livros
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didáticos do Brasil com a inclusão das mulheres, muitas vezes, sendo representadas em
atividades laborais menos valorizadas socialmente e menos desafiadoras.
Em resumo, o livro norte americano parece apresentar uma preocupação um pouco
maior em distribuir os personagens de acordo com o gênero, de forma mais equitativa. O
que não acontece no material brasileiro. Entretanto, isso não basta para escapar aos
estereótipos de gênero presentes nas obras como demonstrado.
Na mesma linha, nossa análise mostra evidências da necessidade de continuar
aprofundando as investigações com esse enfoque a fim de combater as desigualdades de
gênero em todas as esferas da sociedade, incluindo os livros didáticos de matemática.
Portanto, a partir da análise dos dois livros didáticos de dois países bastante distintos,
é possível concluir que o conhecimento matemático e as moralidades se encontram
articuladas e acabam por ensinar muitas coisas. A junção destes dois elementos, ao que
parece, potencializa o ensino de valores, pois, socialmente, eles são ignorados frente ao
necessário e, hipoteticamente, neutro, conhecimento matemático. Nesse sentido, a
matemática continua aparentemente operando como uma disciplina neutra, que
ingenuamente ensina as crianças a contar e a medir, entre outras atividades consideradas
essenciais ao exercício da cidadania atualmente e desprovidas de “ideologização”,
aparentemente. Com este artigo, esperamos ter mostrado que a matemática não é neutra, não
importa onde estejamos. Este conhecimento, inclusive, parece ser um potente instrumento
que reproduz estereótipos que devem ser combatidos com máxima urgência. Desejamos que
este artigo contribua para que repensemos o papel da matemática como política cultural na
atualidade.
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HISTÓRICO
Submetido: 13 de janeiro de 2021.
Aprovado: 05 de abril de 2021.
Publicado: 14 de julho de 2021.